segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Tempo e inovação

(imagem daqui)


A produção do original, a irrupção do não visto, o culto da novidade possuem uma directa relação com a nossa percepção da temporalidade. Introduzem diferenças na vida quotidiana e são essas diferenças que, sobrepondo-se às diferenças naturais dadas pelos ritmos da Terra – o dia e a noite ou as estações do ano –, criam uma espécie de segunda percepção psicológica da duração. Se a primeira, fundada nos ritmos do nosso planeta, se inscrevia de imediato no nosso próprio ser, tanto na dimensão biológica como na psicológica, a percepção da temporalidade, a partir da experiência da novidade, introduz um ruído na nossa relação com o tempo. Esse ruído é insignificante se o ritmo de produção de novidades é diminuto. Mas num mundo como o nosso, onde o valor da novidade, ao ser consagrado pela universidade e pelo mercado, se tornou num valor absoluto, os seres humanos estão submetidos a um ruído permanente e a um desconcerto entre estas duas facetas psicológicas da temporalidade. A inovação, tal como hoje é compreendida na retórica dominante das sociedades de mercado, não passa de poluição. Não me refiro à poluição que a rápida obsolescência dos produtos da inovação representa. Refiro-me à poluição que se abate sobre os nosso ritmos de vida, sobre o desejo de estabilidade que reside no fundo de cada ser humano, sobre as formas de vida que, durante milénios de civilização, se enraizaram em nós. A inovação, tal como é compreendida hoje em dia, não é um bem, mas o sintoma de uma profunda doença que estilhaça a ancestral relação do homem com o tempo e com a Terra. O tempo, essa estrutura que permite a existência dos homens e das sociedades, tornou-se absolutamente incompreensível devido à poluição inovadora. Como corolário, os homens são a cada dia mais estranhos a si mesmos.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Pensar, pensar e voltar a pensar




Perante o descalabro que se aproxima, perante a intensificação da velocidade com que a vida económica se transforma tornando tudo e todos em pura obsolescência, o sentimento comum refugia-se na necessidade de fazer qualquer coisa. É preciso agir, a praxis tem a última palavra. Este sentimento encontrou, nas teses de Marx ad Feuerbach, na celebérrima 11.ª tese, a sua consigna eterna: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”

Se há, ao cimo do planeta, algo ou alguém que percebeu a tese marxiana, esses foram o capitalismo e os seus defensores e agentes. O capitalismo é essencialmente transformador do mundo e das próprias figuras sob as quais ele próprio se apresenta no palco do drama mundano. Por isso, faz todo o sentido o que Slavoj Žižek afirma: “A pressão no sentido de «fazer alguma coisa» assemelha-se neste caso à compulsão supersticiosa que nos leva a fazer este ou aquele gesto enquanto observamos um processo sobre o qual os nossos gestos não têm qualquer influência real. Não serão os nossos actos, muitas vezes, gestos desse tipo? O velho dito: «Fala menos e faz mais» é uma das cosas mais estúpidas que podemos dizer, ainda que nos limitemos aos critérios menos elevados do senso comum. (S. Žižek, Da Tragédia à Farsa, p. 19)”

Aqueles que querem um mundo equilibrado e com um módico de justiça talvez tenham que perceber que muitos dos seus actos não passam de rituais mágicos sem capacidade de interferir no real. No momento, em que o desenvolvimento do capitalismo atinge o paroxismo, mais importante que a acção, muitas vezes cega e sem sentido, é pensar. Estamos no tempo da teoria. O que quer dizer isso? Que é tempo de compreender o que as coisas são e como operam. Para quê? Para compreender a dimensão trágica que elas contêm e a forma como lidar com elas, amenizando a inevitável tragédia que se aproxima. Estes ainda são tempo da filosofia.

Uma questão de sensatez

(imagem dos vizcondes de Castellbó, protectores dos cátaros catalães)


Toda a gente começa a perceber que somos, de facto, governados por radicais. O radicalismo, seja ele qual for, é sempre uma espécie de catarismo. Apenas os sectários estão na verdade, e a verdade que possuem é pura, santa e absoluta. O que se assiste em Portugal é, de facto, a uma cruzada contra a classe média, contra o papel do Estado na sociedade, contra o mundo do trabalho. Estamos perante uma crença absurda na virtualidade absoluta do mercado, num país onde o mercado nunca funcionou efectivamente, onde as pessoas foram socializadas desconfiando dos mecanismos do mercado, o qual sempre lhes deu razões para essa desconfiança. Este desprezo pela realidade, tão próprio de extremistas e radicais, está a levantar problemas não apenas à esquerda, mas também nos sectores cavaquistas, para não falar no FMI, como se percebe nos múltiplos recados que a senhora Lagarde anda a deixar pelo mundo fora. Se o radicalismo governamental e o catarismo político em exercício não são travados de alguma forma, Portugal caminha rapidamente para uma deriva que nos pode conduzir a uma violência desmedida. Extremismos apelam a extremismos. Cavaco e os cavaquistas têm toda a razão para estarem preocupados.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Um conflito linguístico



Esta história chilena tem pelo menos um mérito. Torna evidente que a linguagem configura a realidade. Não é despiciendo considerar que o tempo de Pinochet foi uma ditadura ou um regime militar. As palavras não são meras etiquetas que se colam à realidade. Elas configuram a realidade e as reacções a essa mesma realidade. No caso do Chile, a direita, actualmente no poder, pretendeu suavizar a visão dos tempos de Pinochet. A reacção da esquerda e até de parte da direita foi tal que os proponentes do apagão da ditadura recuaram. Mas este não é um problema da direita. É um problema da política e do exercício do poder. Quem detém o poder, para o manter, tenta usar a linguagem de forma a configurar a realidade a seu modo. A política começa sempre por ser um conflito linguístico.

Poema 16 - Tudo é sombra neste dia de sol inteiro


Tudo é sombra neste dia de sol inteiro.
Tudo é vendaval na serena madrugada.
De que valem as minhas preces
se a noite será o fim da jornada?

As ordenações da morte caíram sobre a pátria
e morreu o fulgor na casa vazia.
Levaram a saudade daquilo que adorei
e a memória que foi minha um dia.

Qual o lugar para quem ama a liberdade
ou para o jardim onde morreu a tua flor?
Tudo se extingue envolto em cansaço,

como se não houvesse luz ou verdade,
e da pátria apenas restasse a dor,
que cai sobre o que amo ou faço.

Cavaco Silva


A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.


Esta história das reformas do Presidente não chegarem para as despesas está a levantar um coro de indignação por todo o lado, com grande visibilidade na Internet. Corre um espúrio abaixo assinado a pedir a sua demissão e Cavaco já foi vaiado. Qualquer coisa se degradou, pela primeira vez, na relação de um Presidente da República com o povo português. É evidente que as palavras de Cavaco são insensatas e, no fundo, não passam de uma nova forma de mastigar bolo-rei de boca aberta. Tudo isto, mastigação de bolo-rei e exiguidade das reformas, motiva graçolas à esquerda, que nunca o suportou, e calafrios à direita, que nunca se perdoou por se ter posto nas mãos do guarda-livros do reino.

Desabafos insensatos e mastigações indelicadas são o menos. O principal problema de Cavaco é o facto de ele ter exercido cargos de responsabilidade política durante dezassete anos. Foi ministro das Finanças e do Plano durante um ano, Primeiro-ministro durante dez, e é Presidente da República há seis. Se há alguém que tem responsabilidades no regime é Cavaco Silva. Foi ele que o formatou, na pós adesão à CEE, enquanto Primeiro-ministro e que traçou as linhas gerais pelas quais os outros seguiram. Foi ele que sempre fez política negando ser político, foi ele que sempre usou e abusou da demagogia para alcançar os seus fins políticos, foi ele que sempre submeteu aos interesses das suas vitórias eleitorais os interesses do país. O mal de Cavaco não está no desabafo sobre as suas reformas nem no episódio do bolo-rei, está na sua conduta política.

O drama de Portugal reside todo aqui, reside no facto de, apesar de tudo, Cavaco Silva ser ainda o último representante de um módico de racionalidade no sistema político. Governados por um governo de orientação extremista, com a oposição moderada manietada pelo acordo com a troika, com a oposição menos moderada sem verdadeiro peso político e com uma intervenção cívica muito débil, Cavaco Silva é o único player com peso que ainda pode moderar, levemente que seja, os apetites vorazes das elites económicas e a submissão dos radicais do governo aos interesses dessas elites.

Será assim racional que aqueles que pretendem fazer frente à destruição dos equilíbrios sociais ainda existentes moderem as críticas a Cavaco. A insensatez das suas palavras sobre as reformas não deve ocultar a verdadeira floresta e os perigos que ela contém. Apesar de tudo, Cavaco Silva não é o mal radical. Este está noutro lado e é para aí que se devem orientar as baterias.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Pura abjecção



Confirma-se a abjecção. Uns tipos baços e transitórios mandatados para governar por quatro anos acharam-se no direito de decidir alegremente sobre os símbolos da comunidade nacional e julgaram por bem propor aos concertadores sociais a abolição dos feriados do 1.º de Dezembro e do 5 de Outubro. Mas o que é a concertação social para decidir sobre os símbolos da pátria (sim, um feriado nacional é um símbolo da pátria e da sua história)? O que é uma maioria parlamentar para fazer tais propostas? Nem vou discutir a triste ladainha da produtividade. O que me dói enquanto português é ser governado por gente desta, por gente que acha que a economia deve subjugar a cidadania, gente que tem mentalidade de escravo e cujo horizonte é transformar Portugal numa imensa casa de escravos.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Ruínas – o viver para a morte



Este conjunto de dezasseis fotografias publicadas pelo Guardian deixa na boca um travo amargo. As fotos são um trabalho de Yves Marchand e Romain Meffre sobre o dramático declínio de uma das maiores cidades americanas, Detroit. É um extraordinário exercício sobre a morte, sobre a insinuação da morte como centro da vida. Não se vêem corpos, mas apenas os restos de vida, restos inscritos nas ruínas de um mundo contemporâneo. Não estamos perante ruínas de civilizações desaparecidas, mas perante a ruína da nossa própria civilização, ruínas de coisas que ainda há pouco tinham vida plena. Ruínas sempre se produziram, qual a novidade de tudo isto? Há algo de absolutamente excepcional que se revela nestas fotos. Enquanto as sociedades tradicionais lutam contra a morte e tentam prolongar tradições, modos de vida e objectos materiais até mais não poderem, as sociedades fundadas na economia de mercado fazem da morte o seu modo de vida. O que se vê nestas fotografias é o niilismo que habita o centro da nossa vida, a revelação da essência das nossas sociedades: viver para a morte.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Mais um ano de Cavaco Silva



Faz hoje um ano que Cavaco Silva foi reeleito. Apesar da petição que corre online, ele é, de facto, o mais fiel representante do povo português. Não porque tenha sido eleito pelos portugueses, mas porque reflecte com fidelidade aquilo que somos, tanto quando põe um ar sério de homem domingueiro, como quando fala das suas reformas, ou mesmo quando se entrega à mais desbragada demagogia, de que aliás é exímio especialista. Os que gostam de Cavaco revêem-se nele. Os que o detestam, não gostam de se ver ao espelho. Se este tipo de petições se fizesse valer, ficaríamos todos órfãos.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Poema 15 - Tanto sentimento aberto no peito


Tanto sentimento aberto no peito,
promessa em dia de vendaval,
faz-te tremer as mãos,
se as poisas delicadas sobre a mesa.

O teu lugar não é neste jardim
onde tudo secou às primeiras chuvas.
O rumor das bacantes avança pelas estradas
e os olhos seguem-no ávidos de ritmo.

Os bosques esperam o sangue
desse corpo que dança sob a neblina
e despido cai entre folhas e musgos.

De tanto sentir o coração cedeu
e a terra extasiada arde de pavor
perante a noite que sobre mim caiu.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Ressentimento


Portugal sempre foi um país de ressentimentos vários. Hoje, porém, um dos efeitos mais visíveis da crise e das medidas estruturais (e que estruturação…) deste governo, bem como do anterior, é o crescimento exponencial do ressentimento social. Basta ler os comentários nos jornais online às notícias sobre política (um exercício que faço com regularidade). Para ajudar ao ressentimento nacional, o dr. Cavaco não se eximiu de confessar a exiguidade das suas reformas, de mostrar o seu próprio ressentimento, digamos assim. No tempo do prof. Salazar éramos pobres e felizes nessa pobreza, o próprio ditador evidenciava a felicidade da sua contenção monástica. Hoje, depois do dr. Cavaco primeiro-ministro nos ter incentivado a ser ricos, tornámos a ser o que sempre formos: pobres. Agora, contudo, a exemplo do próprio dr. Cavaco presidente da República, somos infelizes. E a infelicidade é a porta por onde entra o ressentimento.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Poema 14 - Os tumultuosos dias ao teu lado

Os tumultuosos dias ao teu lado,
um sulco aberto na memória,
promessa juvenil
na errância que me trouxe aqui.

Os deuses retiraram-se
e tudo na terra é mais sombrio:
se trocamos um olhar,
logo as faces escurecem na luz matinal.

Chegou o tempo da palavra silenciosa,
a hora em que a chama se extingue
contra o horizonte da noite.

Os luminosos dias em que te amava
fecham-se agora num círculo imóvel,
anúncio secreto da fria eternidade.

O retorno do neo-realismo

A minha crónica de hoje no Jornal Torrejano.



Nos finais dos anos oitenta dei aulas numa conhecida cidade alentejana. Apesar da revolução ter ocorrido há década e meia, apesar da forte influência do Partido Comunista, as relações sociais pareciam solidificadas no tempo. Durante o ano que aí leccionei, frequentei um célebre e tradicional café local. O quadro que me era oferecido fazia lembrar as descrições da literatura neo-realista. Tinha saído de Torres Novas – apesar da sua pequenez e falta de massa crítica, vivia relativamente adequada à sua época – e aterrara quatro décadas atrás. A vida social que me era dada a observar seria a normal nos anos quarenta e cinquenta do século XX.

Aquilo a que estamos a assistir neste momento em Portugal, nomeadamente nas relações laborais, na estratégia de exploração de uma mão-de-obra cada vez mais barata mostra duas coisas essenciais. Em primeiro lugar, torna evidente que toda a estratégia de adesão de Portugal à União Europeia foi sofrivelmente pensada, mal executada e pessimamente dirigida. Não se olhou nem para a nossa realidade social e económica nem para aquilo que somos efectivamente enquanto povo. E essa política conduziu ao sítio onde estamos. Formalmente as coisas pareciam funcionar (por isso os políticos eram reeleitos), mas as opções erradas acabaram agora por se tornar óbvias. Os políticos portugueses foram muito bons em produzir e vender ilusões, mas perfeitamente incompetentes em lidar com a realidade.

Em segundo lugar, quando o descalabro de 25 anos de políticas erradas se torna evidente, o único modelo que a elite governativa possui na cabeça é o retorno a relações sociais que preenchem um certo imaginário perdido. Aquele que os dirigentes actuais tinham ouvido a pais e avós, os bons tempos de mão-de-obra barata, da criadagem em casa, da grande diferença entre grupos sociais, que permitia a uns recrutar, muitas vezes a troco de comida e dormida, pessoas para os seus serviços, dos velhos tempos de um paternalismo caridoso. Um retorno aos anos quarente e cinquenta do século passado.

Apesar do neo-realismo ter sido uma corrente estética marxista, a nossa direita nunca deixou de ser neo-realista, de sonhar com aquele mundo de senhores e de servos que alimenta a literatura e o cinema neo-realistas. Com o governo de Passos Coelho, retornamos, no âmbito da estética política, ao neo-realismo. Mas o primeiro-ministro deveria recordar as palavras de Marx. A história repete-se, uma vez ocorre como tragédia, a outra como farsa. Estamos no tempo da farsa.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O desamor à liberdade


A democracia, enquanto regime político, nunca gerou grandes paixões em Portugal. Pressente-se, por norma, uma certa condescendência perante a sua existência, como se ela não fosse um regime político sério e a sério. O estudo "AQualidade da Democracia em Portugal: a Perspectiva dos Cidadãos" revela que apenas 56% dos portugueses acreditam que que ela é o melhor sistema político. O estudo chama a atenção para duas vertentes que deverão ser pensadas conjuntamente. Por um lado, o apelo autoritário; por outro, o problema da justiça social ancorado na redistribuição da riqueza produzida. Segundo um dos autores do estudo, António Costa Pinto, "existe uma eminente contradição entre o que a democracia aponta como questão fundamental, que são as eleições livres, e o que as pessoas pensam que é que a democracia, ou seja, que ela assenta na redistribuição da riqueza, no emprego e no combate à exclusão social".

Ora é preciso compreender historicamente o problema. Portugal não só tem uma longa história de regimes autoritários, como a derrota, com 25 de Abril de 1974, da ditadura e a instauração de uma democracia representativa esteve ligada ao redesenhar do pacto social com a promessa de uma redistribuição menos desigual dos rendimentos. De certa forma, a narrativa geral (à esquerda e à direita) foi que a democracia promovia, contrariamente à experiência dos autoritarismos, uma redistribuição mais equilibrada e equitativa. Os partidos políticos tentaram assim comprar – num país essencialmente pobre – os cidadãos para o regime. Não foi o amor à liberdade que mobilizou as pessoas para a democracia, foi o sonho de uma vida um pouco mais decente, foi o querer fazer parte integrante desse pacto e ser reconhecido como um igual. Quando esse sonho se desmorona, quando a desigualdade crescente parece ser o único produto social do regime democrático, é natural que o ancestral desamor à liberdade cresça, prenunciando o momento em que uma larga fatia da população esperará pela vinda de um salvador. 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Poema 13 - O sol da tarde lembra os campos na primavera


O sol da tarde lembra os campos na primavera,
quando os teus cabelos ondulavam
empurrados pelo vento
e todo o meu olhar poisava em ti.

Respiro no silêncio solar
e soletro na memória todas as vezes
que contei os teus dedos
no perfeito assombro dessa mão.

Em certas horas amamos outras montanhas,
e deixamos o corpo vogar pelos caminhos
que a surpresa abre na floresta.

Mas se o inverno chega sombrio,
escutamos o apelo da terra
e retornamos à casa que nos viu partir.

domingo, 15 de janeiro de 2012

A pluralização das narrativas políticas


O debate teórico e a discussão pública sobre questões políticas estão há muito cativos da oposição entre liberalismo e socialismo. As categorias e as práticas defendidas por ambos os campos afrontam-se e enfrentam-se pelo menos desde o século XIX. De certa maneira, a reacção socialista ao liberalismo tomou o lugar da reacção aristocrática, e solidificou uma interpretação do mundo que parece ser a única possível, transformando esse conflito no motor da vida pública. Mesmo a emergência dos chamados partidos Verdes, com as suas políticas em torno da ecologia, e o aparecimento de causas, mais ou menos transversais ao espectro político, referentes a direitos específicos acabaram por ser absorvidos pela guerra civil dos herdeiros do Iluminismo, pela clivagem entre liberais e socialistas.  

O problema que vale a pena pensar, do ponto de vista da teoria política, é se essa clivagem ainda permite perceber e pensar a realidade que vivemos. Percebe-se que os liberais, nas suas diversas modalidades, desejem continuar o debate com o socialismo. É a forma que eles têm para solidificar e eternizar a sua vitória, é a estratégia seguida para ocultar as brechas que se abrem no seu próprio campo. Mas a entrada em jogo de novas realidades implica um reformular das velhas dicotomias. Alguns exemplos. Na China, é um regime antiliberal que permite o aparecimento de um capitalismo ultraliberal na própria China e, concomitantemente, o reforço das posições liberais no Ocidente. No mundo árabe, tudo indica que a liberalização política criará espaço para modos de vida iliberais. Por fim, no Brasil é uma governação ideologicamente antiliberal, de carácter socialista, que consegue de forma mais consequente o desenvolvimento capitalista do país, ao ponto de torná-lo numa das grandes potências emergentes na cena política mundial. Os exemplos poderiam multiplicar-se.

Esta contaminação de categorias teóricas e de práticas políticas mostra que algo na velha narrativa do conflito liberal-socialista está já ultrapassado. Isto significa que os próprios problemas como o da injustiça social, da pobreza, do desenvolvimento e repartição de bens precisam de um novo mapa categorial e da construção de novas narrativas sobre a questão política. Há um coisa que, no entanto, é central. Se o Iluminismo e o projecto da modernidade cindiram o velho edifício unificado dos regimes monárquico-aristocráticos em dois campos (primeiro a oposição entre conservadorismo e liberalismo; depois, a oposição liberalismo e socialismo), a nova situação será ainda mais fragmentária, gerando múltiplas narrativas que se confrontam com as suas categorias teóricas e os seus interesses práticos. O conflito entre liberalismo e socialismo é um assunto da história da Europa. Mas esse mundo acabou. Há que perceber aquilo que os outros dizem e como justificam as suas pretensões. Há que dar atenção às suas narrativas, aos seus conceitos, aos seus interesses e aos seus poderes. Eles já existem e estão a moldar o mundo. Nós é que ainda não percebemos.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Silêncio ensurdecedor



Teremos, enquanto comunidade nacional, chegado ao fim? Terá o projecto iniciado por Afonso Henriques, em 1143, esgotado todas as potencialidades? Não é apenas a malfadada crise, o desemprego crescente, o empobrecimento inevitável. Nem sequer, o desânimo de ouvir, a cada passo, um governante convidar os portugueses a emigrar, nem tão pouco o facto de termos de suportar uma elite política ignara e indigente. Isso ainda seria suportável e superável.
Incomoda o silêncio e a apatia dos cidadãos em geral, que parecem aceitar tudo como se fosse um destino inexorável. Exultam os governantes por não sermos como os gregos, por nos manifestarmos pacatamente, como quem vai à procissão do Senhor Morto ou a um funeral. Cegos com a saloiice do aluno bem comportado, como se vida de uma nação não passasse de uma temporada escolar, as elites não percebem que a pacatez é sintoma de doença da vontade, de falta de energia, de impotência de um povo que se entrega, em silêncio, ao cruel destino de desistir de si mesmo.
Incomoda o carácter mesquinho das elites económicas, sem qualquer interesse que não seja o da sua propriedade. Iniciativa, risco, criação de riqueza, descoberta de novos mercados, de novos produtos, alteração dos métodos de gestão, tudo isso parece, em Portugal, um sonho. Esperam salários ainda mais baixos, mais horas de trabalho, mais uns contratos com o Estado, se ainda for possível, ou, em alternativa a tudo isso, pôr o dinheiro a render em algum paraíso fiscal.
Incomoda o silêncio da universidade e da intelectualidade. Nada têm para dizer sobre o país, sobre as alternativas para sairmos do pântano onde estamos atolados. Não há um debate sério, com conflito de ideias, sobre a situação. Discutem-se aventais. Um país que está à beira do colapso passa uma temporada infinita a discutir a magna questão de quem pertence à Maçonaria.
Para onde orientar a economia? O que fazer da nossa cultura? Como deveremos pensar a nossa relação com a União Europeia e para onde deve esta caminhar? Como activar as nossas relações com as comunidades portuguesas existentes pelo mundo? O que deveremos fazer na relação com o mundo globalizado? Que problemas e que oportunidades resultam da nossa natureza periférica e atlântica? Nada disto interessa à universidade e à intelectualidade portuguesas.
Um povo impotente e doente da vontade, elites impreparadas, mesquinhas e cínicas parecem anunciar o pior. É ensurdecedor o silêncio que existe em torno do destino de Portugal.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Um acto falhado


As declarações da dr.ª Manuel Ferreira Leite sobre a hemodiálise a partir dos 70 anos são interessantes porque são um acto falhado. Acaba por dizer aquilo que o regime pressente mas não diz. Certamente ela também não queria dizer o que disse, e corrigiu de certa maneira a intervenção. A retórica dos direitos humanos cobre o que efectivamente se pensa e se sabe que, mais tarde ou mais cedo, irá ser a solução imposta. E não será apenas a hemodiálise. Há um interesse objectivo em que se morra mais cedo. Não digo que as pessoas subjectivamente o assumam. Isso chocaria a sua consciência. Mas a orientação política que vai sendo tomada terá como consequências essa diminuição da esperança de vida. Os cuidados de saúde vão ser cada vez mais caros para uma sociedade cada vez mais pobre. Não é preciso ser muito inteligente para perceber o resultado. Trata-se de uma medida racional dentro daquilo a que Michel Foucault deu o nome de biopolítica. Como controlar a população? É isto que está em jogo, independentemente da consciência que os actores têm do caso, a qual é irrelevante.

Poema 12 - Deste caos chega uma canção


Deste caos chega uma canção.
Vem pálida sobre o dorso da noite
e anuncia a dor nos dias venturosos.
As primeiras letras não foram soletradas,
e já o tempo das palavras acabou.
A efémera paisagem cedeu o lugar:
um rio de cinza na fonte do desejo,
o medo avança ao cantar.

É tempo de escutares a minha prece.
É tempo de entoar o teu nome.
É tempo de cantares a minha canção.
Não tornarei a colher flores no jardim,
nem as mãos se levantarão aos céus.
Um rumor indica o vento a nascer,
e no meu coração não há sangue
que o inverno leve para o teu.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Poema 11 - Os domingos de sol são dias votados ao silêncio


Os domingos de sol são dias votados ao silêncio.
Neles, premeditam-se grandes assassínios:
a fantasia cresce desmedida,
salta os muros da cidade,
e corre pelas avenidas da memória,
à procura das raparigas de outrora,
jovens e frescas raparigas
que iluminavam o sol desses fatigados dias.

Não há lugar que nos cure,
que do passado ofereça um sinal
ou traga o ferrear dos eléctricos nos carris.
Restam raparigas submersas no tempo,
sem rosas nas casas onde empardeceram,
sem água para regar os gerânios,
sem genealogia para um jardim
onde as mãos chamassem pela terra.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Poema 10 - Não foi aqui que os deuses me tocaram


Não foi aqui que os deuses me tocaram
e chamaram por mim,
oferecendo-me como aliança
as escarpas do teu amor.

Não é aqui a minha pátria,
essa terra que percorria de olhos vendados
e de que sabia todos os cheiros
e a cor de cada amanhecer.

Não será aqui que esperarei a morte,
quando os teus dedos puros e brancos
dos meus se separarem,
entregando-os à orfandade da noite.

O sintoma da doença


Desistiram! Quando são os governantes que louvam e proclamam a bondade da emigração dos jovens quadros, que interpretação devemos fazer disto? Há muitas interpretações plausíveis. Mas talvez a mais pertinente seja a que nos mostra que estamos profundamente doentes. Não me refiro apenas aos portugueses – embora estes estejam quase em coma –, refiro-me aos europeus em geral. Só povos a caminho do estado terminal escolhem governantes como aqueles que nos cabem em sorte de há vinte anos para cá. Esta gente que elegemos, mesmo quando não votamos neles, não passa de um sintoma dessa doença mortal que atingiu a Europa e, com especial virulência, Portugal. O melhor mesmo é, quem pode, emigrar, e aquilo que há ainda de bom e rentável se venda aos chineses, aos árabes, aos angolanos. Nunca tive arroubos nacionalistas, nem acho que os chineses, os árabes, os angolanos sejam piores ou melhores que nós. O que é insuportável é estarmos entregues a elites políticas deste jaez, elites políticas que não têm uma ideia nem para o país nem para a Europa. Gente cuja missão é liquidar aquilo que foi obra de muitas gerações ao longo dos séculos. A Europa, a civilização ocidental, e no caso concreto, Portugal, vão morrer às mãos desta gente.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O apreço pela democracia em Portugal



O desabafo de Passos Coelho, hoje, à saída do Parlamento, depois do debate quinzenal, é esclarecedor do grau de enraizamento da democracia nas nossas elites políticas: “Vamos trabalhar, já são horas.” Dir-se-á que foi um acto falhado. Mas não é nos actos falhados que se revela a verdade inconsciente? No fundo, a democracia é uma enorme chatice. O Prof. Salazar sabia-o bem. Por isso só havia uma cor na Assembleia e ele não perdia tempo com essas coisas menores de ouvir e discutir com a oposição. Não foi por acaso que, naquele infeliz concurso televisivo, o velho ditador foi eleito como o maior português de todos os tempos. A democracia para os portugueses, mesmo para a generalidade das elites políticas, é um assunto da razão e da conveniência mas não do coração. 

Poema 9 - Aquilo que de novo chega


Aquilo que de novo chega,
- a súbita melodia do vento pelos ramos,
a folhagem das tuas mãos vazias, -
chega sempre tão tarde,
que a esperança se desvanece
na distância que nos separa dos céus.

Desconheço a ordem da vida
e todas as rosas são antecipações da morte,
prenúncios de cinza que cantam a tua ausência.
Tão longe te perdeste, casta Eurídice,
presa na névoa impura do tempo;
tão longe ficou a hora do amor silencioso,
das palavras brancas de tanta dor.

Ergo-me e volto aos dias de primavera,
mas os campos estão sombrios
e o fardo pesa-me sobre os ombros.
Esqueci todas as regras do amor
e tomo a desventura como destino
ao caminhar por veredas de sombra e terra.

A coisa não vai acabar bem

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Da produção de quimeras humanas




Hoje em dia, quimeras não são monstros mitológicos que combinam um corpo de cabra, cauda de dragão e cabeça de leão. Hoje existem mesmo quimeras. O Público explica assim o que são quimeras: "Normalmente um embrião desenvolve-se a partir de uma célula que é fruto da fusão de um óvulo com um espermatozóide, o que resulta num genoma único e num animal original. Desta vez os cientistas conseguiram juntar seis embriões de macacos rhesus diferentes, cada um apenas com quatro células. Os embriões misturaram-se, produzindo apenas um animal que tem células provenientes dos diferentes embriões, com ADN diferente. Ou seja, uma quimera."

Este jogo criativo a que se dedica a técnica derivada do conhecimento científico, que se manifestou, por exemplo, na clonagem ou, anteriormente, na fabricação de bombas atómicas, está longe de ser inócuo e obedece a um velho projecto de refazer, segundo a intencionalidade humana, toda a realidade, incluindo a realidade humana. A revolta de Prometeu contra a natureza tal como ela nos é dada é a essência deste projecto que anima a modernidade desde o seu início. E esta revolta não vai parar. Por isso, é completamente destituída de sentido a asserção do cientista responsável pelo projecto ao sublinhar que ninguém quer “produzir quimeras humanas”. O querer dos indivíduos é irrelevante. Desde que a técnica esteja disponível, não haverá controlo total sobre ela e, talvez em nome da saúde e do tratamento de alguma doença (justificação sempre útil), alguém acabará por produzir quimeras humanas.

Se pretendemos pensar eticamente o que vem aí, é inútil centrar o pensamento apenas na limitação do uso das técnicas. O pensamento ético terá de confrontar-se com o projecto prometaico em curso, compreendendo-o como a essência do mundo em que vivemos. Não uma ética para evitar quimeras, mas uma ética para um mundo de quimeras humanas.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Moralismo insuportável


Detestável não é a deslocalização da principal accionista do Pingo Doce para a Holanda. Detestável é o discurso político moralista deste senhor deputado. Não são favoráveis à livre circulação de mercadorias e capitais? Estas são as regras do jogo. Depois, segundo essas mesmas regras que o CDS tanto parece apreciar, os consumidores não devem penalizar o Pingo Doce por este ter a sua sede na Holanda, mas apenas se essa decisão for racional para os interesses do consumidor. Este moralismo hipócrita que agora toca à classe política  é absolutamente insuportável. Tão insuportável quanto certo moralismo pregado pelo principal accionista do Pingo Doce. Negócios e política são o que são. Não tragam a moral para onde não a querem.

Da antiga atracção da esquerda

(Henri Cartier-Bresson)


Esta fotografia de Cartier-Bresson, encontrada no Ponteiros Parados, explica por que a esquerda, há longos anos atrás, era muito mais atraente para uma certa juventude masculina que a direita. Num café, porventura parisiense, duas mulheres lêem o jornal. Não lêem, todavia, o mesmo jornal. Uma lê o Le Monde, enquanto a outra segura nas mãos o Le Figaro, embora o seu olhar se incline, num misto de espanto e de desdém, para a primeira. Estamos perante mulheres de origens sociais diferentes? Não, pois ambas frequentam o mesmo espaço. Mas enquanto a que lê o Le Figaro (jornal conotado com a direita francesa) se veste formalmente, de acordo não apenas com a idade mas também com o grupo social a que pertence, a jovem e concentrada leitora do Le Monde (jornal afecto à esquerda francesa) exibe, na forma de vestir despreocupada que é a sua e com a gentil conivência da mini-saia, as belas pernas com que a lotaria genética a dotou. Esta figura, que combina a exibição despreocupada do corpo com a concentrada preocupação política, tornou-se um ideal que levou para a esquerda muitos e muitos rapazolas, cujas hormonas ansiavam por extraordinárias aventuras e deliciosos paraísos terrestres. Não me estou a referir, claro, à luta de classes e à edificação da sociedade comunista, mas a tudo aquilo que a leitora do Le Monde parece prometer às infelizes hormonas de uma certa juventude burguesa.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Tempo: Cronos, Kairos e Hora


O último poema da Mensagem, de Fernando Pessoa, tem por título “Nevoeiro”. Faz parte de uma série de cinco poemas sob a denominação de “Os Tempos”. Mas esse último poema termina com o singular verso «É a Hora!». Esta Hora, todavia, não remete para o tempo cronológico, aquele que se pode contar e organizar segundo um qualquer calendário. É um tempo qualitativo. Os gregos utilizavam duas palavras para tempo. Cronos e kairos. Por cronos designavam o tempo sequencial, alinhado do passado em direcção ao futuro, pela mediação do presente. Por kairos referiam o momento oportuno, o momento especial do acontecer. Para o cristianismo, kairos é o tempo da acção divina. Seja na perspectiva grega seja na cristã, o kairos representa sempre uma ruptura no tempo cronológico, uma espécie de abertura onde algo se inscreve. A Hora pessoana aproxima-se do kairos grego. Significa que algo está preparado e pode consumar-se, porque esse é o seu momento. Há, no entanto, algo mais nesta Hora. O verso surge como uma injunção: «É a Hora!». Na Hora estão presentes três coisas: o tempo cronológico, a abertura de um momento que suspende o normal transcurso e do mundo (o kairos), e a iniciativa que o verso exige. Na Hora pessoana inscreve-se uma dialéctica entre kairos e iniciativa. O kairos não é apenas uma coisa que surge e que exige de nós mera atenção. O kairos, a Hora, exige a iniciativa de a preparar, de fazer amadurecer o mundo, para que o fruto caia. Desse ponto de vista, o kairos não é apenas o tempo da acção de Deus ou uma mera oportunidade oferecida pelo destino, mas também aquilo que a iniciativa do homem preparou. Não é apenas um acontecimento, mas aquilo que resulta de uma sabedoria que faz acontecer. 

domingo, 1 de janeiro de 2012

Poema 8 - Ano Novo


O ano começou cinzento,
abatido e já cansado,
pela dor que terá ao caminhar.
Anos são raparigas sombrias:
passam sisudas pelas ruas,
casacos novos tão gastos,
e suspiram pelas noites de amor,
onde a felicidade desagua
na carne flácida despida de maresia.