quinta-feira, 31 de maio de 2012

Missa Pro Defunctis (IX)


9. Sequentia: v. Recordare

Tudo se cala, a luz e a rosa pálida.
A flor no sono breve cai e, se canta,
Escuta a vida num murmúrio amargo
E sem descanso, em manhã sombria.
Fosse agora meio-dia, a memória,
Tão leve e solta, no vagar da tarde,
Em ti diria o que ficou da vida:
A lua, o sol e aquela flor cansada,
Sem cor nem pétalas, apenas rosa
De seda azul em rio de água ateada.

Deito-me no divã e deixo correr
Palavras e memórias, uma lágrima
Furtiva, o crime jamais meditado.
Escavo em mim o súbito desejo,
E descubro maldade até na flor,
Que me mostra beleza no que vejo.
E toda a minha vida está no espelho,
Ergo-me,  saio porta fora e calo
A dor que me atormenta e dela faço
O palácio nocturno onde me deito.

Canta em vigília, abandonado e cego,
Canta, na infância por haver, o ruído
Vindo da serra, vento frio a arder,
Cântico escuro na memória preso,
As mãos cansadas de mulher zelosa.
Se recordares o cinzel e a cruz,
As noites lêvedas de frutos e água,
Penas e dores no jardim queimado
Pelo terror de uma folha a cair,
Se recordares, quem em ti será?

A queda incendiada pelos anos,
O vagar da memória nos dias de hoje,
As portadas que se abrem, logo fecham,
Ao ritmo das marés, da lua inquieta.
Tudo está calado, o dia e a noite,
A praia da tua infância, as janelas
Que deitavam olhares para a vida,
Ou descobriam na morte a força frágil
Da névoa na manhã dos dias fugazes.

Desceu do céu um pássaro, silêncio.

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Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Casa abandonada

Carlo Carra - Casa Abbandonata (1930)

Sombra. Algo se move, traça um círculo e aproxima-se. Não o vejo, apenas a obscuridade e um cheiro a crisântemos. O coração treme. Que horas serão? Preso no círculo, ensaio um movimento, o corpo hirto, amarrado ao chão e o cheiro que se chega, rasteja, abre caminho. Um perfume de sombra sob a claridade do meio-dia. Tudo se concentra dentro de mim. A luz e a penumbra e aquele nada que se avizinha, contamina a atmosfera, desenha um espaço onde o meu coração se abandona vazio ao aroma rasgado pelo chicote da tua mão.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Uma musa metafísica

Carlo Carra - La Musa Metafísica (1917)

Se se consultar uma listagem das musas e observar as actividades por elas inspiradas ou protegidas, a metafísica, isto é, a filosofia está ausente. A razão é simples. Enquanto a inspiração divina faz parte do mundo imaginário e mitológico, a filosofia, desde muito cedo, pretendeu submeter toda a realidade ao império da razão. Para que esse esforço se tornasse possível, a razão deveria cortar as amarras que a ligavam à imaginação e apresentar-se como pura força e faculdade autónoma. Ora se esses intentos se tivessem concretizado, como pensam alguns que se concretizaram, o mais que poderíamos dizer é que a filosofia seria uma actividade desinspirada. E isto não é propriamente um cumprimento.

A verdade, contudo, é que os filósofos, regra geral, fizeram outra coisa. Por muita cientificidade que reivindiquem, a realidade é que a filosofia não passa de um romance, um longo romance que se vai escrevendo há 2600 anos. Por romance entendo aqui o trabalho ficcional onde a razão é personagem e intriga. A razão não existe fora deste processo de ficcionalização. Ao comporem as diversas intrigas a que deram o pomposo nome de teorias, os filósofos fabricaram, e continuarão a fabricar, aquilo a que chamamos razão. Fora deste processo ficcional, não há razão alguma. Enquanto artistas, os filósofos devem possuir a sua musa, uma musa metafísica por certo, mas mesmo assim um musa. Por mim, escolheria como musa metafísica Tália, a musa da comédia. Não porque a filosofia faça rir - a mim faz, por vezes - mas porque Tália quer dizer "a que faz brotar flores". Não será isso a filosofia, uma espécie de jardinagem de onde surgem, de súbito, inesperadas flores?

segunda-feira, 28 de maio de 2012

O fim do paraíso terrestre

Fernand Léger - Adán y Eva (1935-39)

Se há uma coisa que a minha geração assistiu efectivamente, essa coisa foi a morte das utopias sociais e políticas. A modernidade foi generosa, desde o seu início, na produção de utopias. A tentativa de as levar à prática, enraizando-as no solo da realidade, no século XX, foi a confirmação do decreto divino que nos expulsou do paraíso terrestre. Não há na Terra paraíso para onde voltar. Eventualmente, os homens podem sonhar e produzir sociedades mais ou menos ricas, mais ou menos livres, mais ou menos justas, mas não está nas suas mãos produzir um paraíso na Terra. 

Na Terra, as nossas relações serão conflituais, os mais fortes tentarão, insaciavelmente, devorar os mais fracos, e nenhum futuro nos espera cantando. Quem quiser música vá a um concerto. A realidade não canta. Os efeitos deste acontecimento são interessantes. Libertas da utopia de um paraíso terrestre, razão e imaginação podem retornar a imaginar e a esperar o paraíso celeste. Talvez a anunciada morte de Deus tenha sido uma notícia que carecia de confirmação. Por outro lado, ao nível da realidade política e social, as mesmas razão e imaginação, perdida a atracção utópica, ficam mais livres para os duros conflitos pela justiça e pela liberdade, sabendo que qualquer vitória é sempre precária. O fim das utopias foi um grande acontecimento.

domingo, 27 de maio de 2012

Do poder pastoral à arte de marear

daqui

Estou a ver se me lembro de onde e de quando me dei conta. Terá durante o meu primeiro passeio ao longo do Bund, em Xangai, em 2005? Ou no meio do smog e da poeira, em Chongqing, enquanto ouvia um funcionário do Partido Comunista descrever uma montanha de escombros como futuro do centro financeiro do Sudoeste da China? Isto passou-se em 2008, e de certa forma impressionou-me mais do que o espalhafato sincronizado da cerimónia de abertura das Olimpíadas, em Beijing. Terá sido no Carnigie Hall, em 2009, enquanto ouvia hipnotizado a música de Angel Lam, a jovem compositora chinesa deslumbrantemente dotada que personifica a orientalização da música clássica? Julgo que só naquela altura compreendi verdadeiramente a primeira década do século XXI, que estava prestes a terminar: estamos a viver o fim de 500 anos de ascendência ocidental. (Nial Ferguson (2012). Civilização - O Ocidente e os Outros. Porto: Civilização Editora)

O fim da ascendência ocidental está ligado à emergência de outras potências, sendo a China apenas uma entra elas, embora a mais importante e aquela que, de forma mais óbvia, representa um factor de peso na desagregação dos consensos políticos que existiam nos países europeus até à Queda do muro de Berlim e ao processo de globalização que daí decorreu. Independentemente das causas próximas que desencadearam as várias crises que atingem múltiplos países europeus bem como a Europa tomada no seu todo, o problema central está ligado à forma de fazer política numa situação que é radicalmente nova.

A modernidade desenvolveu-se segundo um modelo político que Michel Foucault caracterizou, a partir da leitura que faz da história do cristianismo, como poder pastoral. Vale a pena perceber alguns traços dessa perspectiva. O objectivo final do poder pastoral, no âmbito do cristianismo, é assegurar a salvação individual. Por outro lado, o pastor não é apenas aquele que comanda, mas alguém que deve estar preparado para se sacrificar pela vida e salvação do rebanho. O pastor responde por todo o rebanho, mas também por cada uma das ovelhas, por cada indivíduo. Outra característica do poder pastoral está ligada à transparência da consciência das ovelhas para o pastor (ver aqui e, fundamentalmente, aqui). A modernidade vai laicizar estas preocupações fazendo delas o centro das relações de poder. Facilmente percebemos como é que as questões dos interesses da comunidade e do indivíduo estão em jogo - ambas são legítimas para o poder político  agora pastoralizado -, bem como certo tipo de saberes disciplinares se tornam essenciais ou, ainda, a importância do Estado Providência.

A perspectiva de Foucault é essencial para compreender o que se passou até à Queda do muro de Berlim. Os rebanhos estavam adstritos a determinados territórios, onde a governação cuidava do todo e de cada uma das partes, gerando políticas mais ou menos consensuais, evitando grandes rupturas. Um caso interessante é o da governação de Bismarck, na Alemanha do século XIX. Um político conservador que criou o Estado Providência como forma de integrar o proletariado na consolidação do seu projecto de unificação da Alemanha. A política pastoral está ligada ao carácter sólido das instituições políticas e à sua fundação territorial. Os territórios nacionais eram, para utilizar uma expressão de Norbert Elias, a unidade de sobrevivência. A virtualização da economia, a globalização concomitante e a ascensão de novas potências vieram, segundo Zygmunt Bauman, liquefazer o mundo e as relações sociais que estavam estabelecidas. Isto permite perceber, por exemplo, por que razão nas negociações sobre o novo código laboral, em Portugal, só os trabalhadores perderam. Os compromissos interclassistas, existentes até há pouco, deixaram de ter efeito, pois o capital move-se à velocidade da luz, é nómada, enquanto os trabalhadores são, genericamente, sedentários (cf. Zygmunt Bauman). Não há pastor que consiga evitar esse efeito. O dinheiro impõe condições draconianas ao trabalho, e se este não gostar, paciência, haverá, noutro lugar, quem goste. É isto que significa a metáfora da flexibilidade.

O poder pastoral que orientava, segundo Foucault, o universo político - melhor, o universo biopolítico onde o pastor se preocupava com os indivíduos e a população - parece entrar em declínio. Quando Passos Coelho, Miguel Relvas ou Álvaro Santos Pereira saúdam e incentivam à emigração dos portugueses, estão a dizer que já não são pastores, que não querem prestar contas dos indivíduos nem, provavelmente, do rebanho. O modelo de acção política fundado no cristianismo secularizado parece ter chegado à sua exaustão. O poder demite-se da sua função pastoral e de salvação dos indivíduos. O que significa isto na prática? Desagregação das políticas sociais, nomeadamente na educação, na saúde e na protecção social.

Se podemos assinalar o fim do poder pastoral tal como foi entendido até há bem pouco, que modelos podemos encontrar como alternativa? Foucault é uma fonte inesgotável de conhecimento. Ele mostra que o poder pastoral, por exemplo, nunca existiu na antiguidade greco-latina. O modelo - encontramo-lo nos textos da altura - é o do capitão de navios, do timoneiro. Se considerarmos a situação tal como a descreve Bauman, um mundo em liquefacção, o modelo do timoneiro parece o ideal. O político hoje em dia já não é um pastor que cuida do rebanho, mas um capitão de navio que, navegando pelos mares, pretende levar a embarcação a bom porto. O poeta Walt Withman, em 1865, aquando do assassinato de Abraham Lincoln, parece ter essa consciência ao escrever: O Captain! my Captain! our fearfull trip is done; The ship has weathered every rack, the prize we sought is won...


O problema, todavia, é se o modelo do capitão de navios é pertinente para pensar, ainda que de forma heurística, aquilo que deverá ser a a acção política de hoje. O capitão de navios tem uma finalidade: conduzir a embarcação ao porto de destino. Para isso, necessita de ser competente na arte de marear e de evitar motins a bordo. Mas será que a analogia entre o capitão e o político, aquela que foi usada na antiguidade ou a expressa por Walt Withman, é pertinente? Há um aspecto em que a analogia não colhe. Enquanto o capitão do navio tem um porto por destino, do mundo político desapareceram os destinos onde levar o barco com segurança. Ter um destino significa possuir uma rota. Sem destino, deixou de haver rota. Mas isto fica para um próximo post.

sábado, 26 de maio de 2012

Missa Pro Defunctis (VIII)

8. Sequentia: iv. Rex tremendæ

Majestade, majestade, pobre majestade,
Que fizemos do reino, o reino que entregaste
Ao desvario das tardes de calor, reino de água,
Água fresca e cintilante caída dos céus
Sobre um deserto de carros sangrados em silêncio,
Homens de vísceras revolvidas a fumegar entre mãos?

O tremendo clarão, o porto incendiado,
Bolas de neve a bambolear encosta abaixo,
Tempestade invernosa e fria no calor meridional.
Sussurram e riem, impotentes, os amantes,
A mão no clítoris exausto, esperma corre pelas pernas,
Os corpos requebrados, varas movidas pelo vento.

Majestade, majestade, pobre majestade,
Uma lata de atum, o mar a balançar no esgoto,
O desenho das algas secas sobre as areias da praia,
E um grito ribomba nas sucatas de ferro:
Crescem gerânios e buganvílias pelo zelo das mãos,
Uma conspiração de moscas e melgas ao crepúsculo.

O tremendo cheiro nauseabundo nas margens.
Sonho com a cidade – a luz de Lisboa – e enlouqueço,
O corpo pelo chão, que um anjo me salve.
Zumbe nos carris o eléctrico e caem as últimas árvores.
Restam, entre campas, alguns ciprestes,
E na casa branca a nogueira, para morte a plantei.

Majestade, majestade, pobre majestade,
O presépio singular, deram-to por palácio,
O trono onde os ossos rangeram e o sangue golfou
São promontório, rocha escarpada no voo da águia:
Cresce sobre a terra, abate-se em nossos filhos,
Arrebata o prémio, o desvario o doou.

O tremendo rugir de todas as televisões.
Os locutores abrem a boca, salivam, cospem,
E tudo canta. Onde o silêncio a rosa,
A luz pura a desvanecer-se ao cair a noite?
Troveja o celofane, coristas nuas abanam a cauda,
Cadelas sem cio, sem sexo, a latir noite fora.

Majestade, majestade, pobre majestade…
A tremenda majestade grita no reino confiscado.

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Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Parar para pensar


Este tempo terrível que vivemos, esta hora em que muita gente não só perdeu o emprego mas também a esperança de encontrar, num futuro qualquer, um trabalho que a possa fazer sentir-se parte inteira da comunidade, poderá ser a altura para parar e pensar sobre o que é viver e que relação devemos ter com a economia, o trabalho, mas também com a natureza humana e a própria Terra. Isto não significa que o desemprego seja uma oportunidade, como disse, do alto da sua desfaçatez e desmedida imaturidade, aquele que portugueses, cansados das habilidades do senhor Sócrates, elegeram para nos conduzir neste momento tormentoso.

Mais do que respostas, nós precisamos de fazer perguntas, muitas perguntas. As melhores perguntas são aqueles que são impertinentes. Quem são os grandes especialistas em perguntas impertinentes? As crianças. Por vezes, perguntam aquilo que os adultos não querem responder. É necessário retornar a essa condição ingénua e perguntar uma e outra vez. Só a nossa suposta ingenuidade pode enfrentar a muralha ideológica que foi construída para nos impedir de fazer perguntas.

Que sentido terá, por exemplo, que os horários de trabalho aumentem, que as pessoas empregadas tenham cada vez menos tempo para si e para a família, e ao mesmo tempo o desemprego cresça exponencialmente por essa Europa fora? Não seria de equacionar horários de trabalho mais pequenos e abertura de novos lugares para quem não trabalha? A quem não interessa este tipo de questões? Há que ser, contudo, mais radical e perguntar para que serve este nosso estilo de vida. A generalidade das pessoas vive na angústia de não ter trabalho ou de o vir a perder a breve prazo. Para que serve a vida, se toda ela é marcada por uma coisa onde a maior parte das pessoas se sente estranha e não como o lugar de realização das suas potencialidades? Devemos, por outro lado, perguntar se o nosso pobre planeta suporta tanta produção, tanta eficiência e tanta eficácia na sua exploração.

As discussões políticas estão presas aos esquemas herdados do século XIX e parece que não há outra coisa sobre a Terra do que uma solução liberal, agora em moda, e uma solução socialista, caída em desgraça. Mas será isto que está em questão? Será isto o fundamental? Como poderemos viver na Terra se 8 mil milhões de seres humanos julgarem ter o direito ao estilo de vida dos ocidentais? Os tempos são difíceis, mas é nas alturas de crise que devemos interrogar os nossos valores, aquilo que queremos para a sociedade, a forma como queremos levar os poucos anos que nos são concedidos ao cimo da Terra. Não será altura de parar para pensar?

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Plano Marshall?


Em consequência da Segunda Guerra Mundial, a perspectiva que a Europa oferecia era de miséria e desolação. As fotografias e os documentários da época mostram torrentes deploráveis de civis desamparados, viajando em carroças através de paisagens bombardeadas, por cidades devastadas e campos áridos. Crianças órfãs vagueiam desoladas à frente de grupos de mulheres exaustas, vasculhando destroços de casas em ruínas. Deportados com as cabeças rapadas e internados em campos de concentração, vestindo em pijamas às riscas, olham apaticamente para a câmara, esfomeados e doentes. Até mesmo os eléctricos, seguindo irregularmente ao longo das linhas danificadas, movidos por uma corrente eléctrica intermitente, parecem traumatizados pelos rebentamentos das granadas. Tudo e todos - com a notável excepção das bem alimentadas forças de ocupação aliadas - parecem gastos, sem recurso, exaustos. (Tony Judt (2006). Pós-Guerra - História da Europa desde 1945. Lisboa: Edições 70, p. 33.)

Foi na paisagem descrita por Tony Judt que em 1947 foi decidido o Plano Marshall. O que levou à ajuda norte-americana não foi qualquer sentimento de solidariedade com a Europa nem uma súbita piedade para com as populações vítimas da devastação trazida pelo conflito. O que desencadeou o Plano foi a ameaça do comunismo e, consequentemente, uma possível diminuição drástica da zona de influência norte-americana. O Plano Marshall foi uma estratégia defensiva da Guerra Fria que visou, e conseguiu, estabilizar as governações europeias e afastar da Europa Ocidental a hipotética atracção que o comunismo poderia exercer sobre massas miseráveis.

Quando hoje em dia se ouve falar de um novo Plano Marshall para a Europa fica-se perplexo. São quatro as causas dessa perplexidade. Em primeiro lugar, a situação da Europa, por difícil que seja em alguns países, está muito longe do grau de devastação, mesmo se apenas se considerar a destruição económica, ocasionado pela Guerra Mundial. Em segundo lugar, o comunismo está morto e enterrado e não representa qualquer ameaça para quem quer que seja. Depois, não se percebe quem é que teria o dinheiro e estaria disposto colocá-lo na economia europeia. Por fim, a situação geopolítica global mudou drasticamente, com novos actores na cena política mundial e novos e poderosos concorrentes no mercado global. Falar de planos marshall para Europa ou coisa semelhante, mesmo para a Europa periférica e em crise, é uma ociosidade e uma manifestação perigosa de preguiça de pensar.

A Europa pura e simplesmente tem de enfrentar as novas realidades mundiais com as suas próprias forças e adaptar-se a essas realidades. Há coisas que percebemos que se tornaram impossíveis. O Estado não pode ser um véu protector geral, como pretendem ainda certos sectores de esquerda. Todavia, as políticas liberais que têm sido seguidas estão a gerar inúmeros problemas, nomeadamente ao nível do sentimento de pertença das pessoas a um projecto colectivo, estão a desfazer os laços entre as classes sociais e a criar, Europa fora, bolsas cada vez maiores de ressentimento social. É aqui que está o desafio que esquerda e direita enfrentam. A esquerda precisa de repensar o valor da comunidade e da igualdade sem que o Estado seja o agente e o gerente dessas políticas de preservação das comunidades e do estabelecimentos de formas de igualdade mínimas entre cidadãos. A direita precisa de repensar os limites da liberdade de mercado e do poder de iniciativa.

O que está em jogo é a resposta da Europa aos desafios globais. Esta resposta terá de conjugar a liberdade, aquela que se expressa no jogo do mercado, com a comunidade onde nos sentimos pertença e experimentamos o reconhecimento justo do contributo de cada um para o bem comum. Nada pior para a Europa do que uma política absolutamente neoliberal, ou ordoliberal, que destrua os laços comunitários. Nada pior, por outro lado, do que a ilusão de um retorno ao Estado protector. O que importa, hoje em dia, é pôr em tensão - o que significa colocar, ao mesmo tempo, em conflito e em complementaridade - a iniciativa individual e a iniciativa comunitária. O que importa é reinventar a política tanto à direita como à esquerda. Só isso poderá ajudar indivíduos e comunidades a ajustar-se à realidade global, a qual a Europa não controla nem pode dispor segundo o seu arbítrio. Isso acabou há muito.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Leitura e morte

Henri Matisse - La liseuse sur fond noir (1939)

Julgo que é Paul Ricoeur que chama a atenção para a semelhança entre o acto de ler e a interpretação de uma peça musical. Uma sinfonia só vem à existência no acto de ser tocada. Também um romance ou um poema apenas têm um existência virtual se não forem lidos. Ler, seguindo a analogia proposta, é reconstruir e fazer existir os mundos que as palavras, nas concatenações que tecem os textos, permitem actualizar pela leitura. No entanto, há uma questão onde a analogia não é pregnante. Na execução de uma sinfonia, o corpo, seja do maestro ou dos músicos, está em acção, mobilizado na sua máxima tensão. Uma execução musical é um exercício físico onde o corpo se manifesta na sua materialidade e na destreza que transforma o biológico em virtuosismo artístico.

A leitura, contudo, introduz uma relação ambígua com o corpo. A actualização dos mundos que a obra literária - ou outra - propõe mobiliza de forma mínima a motricidade humana, exigindo mesmo uma suspensão de grande parte da actividade corporal. Enquanto no exercício musical todo o corpo está em jogo, na leitura o corpo tem de estar presente e, ao mesmo tempo, ausentar-se de nós para não nos perturbar no que estamos a ler. A música, ao ser executada, é uma expressão contínua do vigor corporal e uma espécie de hino à capacidade activa da humanidade. Ler, por seu turno, é um estranho caso de pôr entre parêntesis a vida e a acção. 

Platão dizia que a filosofia era uma aprendizagem de morrer e de estar morto, devido à ascese que ela implicaria. Não é preciso ir tão longe, não é preciso chamar à colação a filosofia. Ler é um compromisso entre a vida e a morte. A leitura foi uma estratégia que a humanidade inventou para aprender a aceitar a morte. Talvez se perceba por aí as razões por que tanta gente tem horror à leitura. Contrariamente ao que se diz, essas razões são boas razões, provêm da vitalidade animal que faz parte da espécie. Seja como for, e apesar dessa bondade natural, são razões infantis. Quando estamos a ler e suspendemos o corpo estabelecemos contacto com a nossa morte, vivêmo-la no corpo, enquanto o espírito - razão e imaginação - recompõem universos onde a vida seria possível. Ler não nos ensina nada de essencial a não ser a aceitação da nossa condição mortal, a aceitação da nossa morte. 

terça-feira, 22 de maio de 2012

Escavar na noite

Georges Braque - La Noche (1951)

No panorama da filosofia em Portugal tem estado particularmente activa uma corrente que pretende acentuar a dimensão cognitiva e científica da filosofia. Legítimo exercício, mas estranho para mim. Herdeiro de Kant, penso que os territórios foram definitivamente demarcados com a separação entre pensar e conhecer. A ciência produz conhecimento, a filosofia pensa um conjunto de problemas que a ciência, pela sua natureza empírica, não pode tratar. Mas o mais interessante para mim reside noutro lugar e noutra atitude. Chamar-lhe-ia, ao lugar, noite; à atitude, escavar na noite.

A noite é a imensidão que ainda não foi pensada, aquilo onde a luz do entendimento não penetrou. O acto de escavar na noite significa retirar dela pedaços que iluminamos dando-lhe um nome e uma definição. Todo este processo é muito mais literário do que científico. É um processo de pura ficcionalização. Alguns exemplos. A invenção da Ideia por Platão ou da substância por Aristóteles, a instituição do Cogito por Descartes ou a demarcação do transcendental por Kant são formas de escavar na noite, de lhe retirar um pedaço e de o iluminar, permitindo, com os materiais roubados e confeccionados pelo pensamento, construir mapas para nos orientarmos nessa noite que nos rodeia.

Nada disto tem a ver com a ciência, nem como uma filosofia dita científica, aquela que se faz em muitas universidades, fundamentalmente, mas não só, no mundo anglo-saxónico. Este exercício deixou de ter lugar no mundo académico, como a existência de um Nietzsche, outro grande escavador da noite, demonstrou já no século XIX. Talvez tenha chegado a hora de compreender que a Filosofia não pertence ao mundo da universidade, com os seus rituais e exercícios científicos. Escavar na noite não é uma ocupação digna de doutores e de professores doutores, gente de mãos limpas e unhas cortadas. Escavar na noite é um exercício de gente perdida, tipos que caem em poços quando espreitam os céus.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Exercícios de esquecimento

Nicolas Poussin - The dance to the music of time (1640)

Estudar filosofia criou em mim uma relação enviesada com o tempo. Os grandes filósofos são estudados sub specie aeternitatis e dialoga-se com os seus textos como se os seus autores ainda fossem vivos. Há no processo uma pressuposição, muitas vezes confessada e analisada, centrada na ideia de que mesmo quando tratam de problemas que emergiram no seu contexto histórico, as respostas que encontraram têm uma validade universal e eterna. Lê-se Platão como se lê um autor contemporâneo. Mais, Platão, Descartes ou Kant acabam por ter mais crédito do que um filósofo contemporâneo que ainda não passou o teste do tempo. 

Esta situação não é idêntica à da literatura. As grandes obras que fazem parte do cânone merecem a leitura eterna, mas ninguém se lembraria, por exemplo, de descontextualizar a Odisseia ou o D. Quixote. As narrativas remetem para um objecto narrado temporalmente localizado. É a arte, a techne do artista, que as torna imortais. Com a filosofia é diferente, como disse. No outro dia comprei a obra La République de Platon, do filósofo marxista francês Alain Badiou. Quando Badiou quer pensar a justiça ou a boa comunidade recorre ao eterno Platão.

Este treino acaba por distorcer a visão das coisas. É chocante pegar num livro de sociologia ou de psicologia, mesmo de física - se se fosse capaz de lê-lo - e observar as terríveis marcas da temporalidade. Descobre-se que o estado da arte evoluiu de tal forma que mesmo os estudantes da área já nem precisam de saber da existência daquela obra (nem tudo será assim, mas grande parte é). Este exercício de olhar para as teorias filosóficas sub specie aeternitas acaba por gerar, pelo menos dentro de mim, um estranho conflito entre o intelecto que se move no não tempo e a temporalidade do corpo e a historicidade da existência.

A filosofia acaba por ser um exercício de alienação da nossa condição temporal, uma forma de não enfrentar a mortalidade que nos cabe por termos vindo a este mundo. Talvez a assunção dos problemas filosóficos como eternos seja uma falsidade. Talvez os problemas pensados pelos grandes filósofos estejam todos ancorados na sua época e a ela apenas digam respeito. Esta hipótese conduziria a filosofia a uma situação estranha. A sua história seria dispensável, bastaria a aprendizagem de uma técnica de pôr problemas e de os resolver através da argumentação. Mas isto não significaria a morte da filosofia e a destruição de algo que conduziu muitos a estudá-la? 

No fundo, dado tipo de pessoas - aquelas que se dedicam aos estudos filosóficos - trazem consigo uma certa dose de perversidade, que se manifesta no prazer de olhar as questões que o tempo coloca de um ponto de vista não temporal. É o prazer de relativização do relativo, o prazer de se deslocar entre épocas como se elas não existissem. E daqui nasce a minha grande divergência com Platão. Ele defendia que o bom governante teria de ser filósofo. Mas isto não é verdade. O bom governante tem de saber lidar com o tempo e ter atenção ao tempo em que se encontra. Quem governa não pode ter uma visão distorcida da temporalidade. Essa cabe ao filósofo, que tem o trágico destino de contemplar teorias eternamente jovens enquanto o seu pobre corpo declina.

domingo, 20 de maio de 2012

O dragão e a crise

Elmer Bischoff - Dragon (1948)

A actual situação na Europa faz lembrar as várias lendas sobre o dragão que S. Jorge matou, libertando assim a espécie humana de uma terrível e incompreensível opressão. A analogia não está no facto de se ter encontrado um novo cavaleiro capaz de enfrentar a monstruosa situação em que mergulhámos, mas no que há de terrível e de incompreensível na opressão que cada vez mais europeus sentem sobre as suas vidas. Se o terrível se percebe muito bem, pois é sentido como diminuição das possibilidades das pessoas, sentido como empobrecimento económico, já a incompreensibilidade da situação é ela mesmo incompreensível. São tantos os comentadores, analistas e cientistas sociais, políticos e económicos a proferir oráculos e a ler no voo do monstro que deveríamos todos ter uma clara compreensão do que se passa. Mas não é assim.

As partes que se enfrentam no tabuleiro ideológico estão todas elas presas à sua história e aos seus anseios e aspirações. A memória e a expectativa, se trabalhadas pela simplificação das ideologias, tornam-se factores perturbadores da produção de um conhecimento útil do dragão que nos afronta. Há duas narrativas, interligadas entre si, que talvez estejam a ocultar a visão do problema. Em primeiro lugar a crise das dívidas soberanas; em segundo, a crise do Euro ou da zona euro. Haverá uma crise das dívidas soberanas ou múltiplas crises de múltiplas dívidas soberanas, exigindo cada uma delas produção de conhecimento e terapias diferenciadas? Por outro lado, haverá uma crise do Euro ou múltiplas crises enfrentadas por sociedades diferentes ao lidar com a moeda única? Esta pluralização dos problemas exigiria um olhar contextualizado para perceber não só como se chegou onde chegou, mas para encontrar soluções locais aceitáveis e não monstruosas. A tese que se ensaia aqui é a seguinte: a resposta europeia está errada não porque a Europa não tenha uma política global para responder à crise, mas porque a tem, não tomando em consideração as particularidades e propondo soluções globais para situações particulares diferenciadas. 

A formação global das respostas ao monstro precisa de ser flexível e tomar em consideração as particularidades de cada paciente. Estas particularidades têm relação com a história - quase diria a história clínica - de cada país europeu, mas também com o momento actual de adaptação a duas novas situações que se têm vinda a propagar como poderosos vírus. A globalização financeira e os limites do planeta para sustentar um tipo de economia fundada na intensificação desenfreada da faculdade de desejar. O que é importante perceber é que a resposta global da Europa só fará sentido se ela contiver as particularidades que a constituem, com o seu passado e os múltiplos modus operandi determinados por tradições diversas, bem como a consciência de que os limites do consumo e da vida voltada para esse consumo terão de ser encurtados, talvez draconianamente. Quando se discute, por exemplo, o aumento da produtividade, estaremos a discutir o problema certo? Nas narrativas vigentes - à direita e à esquerda - trata-se sempre de ser mais produtivo, mais eficiente e mais eficaz. Será, porém, isso que está em jogo? Não é isso que dá vida e alimenta o dragão? Chegou a altura de olhar para os locais e compreender como eles sofrem o impacto do global, para encontrar estratégias de sobrevivência.

Muito bem, dirá o leitor. E depois perguntará: mas não é isso o que se está a passar, a actual política europeia não é a estratégia de sobrevivência de um modo de vida na Alemanha à custa do empobrecimento  global dos seus parceiros? Se assim for, coisa da qual não tenho a certeza, teria chegado a hora de deixar a Alemanha entregue a si mesma. Se todas as partes fizerem um esforço intelectual para perceber isto, talvez comecem a olhar paras as múltiplas realidade que têm à frente dos respectivos narizes, talvez haja uma possibilidade da Europa, Alemanha incluída, encontrarem um caminho.

sábado, 19 de maio de 2012

Missa Pro Defunctis (VII)


7. Sequentia: iii. Liber scriptus

Rasgar o livro no desamparo do tempo,
Apagar o rasto lúgubre da tinta,
Das palavras fazer luz e quimera,
E da consciência água, corre para o mar,
Floresta límpida, lobo e cordeiro,
O sossego no canto dos pássaros.

É de pedra o livro, esculpido a cinzel.
A tua perda, toda naquela lei,
A dor que atravessa o ventre
E inclina para o chão.
Belas as horas de balanço,
O deve e haver ponderado
No espelho da eternidade.
Um sino repica ao longe.
As sirenes avançam inquietas,
Mancham a paz do dia,
O barulho pulsa-te o coração.

Para que serve tanta leitura,
A lei no aconchego do lar?
O horto incendiado, a casa roubada,
O corpo entregue ao som da fanfarra.
Degolada, a linguagem traz,
Palavra a palavra, o veredicto:
Agora começaste, mal soletras
E tudo caminha para a fronteira.
Para que serve a voz de comando?
A trombeta zune sem fim.

A rapariga, dentes cariados,
Pele em escaras ardentes,
Chama, murmura-te o nome,
A escuridão fede a álcool e sexo.
Não tens navalha que corte,
Interruptor para apagar a luz.
Ilumina-a o sílex deste livro
Suspenso sobre ti
Na escarpa sombria, voa o falcão.

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Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.



sexta-feira, 18 de maio de 2012

Dietrich Fischer-Dieskau, In Memorian


1925-2012

A alegoria do futebol


A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

O futebol dá-nos uma excelente imagem da situação geopolítica global. Mancini, treinador italiano, foi campeão em Inglaterra à frente de um clube propriedade de um xeque árabe. Há anos atrás, Mourinho foi campeão na mesma Inglaterra num clube propriedade de um milionário russo. O Benfica, hoje em dia, é raro apresentar um português na equipa principal, enquanto até à década de 80 do século passado só tinha portugueses na equipa. Em todo o lado, os clubes de futebol são cada vez mais globais, apesar de terem a sua base de apoio em territórios locais.

Quem pensar porém que o futebol, com esta relação entre o local e o global, ultrapassou ou destruiu as identidades nacionais está enganado. Dentro em breve, teremos a prova em contrário e dezasseis selecções nacionais vão incendiar, Europa fora, a imaginação patriótica dos cidadãos dos respectivos países. O futebol mostra a complexidade das nossas fidelidades. A globalização das equipas de futebol não anula a identificação com a selecção nacional. O mais provável mesmo é que, quanto mais os clubes são globais na sua constituição, maior seja a chama e o fervor patriótico na relação com as selecções nacionais.

Se nós conseguimos, ao nível das paixões desportivas, articular racionalmente diversos níveis de pertença, nada justifica que isso não seja possível ao nível político. É evidente que a unidade política de sobrevivência, hoje em dia, não é o Estado-Nação, mas o planeta tomado como um todo. Assim como, com a emergência do Estado-Nação, o nível local ganhou novos sentidos e funções, também agora, com a globalização da economia e da própria vida, o Estado-Nação ganhará outros contornos.

O futebol mostra que continuamos a dar muito importância ao nível nacional. É de lá que vem a nossa identidade política e cívica. Se o Estado-Nação, pelo menos o europeu, vem perdendo poderes soberanos para instâncias internacionais, ele serve como uma espécie de arca de Noé onde os indivíduos lutam para sobreviver no dilúvio da globalização. Isto significa que o Estado-Nação é um lugar de cooperação. Para que seja apetecível cooperar, é necessário que haja um módico de justiça social e equilíbrio na distribuição dos bens socias resultantes da cooperação. É isto que o actual governo, preso ao espectáculo da globalização, despreza, criando fracturas sociais que tornarão a cooperação entre os portugueses muito mais difícil. O futebol, através do apoio à selecção nacional, ensina-nos algo muito importante: queremos estar todos, como iguais, neste barco à deriva e enfrentar o perigo.

Michael Sandel, The lost art of democratic debate

Evitar equívocos


A decisão de François Hollande e do novo governo francês de baixar os salários dos cargos políticos em 30% pode gerar equívocos inúteis num país miserável, o nosso, dado à cultura da inveja. A decisão de Hollande pode fazer todo o sentido em França, mas querer que ela seja aplicada em Portugal, como logo se levantaram inúmeras vozes sempre prontas para o justicialismo, não faz sentido. Os salários do Presidente da República, do primeiro-ministro e dos ministros são, de facto, muito baixos para as responsabilidades que têm. Haverá por aí boa gente que, no mundo empresarial, ganhará mais e com uma responsabilidade infinitamente mais pequena. É bom que não se faça demagogia e não se incentive ainda mais a inveja. Mesmo num país em dificuldades, com um salário mínimo miserável e 20% de desempregados, os salários dos governantes portugueses são baixos. E, como é notório, estou muito longe de morrer de amores por quem nos governa ou tem governado. O problema não é os salários e ajudas de custo que auferem, mas as políticas que executam. Isso, todavia, é da responsabilidade dos portugueses que os elegeram.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Petrificados pela Medusa

Arnold Böcklin, Medusa (c. 1878)

O olhar da Medusa petrificou a Europa. O monstro aproxima-se inexorável, mas quem deveria agir está paralisado. Estátuas, os dirigentes europeus abandonaram tudo à sabedoria do destino. Perante a paralisa geral, tudo o que pode correr mal tem fortes possibilidades de correr muito pior. O caminho que a Europa traçou para a Grécia levou ao que levou, mas o fascínio da Medusa é de tal ordem que a ninguém ocorre que outros caminhos possam ser possíveis. O que está em jogo é o destino da Europa e a vida de milhões e de milhões de pessoas, mas os dirigentes europeus parecem mais comentadores da blogosfera, interessados em afirmar a sua pequena ideologia, do que gente capaz de enfrentar o terrível monstro. Não haverá por aí nenhum Perseu?

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Condenados à liberdade

Esta manchete do antigo Diário de Lisboa presta-se facilmente a um enorme equívoco. Plausivelmente, a notícia é de 1973 - não se consegue perceber a data - e estamos em plena ditadura, com o Prof. Marcello Caetano no presidência do Conselho de Ministros. A ideia de sacrifício pedido aos portugueses parece permitir estabelecer uma analogia entre a situação de então e a que vivemos hoje em dia. Recolhi a imagem no facebook e alguns dos comentários enfatizavam que a diferença seria a da existência da liberdade, mas que rapidamente caminharemos para uma nova ditadura. Será assim? Será semelhante a situação de hoje àquela que se vivia no período anterior ao 25 de Abril de 1974.

A crise retratada no Diário de Lisboa é a resultante do choque petrolífero dos anos setenta, a nossa deve-se à questão da dívida soberana. Mas o problema não está aí. O problema é a questão da liberdade. Naqueles anos, a liberdade era sentida como uma antídoto à vida sacrificada, como uma promessa onde uma vida boa e decente seria possível. A liberdade representava a possibilidade de fugir ao altar onde as esperanças eram ritualmente executadas. Não por acaso, Marcello Caetano pede sacrifício económico e sacrifício da liberdade.

O que mudou foi o estatuto da liberdade. A liberdade deixou de ser um direito que se reivindica ao soberano para passar a ser, como muito bem notou Zygmunt Bauman, um dever que eu tenho de realizar. Passos Coelho não dirá que algumas liberdades terão de ser sacrificadas, mas apela continuamente a que todos - desde jovens a velhos desempregados - realizem a liberdade através da iniciativa. Assim, o drama é que a liberdade não significa apenas o direito de reunião e de associação, de participar na vida cívica ou poder tomar a palavra e exercer o direito de crítica. A liberdade é também a exigência de ser completa e totalmente responsável pelo seu destino, não contar com uma teia social de protecção e de enquadramento, assumir-se como mónada racional que apenas conta consigo. 

Os ataques ao Serviço Nacional de Saúde, ao sistema público de educação e à protecção social não são feitos em nome de uma aspiração à ditadura. Pelo contrário, eles são o efeito de uma exigência moral de liberdade, são o resultado de um imperativo que nos manda ser livres até às últimas consequências. A ideologia dominante, aquela que tomou conta da governação portuguesa, olha para cada ser humano como uma encarnação do herói americano que, com a sua autonomia, independência e coragem, empurra, a cada dia que passa, a fronteira mais para lá, conquistando território, desbravando caminhos sem contar com qualquer laço social de protecção. Esta narrativa subjacente às práticas governativas justifica os sacrifícios em nome da liberdade e não da ditadura. Muitos dos comentadores de direita e dos bloguistas liberais que enxameiam o espaço público representam a realidade social à luz desta narrativa imaginária.

Se a esquerda quer perceber o que se está a passar, então o melhor é deixar de lado os quadros mentais de há 50 anos e compreender as novas realidades e a natureza moral delas. A ameaça não vem da ditadura, de um governo despótico que tolha a iniciativa, mas de uma exigência de liberdade que se tornou um terrível fardo para a generalidade dos indivíduos. Nunca como hoje fez sentido a proposição de Sartre "o homem está condenado a ser livre". Cortados os elos de ligação do indivíduo à comunidade, cada um está só com a sua liberdade. A família está em destroços e o Estado social é destruído metodicamente em cada dia que passa. Tudo isto, porém, é feito em nome da liberdade, em nome desse projecto delirante que vê no homem um mero ser racional desligado da sua natureza social.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Missa Pro Defunctis (VI)

6. Sequentia: ii. Tuba, mirum

Oiço a voz cansada e pálida da Terra,
O murmúrio das águas sob o impulso do coração.
Das janelas, avistam-se procissões,
Homens e mulheres caminham sem destino,
E gritam na tarde ao som dos foguetes:
Das mãos se desprendem, ferem os céus,
E voltam para a Terra, incendeiam searas,
Calam na boca gritos, dispersam aves,
A multidão perdida e ausente dos crentes.

O gemido de dor, ali aceso, abre-se
Para um jardim de plantas bravias, agora secas,
Batido pelo vento da serra, vento de fogo,
A crepitar na espessa bruma do dia.
Do chão sobe um ruído de helicópteros,
Suspensos no ar, presos na gravidade,
Habitados por gente desfigurada,
As faces translúcidas, o sangue aos borbotões,
E os dentes descarnados, canas cortadas,
De raízes minguadas e feridas pelo sal.

Uma fila de homens de toga, negra toga os veste,
Caminham inclinados para a frente,
Murmuram pequenas palavras quase sem sentido,
Amaldiçoam as árvores que cobrem a floresta,
E suspiram pela chegada da cólera ou da peste,
Sonhando com bubões pelas virilhas,
Gânglios a intumescer se a tarde cai,
Para rebentar mal chega a noite,
Com um ruído de tambores pelas ruas
E anúncios a desodorizante na televisão.

Cantam! Vozes trementes elevam-se aos céus,
E as nuvens enegrecem, sempre mais compactas,
Paredes de chumbo suspensas dos astros.
Um relâmpago corta a planície
E as vozes calam-se no ardor da cidade.
Aqui e ali os carros chocam, vibram por momentos,
E suspendem para sempre a curta viagem.
Um zumbido vem de dentro da terra,
E nos céus os anjos dormem presos na eternidade.

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Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.

Exames, aviso à nevegação


Uma das coisas mais extraordinárias que a antiga ministra Maria de Lurdes Rodrigues conseguiu foi politizar a avaliação externa dos alunos. Os exames e outras provas organizadas pelo Ministério da Educação passaram a ser, na opinião pública, correlacionados com os objectivos políticos dos governos. Seria de esperar que Nuno Crato pusesse fim a esse estado de coisas. No entanto, as notícias que vão chegando e as provas que se vão analisando não são muito animadoras. 

É preciso que se perceba muito bem que uma política contrária ao "facilitismo", fundado no eduquês anterior, não é o "dificultismo", agora fundado no cratês em vigor. Exames e provas de avaliação externa são instrumentos técnicos que devem ser tecnicamente produzidos, de forma a que tenham qualidade. Visam medir o desempenho dos alunos, retratando fielmente os vários níveis de aquisição do currículo que eles fizeram. 

Os exames e outras avaliações externas não servem para justificar as políticas de um governo nem as idiossincrasias dos detentores do cargo de ministro da educação. Dito de outra maneira, as provas devem estar construídas de maneira a que os excelentes alunos tenham excelentes notas, os bons, boas notas, os suficientes, notas suficientes, e assim sucessivamente. Os exames devem discriminar os desempenhos correctamente, mas não seleccionar uma elite e eliminar todos os outros. Chega de brincadeiras com a vida das pessoas.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Lutas tribais

Anónimo pré-histórico - Luchas Tribales
Calco de M.A. García Guinea, 1958. Abrigo Santuola. Nerpio.

Já não nos enfrentamos com arcos e flechas, mas o tribalismo e as lutas tribais parecem estar inscritas no nosso ADN. Mesmo perante o perigo mais iminente, milénios de civilização não ajudaram muito no encontro de soluções que ponham de lado os interesses paroquiais. O impasse grego e mais uma derrota da senhora Merkel não são suficientes para arrefecer os ímpetos com que as partes se defrontam. Se é verdade que a violência física decresceu, o que levou Peter Singer a reavivar a ideia de progresso moral da humanidade, também é verdade que emergiu outro tipo de violência, uma violência mais sofisticada. O que se passa na União Europeia é uma vergonhosa guerra digna da pré-história. No espírito da União Europeia existia a esperança de ultrapassagem dos tribalismos, mas aos primeiros abanões do barco a guerra étnica veio de imediato ao de cima, mesmo que disfarçada na retórica económica. A saída - isto é, a expulsão - da Grécia do Euro é apenas mais uma faceta da exclusão do estrangeiro. A forma como as grandes potências europeias geriram e gerem a crise das dívidas soberanas faz lembrar os rituais sacrificiais, onde as vítimas eram escolhidas entre os estrangeiros ou os prisioneiros de guerra. A União Europeia em vez de ter adoptado como hino a Ode à Alegria, deveria ter escolhido um Requiem.

domingo, 13 de maio de 2012

Fantasias argumentativas

Pedro Proença - Argumentação fantasiosa (1995)

Toda esta discussão - toda esta bavardage - que ocupa a esfera pública está dentro daquilo a que, por motivos bem diferentes, John Rawls chama o véu da ignorância. As partes em confronto julgam possuir uma fórmula, talvez o cálculo de probabilidades, para fundar as suas palavras sobre o que vai acontecer. Mas aquilo que o futuro nos reserva é incerto, está coberto por esse véu que nada deixa ver e nada deixa saber. Os actores políticos, económicos e sociais, os meros cidadãos que, como eu, tomam posição deveriam, em última análise, estar em silêncio. Esse silêncio não significa falta de interesse pela vida em comum nem uma tentativa de ocultar os problemas. Tão pouco significa medo perante aquilo que o tempo nos destina pelo entretecer das acções humanas e dos factores naturais.

Significa outra coisa. Os actores mais empenhados falam como se estivessem dentro de uma lógica do risco. Quando se fala de risco estamos já num certo domínio da racionalidade, onde o cálculo das probabilidades permite domar os perigos que toda a acção traz consigo. Mas será esse tipo de relação que temos com o mundo? Pergunto-me, muitas vezes, o que esconde toda essa bavardage na esfera pública. A resposta é sempre a mesma: o medo. Os actores, fundamentalmente, os responsáveis, aqueles a quem cabe tomar decisões, estão em pânico. A conversa tola, os discursos sem fim que fazem chegar ao mundo escondem o medo. Medo de quê? Medo de que a realidade não seja domesticável segundo uma teoria do risco, que nenhum cálculo de probabilidades seja razoável, medo que o futuro esteja liberto para tomar o caminho que entender, independentemente das decisões que tomamos.

O silêncio significaria, então, o reconhecimento disso mesmo e mostraria a coragem de olhar a incerteza de frente. Estes são tempos de profunda incerteza, onde nem o cálculo de probabilidades consegue domar e racionalizar o que vem aí. O silêncio seria a oportunidade para perscrutar o horizonte que se aproxima. Mas cegos, nunca nos calamos, enquanto o medo cresce e de tudo e de todos toma conta. Os diálogos, as controvérsias, todas essas proclamações inúteis, não passam de fantasias argumentativas, subreptícias confissões de que nada se sabe e de que se teme tudo o que está para vir.

sábado, 12 de maio de 2012

A fase Guterres de Passos Coelho


Um dia, durante a sua governação, António Guterres deve ter descoberto que todas as suas boas intenções esbarravam na natureza da sociedade, na tendência que tinha para a imobilidade. Deve ter vislumbrado que a sua paixão pela educação era estéril e a salvação da pátria não viria por ali. Passos Coelho também chegou cheio de ideias transformadoras da comunidade indígena. Com ele, seríamos uma pátria de empreendedores. As contínuas declarações sobre o desemprego como oportunidade e o mantra do empreendedorismo são a constatação, já um pouco desesperada, que a realidade é outra coisa, e que o mundo não se move em conformidade com os nossos vácuos desejos. Chegou ao seu momento Guterres. A diferença é que Guterres era muito inteligente e, em breve, se aprestou a deixar a governação e emigrar para outras paragens. E, como Passos Coelho tão bem sabe, emigrar é uma óptima iniciativa.

J. Rentes de Carvalho, O Rebate


O Rebate é um romance de 1971, de J. Rentes de Carvalho, reeditado agora pela Quetzal. Trata-se de uma descontrução cruel da  mitologia da vida na aldeia, das virtudes do ruralismo tão incensadas pelo regime do Estado Novo. Ao mesmo tempo é uma encenação dos equívocos do reconhecimento de si. O autor explora a tensão entre a comunidade rural, a aldeia, e o emigrante que retorna para sublinhar e ver reconhecido o seu triunfo social em terras de França.

1. Um universo distópico

O paternalismo salazarista - esse prolongamento de uma certa cultura portuguesa bastante antiga - erigiu o mundo rural como arquétipo da bondade, uma espécie de antecipação do paraíso, onde a vida virtuosa dos homens não seria contaminada pelas tentações das metrópoles, esses lugares de perdição por excelência. Rentes de Carvalho, porém, ilumina o espaço rural e permite percebê-lo na sua realidade. A aldeia não é o espaço de uma vida feliz, não é a materialização de uma utopia. De facto, tal como é retratada pelo autor, ela é uma ilha. Ilha significa, contudo, uma espécie de espaço cortado com o mundo, que no seu isolamento gera um modo de vida absolutamente distópico.

A avidez, a inveja, a vigilância contínua sobre os outros e uma sexualidade recalcada e, ao mesmo tempo, exuberante no seu desejo, tensa nas mitologias que a compõem e lhe dão sentido, criam uma atmosfera opressiva, perversa, onde a iniquidade dos actos é moeda corrente. Sem praticamente referir a situação política do país - há uma alusão na figura do padre que abandona o sacerdócio e que o narrador deixa perceber que talvez existam motivações políticas nesse abandono - a aldeia de O Rebate não é apenas a desconstrução da aldeia mítica da nossa infância, mas também a construção de uma imagem do país, da natureza moral da vida comum, da violência surda, mas activamente presente, que percorre o viver comunitário.

Não há grandeza nas personagens, apenas cálculo de oportunidades, enorme tensão proveniente das paixões comuns dos homens, e um exercício contínuo de dissimulação. Nesta ilha rural, a autenticidade das intenções, a veracidade dos actos e a verdade das palavras foram substituídas por uma arte ficcional, cuja finalidade é dissimular, esconder dos outros, abrir o caminho para obter uma vantagem - sexual ou financeira - pela surpresa e pelo engodo. É a este universo cruel e mesquinho que retorna Valadares, o emigrante que acabou por enriquecer em França através do casamento com uma francesa.

2. Os equívocos do reconhecimento

Rico e casado, Valadares retorna para a festa da aldeia em busca do reconhecimento de si e do seu triunfo. Volta para resgatar a derrota social de ter de emigrar, de ter de ir buscar fora da aldeia os bens materiais que, eventualmente, lhe assegurariam a admiração da comunidade e a prestação de vassalagem que o dinheiro deveria trazer consigo. Também o retrato de Valadares é cruel. A emigração e o triunfo social não representam qualquer transformação interior. O universo que o move é o mesmo que tinha à partida, o desejo que o empurra para a aldeia não é diferente daquele que o levou a partir. Ser um entre os outros, ser como os outros, embora mais importante, porque mais rico, que os outros.

Em França aconteceram-lhe coisas - um casamento com uma rapariga estouvada, segundo os modelos da aldeia, arquitectado pelo sogro, e com esse casamento veio o dinheiro - das quais não foi efectivo protagonista e que não tiveram impacto interior, não mudaram a sua forma de ver o mundo, não o libertaram das pequenas mitologias aldeãs com que tinha crescido. É este casal inesperado que é transportado para o universo fechado da aldeia transmontana. Ela vinda de um mundo radicalmente diferente, um mundo que não lhe permite sequer compreender a natureza daquele onde cai. Ele persistindo no que era, trazendo apenas apontamentos dessa vida em França não como manifestação de uma mudança de si, mas como forma de sublinhar a sua nova importância no universo social da aldeia.

A estranheza de Louise, a mulher de Valadares, e a riqueza e pretensões deste vão chocar com o mundo organizado e estruturado da aldeia. A dissonância do casal não conduz à interrogação das consciências e à confrontação com outras formas de habitar o mundo, mas ao exacerbar das atitudes arcaicas e ao reafirmar das práticas perversas que confirmam a solidez da identidade cultural daquela comunidade. A cena da explosão do cio colectivo provocada por Louise ilumina essa perversa solidez identitária. A fuga do casal, envolto no mais puro ridículo, é o resultado final a que conduziu a equívoca busca de reconhecimento do pobre emigrante, daquele que, apesar de algumas aparências diferentes, se mantém estruturalmente fiel ao universo de onde partiu, universo que, contudo, já não o aceita. Abel Valadares é uma figuração de uma demanda de si condenada ao fracasso, pois baseada apenas em factores de ordem social e no retocar da máscara. Retocada esta com elementos estranhos, a comunidade apenas detecta a dissonância e, movida pela sua natureza cruel e impiedosa, pulveriza as pobres pretensões do emigrante bem sucedido.

3. Uma visão de Portugal

Quem conhecer um pouco da História de Portugal não pode deixar de estabelecer uma curiosa analogia entre o casal Valadares e a história dos estrangeirados na cultura portuguesa. De tempos a tempos, a natureza castiça da nossa cultura - científica ou literária - era desafiada pelos chamados estrangeirados. Estes traziam uma novidade, mas esta caía num meio que em vez de ver nela um desafio que propunha renovação e metamorfose, apenas procurava assimilá-la de forma a que não alterasse o fundo do casticismo vigente. De certa forma, Louise é essa imagem de uma novidade desafiante ao nível dos costumes e da economia do desejo. A forma como foi acolhida é uma bela alegoria das dificuldades que, durante muitos séculos, teve a cultura portuguesa de dialogar com o universal proveniente de outras paragens.

O Portugal de O Rebate vem na continuidade do Portugal de A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz. Onde, todavia, Eça mitifica e prodigaliza de virtudes essa cultura particular e castiça, Rentes de Carvalho desconstrói e manifesta a sua natureza distópica e totalitária. Esse Portugal ruralizado não é apenas um país tecnologicamente atrasado, mas um universo mesquinho, cruel e doentio. O Rebate é, em última análise, o diagnóstico, com a crua exposição dos sintomas, de uma doença que corrói o país.

Fará ainda sentido, passados 40 anos da publicação original e com as transformações sociais e políticas que ocorreram, ler Portugal através desta obra? Se se abandonar a descrição totalitária e nos concentrarmos na natureza da cultura, descobrimos que, para lá do verniz que os mass media e a integração na União Europeia trouxeram, dificilmente se deixa de ser aquilo que se é. Os campos despovoaram-se, as cidades encheram-se, bem como as escolas e as universidades. Isso significa, porém, que o campo invadiu a cidade, tomou conta das escolas e transformou a universidade naquilo que se vê nas Queimas das Fitas, nos espectáculos de música pimba que tanto alegram os nossos estudantes e nas monumentais bebedeiras a que se entregam. A aldeia desapareceu para invadir tudo e de tudo tomar conta. A dinâmica da perversidade que Rentes de Carvalho retratou disseminou-se e age difusamente até naqueles sítios onde a imparcialidade e a universalidade deveriam ser a pedra-de-toque.

J. Rentes de Carvalho (2012). O Rebate. Lisboa: Quetzal.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

O moralista sem vergonha


Passos Coelho tem vocação de tele-evangelista. Mais do que governar os portugueses, ele quer convertê-los à sua fé e purificar a baixa moralidade do indígena. O entusiasmo é tanto, a iluminação divina é de tal ordem, que não tem um módico de vergonha. O desemprego é, no fanatismo que o transporta, uma oportunidade. Mesmo que isso seja verdade para alguns, raríssimas excepções, um primeiro-ministro responsável e razoável nunca se lembraria de abrir a boca para dizer tal coisa.

Lições gregas



Anda meio mundo ufano com a vitória de Hollande em França. Não é má notícia, mas os portugueses tirariam maior proveito em estudar o caso grego. A França pertence ao centro da Europa, a um universo do qual não fazemos parte, a não ser como fornecedores de mão-de-obra. As coisas são o que são. A Grécia é como nós um país periférico e do Sul, um país que percorreu mais depressa o calvário da dívida e das políticas de austeridade.

A primeira lição é a da fragmentação do corpo eleitoral. Menos de um terço dos eleitores (e só 65% votaram) deram o seu voto aos dois partidos do arco governativo. O sistema político grego tornou-se muito complexo, com 32 partidos a concorreram às eleições e sete a elegerem deputados (ainda três a ficarem à porta do parlamento). A diferença entre o partido mais votado e o que elegeu menos deputados não chega a 13%. A tradicional divisão esquerda e direita tomou contornos novos e mais complexos, onde a divisão pró-troika e contra-troika tem um papel importante, a que se adiciona a divisão entre pró-europeus e contra-europeus. Um panorama bizarro.

A segunda lição diz respeito ao crescimento dos extremos. O partido de extrema direita, Aurora Dourada, que em 2009 valia 0,29% vale agora 6,97% e 21 deputados, e faz já troar a voz e as botas cardadas. Surgiu uma nova organização de direita anti-troika com 10,6% e a esquerda à esquerda dos socialistas, três partidos, vale agora 31,37% (em 2009, valia 12,14%), quase tanto como os partidos da governação, que passaram de 77,4% dos votos para 32%. A situação grega é perigosíssima para os gregos e para a Europa. À fragmentação política adiciona-se uma fractura no consenso global necessário para o funcionamento da democracia.

A terceira lição liga-se às causas da implosão. Os gregos perceberam que as elites governantes, de direita e de esquerda, foram absolutamente irresponsáveis, ao conduzirem a situação política e económica a um beco sem saída. Este panorama recebeu, porém, a pior das respostas: a penalização moral dos gregos através do empobrecimento abrupto das populações. A Grécia, como Portugal, precisa de rigor na gestão das contas públicas. Mas esse rigor precisa de tempo para que a alteração das políticas não signifique uma catástrofe inominável. A política de austeridade forçada significou que esse tempo não foi dado aos gregos nem a nós. A catástrofe grega já chegou. Esperemos que as eleições na Grécia ensinem alguma coisa à União Europeia e ao governo português, adepto incondicional da austeridade e do rápido empobrecimento dos portugueses.