segunda-feira, 16 de julho de 2012

Witold Gombrowicz, Pornografia


Um dos comentários mais correntes sobre o romance de Gombrowicz refere a inexistência de cenas pornográficas em toda a obra. No sexual reality. Everything remains in acondition of sexual potential. It is exactly this that Gombrowicz calls pornography.” Esta leitura coloca, numa perspectiva muito aristotélica, a tensão romanesca entre o sexo em acto e o sexo em potência, dado por um clima erótico que nunca se concretiza. A pornografia seria, segundo esta perspectiva, esse estado potencial da sexualidade que não se realiza, que suspende a sua consumação e evita tornar-se efectiva. Uma leitura legítima. No entanto, vale a pena pensar mais demoradamente sobre o vocábulo que dá título ao romance.

Pornografia significa “representação de elementos de cariz sexual explícito, sobre tudo quando considerados obscenos…” (dicionário Porto Editora). Se se descer à etimologia da palavra encontramos porno- (do grego porné, prostituta) “elemento de formação de palavras que traduz a ideia de prostituição” (dicionário Porto Editora) e grafia que nos envia para a escrita, para a representação de algo através da escrita. Isto significa a existência de, pelo menos, duas camadas de sentido.

O nível mais superficial do vocábulo remete para representação obscena, que fere a decência e o pudor, de uma sexualidade explícita. O nível mais fundamental vê a pornografia como uma representação do comércio sexual, da venda de favores sexuais. Estamos no domínio da troca, mas de uma troca específica. Toda a relação sexual está fundada na troca, mas numa troca que pressupõe uma certa reciprocidade nas coisas trocadas (prazer, afecto, amor, etc.). O que prostitui a relação sexual é a introdução de um elemento estranho à reciprocidade. Pode ser o dinheiro, mas também qualquer outro bem. Assim aquilo que a origem etimológica da palavra sublinha como pornográfico não é a prostituição, mas a representação dela, a sua grafia, o escrever sobre ela. Pornográfico é escrever ou representar trocas sexuais ou de prazer, mesmo que potenciais, assimétricas e sem reciprocidade.

O romance de Gombrowicz é pornográfico neste sentido último. É-o de duas maneiras. A primeira do ponto de vista da narrativa propriamente dita. A segunda, a partir da consideração sobre a natureza das obras de arte em geral. De forma bastante sub-reptícia, o romancista deixa transparecer, na história que narra, uma consideração sobre a própria arte enquanto atitude pornográfica, não precisando de dizer uma única palavra sobre o assunto. Limita-se a escrever o seu romance.

A história passa-se numa propriedade rural, na Polónia, aquando da ocupação alemã. Para lá dirigiram-se, vindos de Varsóvia, dois amigos de meia idade, um escritor e um encenador. Não se pense contudo que esse horizonte político tem um relevo decisivo na construção da narrativa. Na verdade, os parcos acontecimentos que têm a ver com a luta política – a perda de coragem de um dos chefes da resistência e a necessidade de ser executado – são mobilizados pela encenação e pela configuração da intriga pelos dois amigos, mas com fins ligados aos seus desígnios pornográficos. O que está em jogo é a tensão erótica entre os dois homens de meia idade e um par – Henia e Carol – de jovens de 16 anos. Estes nada têm a ver, do ponto de vista amoroso, um com outro. Henia está noiva de um advogado, Waclaw, e ambos sentem-se quase como irmãos. Mas Witold e Fryderyk, os dois amigos, descobrem, cada um por seu lado e através de indícios que eles próprios imaginam, que os jovens são feitos um para o outro. O hipotético amor entre ambos é uma criação literária de Witold (o nome próprio de Gombrowicz) e uma encenação de Fryderyk, o encenador. O que está em jogo, pelo menos numa primeira abordagem, é o modo como a arte – a do escritor e a do encenador – pegam nos elementos que a vida fornece e configura uma nova realidade de acordo com os desejos do artista.

O jogo de Witold e de Fryderyk está longe de ser inocente. Excluídos, pela idade, do prazer que a beleza juvenil fornece, encontram na sua “produção” o gozo erótico que a realidade lhes nega. Todas as manobras – na verdade, verdadeiros exercícios artísticos – que visam a aproximação amorosa de Henia e de Karol são representações de um erotismo que lhes foge. Como se percebe, há uma assimetria instalada entre os fruidores e os objectos da fruição. Os vários acontecimentos em que o candidato a marido de Henia se vê confrontado com a traição desta são verdadeiras encenações, exercícios de pura representação. E são de tal maneira representações cenográficas que Waclaw sente a completa artificialidade das cenas, a sua falsidade, e ao mesmo tempo pressente a traição de Henia, não no facto de haver uma relação sexual entre ela e Karol, mas no jogo representacional a que se entregam, como se os jogos – em aparência insólitos – transportassem uma carga erótica desmesurada, que a idade dos participantes não poderia alguma vez sustentar. A traição não está no acto, nem na sua possibilidade, mas na representação artificiosa desse mesmo acto.

Em nenhum momento do romance, Gombrowicz descreve uma cena sexual. A pornografia não está nos actos. Tão pouco está no clima potencial que, a cada momento, pode dar lugar ao exercício da sexualidade. Pornográfico é o jogo de representações que os amigos, através de uma subtil manipulação dos acontecimentos, produzem, explorando a assimetria entre os gozadores e os objectos do gozo. Não há qualquer reciprocidade entre Witold e Frederyk e Henia e Karol. A pornografia está toda na extracção de prazer através de uma representação a priori desse prazer e da manipulação da realidade de forma a que ela coincida com essa representação. Na manipulação dos acontecimentos por parte dos dois amigos encontra-se a assimetria que há entre o cliente e a pessoa prostituída. Assim como pornografia significa literalmente a escrita, a grafia, de uma assimetria na troca de prazeres eróticos, o que o romance encena é uma representação de uma assimetria entre os dois homens de meia idade e os jovens objectos de desejo, representação essa que se funda na invenção (mais uma representação) de um desejo, o dos jovens um pelo outro, que não existia. Estamos sempre no domínio das grafias, isto é, das representações e das ficcionalizações. Na verdade, existe aqui uma revelação. Não há prazer que não seja ficção e encenação, pura fabricação. 

Por outro lado, Pornografia pode ser lido como uma alegoria sobre a própria arte. Entre o artista e o consumidor de arte (o leitor de romances, o espectador de uma peça teatral, para nos fixarmos em dois exemplos da própria obra, os quais são extensíveis a todas as áreas artísticas) existe uma relação assimétrica. A pornografia nasce do facto do artista estar consciente dessa assimetria, de a representar e de querer que a realidade corresponda a essa assimetria. Uma troca não assimétrica residiria no facto de a cada narrativa recebida o leitor construir a sua narrativa e oferecê-la ao escritor, a cada encenação assistida o espectador em vez de pagar o bilhete produzir a sua própria encenação. Ora o mundo artístico implica a diferenciação e a assimetria. Implica que uns sejam activos, produtores de obras de arte, e outros receptores passivos. Sem esta assimetria a arte não poderia existir. Pornográfico, no entanto, não é a mera assimetria, a falta de reciprocidade entre autor e receptor, mas a representação que o artista faz dessa situação e o prazer que daí retira. Pornografia é a consciência de que se proporciona um dado prazer através de uma fabricação – a obra e arte – que requer e mantém a diferença absoluta entre o criador e aqueles que recebem – ou pagam – os artefactos criados.

Witold Gombrowicz (2012). Pornografia. Alfragide: D. Quixote. Tradução do polaco por Teresa Fernandes Swiatkiewicz

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