sábado, 22 de setembro de 2012

Paul Auster, No país das últimas coisas


Apesar de a literatura já apresentar casos que poderiam ser descritos como utopias, como a República, de Platão, é por volta de 1516 que Sir Thomas More escreve uma obra a que dá o estranho nome de Utopia. Literalmente, utopia significa não-lugar. No caso da Utopia, de Thomas More, esse não-lugar é uma ilha, onde os homens vivem em harmonia uma vida motivada pelo bem comum. Do ponto de vista literário e filosófico, estes não-lugares – que proliferaram a partir do século XVI – são visões felizes da vida em sociedade, criações imaginárias onde o mal e a injustiça – isto é, as diversas manifestação do egoísmo – não estão presentes. Não por acaso, o texto fundador do pensamento utópico moderno coloca a utopia numa ilha, como se a água pudesse evitar a contaminação da terra pura da felicidade humana.

Se o pensamento utópico moderno se desenvolve a partir do século XVI, o século XX vê chegar em força as descrições distópicas, das quais se podem destacar O admirável mundo novo, de Aldous Huxley, 1984, de Georges Orwell, e O zero e o infinito, de Arthur Koestler. Distopia significa, literalmente, um lugar de dor, de privação ou de infelicidade. As distopias referidas apresentam um carácter de intervenção política e social, uma denúncia de uma sociedade que perdeu a liberdade a favor de um modo de vida totalitário. O romance de Paul Auster, No país das últimas coisas, instala-se deliberadamente no território das distopias contemporâneas. Contudo, o seu carácter de intervenção política directa está bastante mais diluído do que nas obras já referidas.

No romance de Auster, Anne decide ir à procura do seu irmão a uma cidade para onde ele partiu como correspondente de imprensa, mas de onde nunca deu qualquer notícia nem sinal de vida. O romance é todo ele uma longa carta escrita por Anne, a um velho amigo, sobre a sua vida nessa cidade. Quando chega à cidade, a protagonista depara-se com um cenário pós-apocalíptico, onde o modo de vida habitual desaparecera sem que se saiba muito bem a verdadeira razão. Um dos traços da cidade é a sua crescente insularização, o estar a isolar-se cada vez mais do mundo, de tal modo que se ainda é possível que os forasteiros entrem, é muito improvável que alguém possa alguma vez sair.

Se o acontecimento que fez colapsar o modo de vida habitual não é descrito nem explicado no livro, há no título uma indicação preciosa. Que coisas são as últimas coisas? O romance começa assim: "Estas são as últimas coisas, escreveu ela. Uma após outra, desaparecem para não mais voltarem. Posso falar-te daquelas que vi, daquelas que já não existem, mas duvido que haja tempo para isso." Estas últimas coisas não são entidades metafísicas, pois foram vistas. Também não seria curial pensar que essas últimas coisas fossem coisas da natureza, pois esta parece ser um reservatório inesgotável de matérias. As últimas coisas, aquelas que desaparecem uma após outra, até os homens não se lembrarem mais delas, são os artefactos humanos, os produtos do engenho e da indústria humana.

O colapso da cidade não é outro senão o colapso da capacidade criadora e industriosa da humanidade. O autor desenha um território insularizado, por decisão das autoridades, onde a produção dos bens materiais que suportam a vida cessou. A partir da criação deste mundo, Auster investiga, através de Anne e das pessoas com ela vai estabelecendo relações, como seria a vida humana em tal lugar e em tais condições. As últimas coisas são aquelas que desaparecem pois não há um sistema de reposição de bens. Isto não significa que não exista trabalho, comércio e organização social. Mas o trabalho retorna à antiga fase da recolecção. Os habitantes da cidade tornam-se caçadores e recolectores. Anne tornou-se uma recolectora de artefactos perdidos que, por via da sua recuperação, entravam nos circuitos comerciais da cidade. O problema, porém, estava no uso. Usá-los significava, em última análise, fazê-los desaparecer, até que chegasse o momento em que ninguém já se lembrasse deles.

Apesar de, num mundo como o descrito, não despareceram as formas habituais que conferem sentido à existência, o amor, a lealdade, mas também a mentira, a armadilha, os habitantes da cidade dividiam-se entre aqueles que pura e simplesmente desejavam morrer, encontrando estranhos cânones para a prática do suicídio, e os que pretendiam chegar ao dia de amanhã. Ambos eram animados por um certo princípio de esperança. Os primeiros, a esperança de libertação de um mundo que perdera a significação. Os segundos, a esperança de prolongar a vida nem que fosse mais umas horas ou dias. Anne chega animada pela esperança de encontrar o irmão, mas cedo percebe que tem de transferir essa esperança para a sua sobrevivência. A cada golpe de infortúnio, a possibilidade de sobreviver requisitava uma dose suplementar de esperança.

A longa carta – que constitui o romance – é um último dispositivo de manutenção da esperança. A esperança de, por um golpe fortuito do acaso, poder fugir daquele mundo. Uma esperança sempre mitigada, pois há nela uma forte dose de ilusão, como as palavras finais acentuam: "Todos os outros dormem e eu estou sentada na cozinha, tentando imaginar o que me espera. Não consigo imaginá-lo. Não consigo sequer ter a mais vaga ideia do que nos acontecerá. Tudo é possível, e isso é quase o mesmo que nada, quase o mesmo que ter nascido num mundo que nunca existiu antes. Talvez encontremos William depois de termos deixado a cidade, mas eu esforço-me por não alimentar demasiadas esperanças. A única coisa que peço é a oportunidade de viver mais um dia. É Anna Blume quem te escreve, a tua velha amiga de um outro mundo. Prometo que, quando chegarmos ao nosso destino, tentarei escrever-te de novo."

A esperança surge, deste modo, como essa mistura de convicção e de ilusão, de crença e de mentira, que nos permite, a cada um de nós, chegar ao dia de amanhã. Mas se estabelecermos uma conexão entre a natureza distópica do romance e o princípio de esperança, compreendemos que um espaço distópico é aquele em que a esperança se funda numa ilusão sobre a situação real do agente. Esta ilusão reside toda ela na crença de que existe uma saída e há um destino onde possamos chegar para dar notícias. Paul Auster retira o seu romance do âmbito da denúncia das sociedades totalitárias, o que lhe permite dar a perceber que a distorção da vida e da comunidade humana pode ocorrer em qualquer lado. De súbito, algo que sustenta a vida deixa de funcionar e o mundo torna-se um lugar hostil aos homens. É nesse momento que a esperança surge como a grande ilusão que permite manter a vida, ainda que marcada pela hostilidade do ambiente envolvente, até ao dia seguinte. O espaço da distopia é então o de qualquer vida humana sobre a terra, essa ilha onde todas as nossas coisas são as últimas coisas.

Paul Auster (2010). No País das Últimas Coisas. Alfragide: Edições ASA. Tradução de José Vieira de Lima.

3 comentários:

  1. Será que num mundo (país)distópico, ainda é possível acreditar na 'quimera' da Utopia?
    Abraço

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    1. Eu sou absolutamente anti-utópico, portanto não sou isento para responder à questão lançada. A distopia é o reverso da utopia. Isto não significa que não exista uma ideia de sociedade boa e de governação justa, mas o pensamento utópico conduz sempre à distopia na prática.

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  2. Apenas para dizer que a parte final da sua resposta é "demolidora". Sei do que falo...
    Abraço

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