segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Rui Ramos, Manuel Loff e as vacas sagradas

Franz Marc - Cow, Yellow, Red, Green (1912)

Parece que, também em Portugal, se vive num lugar de vacas sagradas. O exemplo disso é a reacção aos textos do historiador Manuel Loff e à crítica que este faz de Rui Ramos. Hoje, é João Carlos Espada, no Público, que vem chorar pela sua dama ofendida. Também, no mesmo jornal, António Barreto incensa RR. Já no sábado, Maria Filomena Mónica derramou abundantes lágrimas de comiseração e de indignação por alguém se ter lembrado de confrontar Rui Ramos. Toda a direita intelectual arrepanhou os cabelos e esganiçou. O pior de tudo, porém, foi o próprio Rui Ramos que deslocou a questão do confronto sobre a interpretação do Estado Novo para o domínio puramente pessoal, uma questão de difamação, lamentou-se.

Embora a argumentação de Loff não me pareça particularmente interessante, há dois problemas que ele coloca, logo no primeiro texto, e que, mesmo para não historiadores, merecem ser discutidos. São problemas ligados ao revisionismo histórico. Cito Manuel Loff: Para percebermos o que RR entende por "provocação", e em resposta a quem acha - como eu - que o seu trabalho é puro revisionismo historiográfico política e ideologicamente motivado, ele entende que "toda a História é revisionista" e nela "é necessário afirmar originalidade" (Público, 31.5.2010). Em primeiro lugar, do ponto de vista epistemológico, o que significa e quais são os limites, se é que os há, para a originalidade do historiador? Convém perceber até que ponto a narrativa histórica se confunde ou não com a narrativa ficcional, o romance. Em segundo lugar, e essa é a discussão central neste caso, é o da amplitude do revisionismo histórico presente no texto de Rui Ramos e a sua motivação. Ela é ou não é ideologicamente motivada, ela distorce ou não a compreensão da ditadura de Salazar?

Contrariamente ao que se dá a entender, Manuel Loff, apesar de não ter o prestígio social e académico de Rui Ramos, não é um zé ninguém. Ele é um especialista na história do século XX, que estudou, em contexto internacional, profundamente as ditaduras ibéricas. Noutro país, estaríamos perante um debate sério entre dois historiadores sérios. Em Portugal, tudo de imediato descambou numa questão pessoal e num confronto de bandos de esquerda (em apoio de Loff) e de direita, neste caso mais esganiçada, (em apoio de Ramos). De uma discussão de onde poderiam surgir novas linhas de força para a compreensão do Estado Novo, o que fica é a habitual reverência às vacas sagradas. Repare-se como João Carlos Espada, no Público de hoje, coloca a questão: "A campanha que está a ser ensaiada contra Rui Ramos e a notável História de Portugal por ele coordenada, (...), é um triste exemplo de reacção contra a atitude intelectual de uma sociedade aberta". 

A desfaçatez não tem limites. Os textos (aliás, textos discutíveis)  de Loff não são textos contra a pessoa de Rui Ramos mas contra as suas assumpções no campo da História. Espada não rebate (coisa que apesar de deslocar o enfoque da polémica - Loff não estava a chamar fascista a RR -, Rui Ramos faz no seu texto para mostrar que não é fascista) um único argumento de Loff, limita-se a prestar culto e adoração a Rui Ramos. Se há uma atitude claramente inimiga da sociedade aberta, essa é a de Espada e de todos os que evitam discutir as questões que Loff levanta. Mas, é bom não esquecer, estamos em Portugal. Discutir é ofender as múltiplas vacas consagradas que dominam o espaço público. Isto tanto à direita como à esquerda. O que rege a vida intelectual portuguesa é o princípio de autoridade. Na verdade, os nossos intelectuais, e aquela gente que saliva à sua volta, ainda não saíram da Idade Média. Não admira que estejamos metidos no sarilho onde nos encontramos.

(Texto alterado às 13:33)

P. S. No Público de hoje, 05/09/2012, está um artigo de Fernando Rosas que sublinha duas coisas que me parecem essenciais em toda esta triste estória. Não há nos textos de Loff nada de insultuoso ou de difamatório de Rui Ramos. Os textos visam, bem ou mal, as ideias e não o homem. Em segundo lugar, parece claro que Rui Ramos não compareceu ao debate. 

2 comentários:

  1. Hà vinte anos atrás (passo o pleonasmo),as "vacas", eram realmente as verdadeiras detentoras de toda a sacralidade. Hoje, o sacralismo é detido pela espécie azinha.
    Estou até capaz de reivindicar a autoria de uma máxima: quanto mais burro(a), mais sagrado(a).
    Do pé para a mão, como se uma epidemia tivesse caído de uma núvem cósmica, os mais incompetentes, os autores das maiores barbaries resolutivas, passaram a ser idolatrados, venerados por uma vasta ordem de acólitos, que se auto-incapacitaram de ver outra coisa diferente daquela que os burros-mor, fazem e retouçam.
    Razão tinha Saramago, quando anteviu os tempos e escreveu o "ensaio sobre a cegueira"... "se os céus não vêem, que ninguém veja"…

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    1. No fundo, tudo uma questão de família. Não se pode tocar nos nossos nem com uma flor. Enfim, ainda não aprendemos o verdadeiro significado da liberdade de expressão.

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