quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Greve metafísica

Philip Guston - A Day's Work (1970)

Hoje sou um grevista. A minha greve tem uma natureza metafísica. E como das coisas metafísicas não há ciência, também não a há da minha predisposição para a greve neste dia. Não creio que a greve traga qualquer bem, um bem que se possa objectivar e, segundo o gosto do tempo, entregar ao cálculo. Fazer greve é suspender o trabalho, essa intervenção deliberada no curso do mundo. Quando se faz greve, os grevistas não protestam contra o trabalho, mas contra o curso do mundo. Faço greve para sinalizar que o mal excedeu aquilo que lhe compete no curso do mundo. 

Nas coisas humanas, em todas elas, há uma parte de mal e outra de bem. Uns sonham com a vitória na terra do bem, outros esperam - disfarçados e embusteiros - que o mal triunfe. Pela minha parte, espero apenas que haja equilíbrio entre ambos. Foi esse equilíbrio metafísico que se rompeu. Essa ruptura permite que o mal avance, cada vez mais rapidamente, sobre a terra e desaloje o bem do refúgio a que está confinado. Durante um largo período do século passado, os governos não eram agentes nem do bem nem do mal, mas artífices do equilíbrio. O equilíbrio nas relações humanas é um exercício difícil e exige artistas consumados. Desapareceram da face da Europa. 

Hoje em dia, os governos são os enviados do mal, servem-no, adoram-no. Prostam-se perante a sua voz, apressam-se a cumprir os seus imperativos. Por isso, o mal cresce sobre a terra. Fazer greve tem menos efeito do que tomar uma aspirina para combater uma doença infecciosa. Mas o doente ao tomar a aspirina, embora não cure a doença, sinaliza a si mesmo o seu estado. Fazer greve significa sinalizar o crescimento hediondo do mal, significa também que as pessoas não se renderam perante o império do mal, apesar da traição dos tronos, das potestades e das dominações. Por detrás das convulsões sociais, movem-se estranhas forças metafísicas. Não, não estou a falar em anjos e diabos, nem em fantasmas. Falo das inclinações humanas. São estas que, convertidas à malevolência, tentam aniquilar as predispoções humanas para a razoabilidade e o equilíbrio. Por isso, faço greve.

2 comentários:

  1. Gostava e muito de -também- saber "escrever" a greve assim, mas não tenho capacidade para tal. Reconheço.
    Assim sendo, fiz, como sempre, pura e simplesmente greve.

    Um abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu sou um fraco grevista. Faço greve quando acho que os equilíbrios razoáveis são desfeitos. Mas confesso que não tenho fé na capacidade deste tipo de acção. Ela sinaliza posições mostra descontentamente. Julgo que seria precisa outra imaginação, que não estivesse tão marcada pelo hábito social. A greve - incluindo a greve geral - banalizou-se e não passa de uma rotina, que o próprio poder agradece como forma de escape. Não sei o que poderia ser, não sou activista e não penso sobre o assunto, mas é preciso um golpe de génio como o que o Gandhi teve com a resistência pacífica. Aquilo atou as mãos aos ingleses. Faz falta esta criatividade aos movimentos sindicais, tão presos pelos slogans e pelo hábito como os governos.

      Abraço

      Eliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.