sábado, 10 de novembro de 2012

Jonet e o ódio latente

Pablo Picasso - Ciencia y caridad (1897)


O caso das declarações de Isabel Jonet, responsável pelo banco alimentar, num programa televisivo e o conjunto de reacções que desencadeou são um sintoma do estado de espírito do país. As declarações de Isabel Jonet combinam um conjunto de banalidades sobre o putativo vício de os portugueses viverem acima das suas possibilidades (sim, isto é, nos dias de hoje, uma afronta para quem nunca o fez, a grande maioria dos portugueses) com uma visão política onde transparecem as posições do governo e daqueles que, com a ideologia da austeridade, estão, como reconhece o FMI, um dos culpados, a destruir o país. A banalidade e parcialidade das declarações de Isabel Jonet não invalidam o excelente trabalho que tem feito na organização que dirige. Mas nem é o seu trabalho nem as suas ideias que me interessam, pois não são eles que estão em jogo.

A virulência com que detractores e apoiantes de Isabel Jonet se têm batido mostra um grau de animosidade desmedido, que a figura da senhora não explica. Quase de imediato, as declarações da dirigente do banco alimentar deixaram de ter importância, para que as partes, através dos blogues e da imprensa, se confrontassem com indisfarçado ódio. Sob a capa  dos brandos costumes, existe um ódio latente entre os portugueses. Pode estar recalcado pelo exercício da ditadura, pode estar disfarçado pela arte política e um orçamento generoso, como aconteceu entre a adesão à CEE e o advento da crise da dívida soberana, mas ele existe. Mal as condições se degradam, esse ódio - que anima ambos os lados - manifesta-se e cresce.

A política governamental, seguindo com prazer indisfarçado as exigências da troika, está a criar condições para que esse ódio ancestral - ele não é de hoje, claro - venha ao de cima, mesmo se o que o desencadeia são irrelevâncias como as proferidas por Isabel Jonet. Talvez um dos problemas de Portugal não seja tanto a não inscrição, como defende José Gil, mas o ódio latente e o desprezo mútuo que há entre as elites e as camadas populares. Este ódio latente entre partes merece ser pensado e merece que se encontrem caminhos para atalhar o crescimento da sua manifestação. Os incendiários da troika desconhecem o assunto, bem como os pirómanos que nos governam. Nem vale a pena elencar as múltiplas atrocidades que, ao longo de séculos, os portugueses fizeram uns aos outros. Convinha estar muito atento a estas "pequenas" coisas.

6 comentários:

  1. Isabel Jonet não é mais do que uma pseudobanqueira do povo sem fins lucrativos.
    São pequenas coisas que acabam por sempre, grandes brincadeiras à caridadezinha.
    Solidariedade e justiça social são "grandes coisas" bem diferentes.

    Abraço

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    1. Não tenho uma visão tão drástica. Independentemente das causas, há pessoas concretas em dificuldade. Quem as ajuda - seja por caridade, vaidade pessoal, desejo de boa consciência - faz um trabalho meritório. Isso não significa, porém, que a existência dessa necessidade não seja um forte sintoma de uma sociedade que funciona mal. Bom, seria que o banco alimentar fosse desnecessário e as almas caritativas pudessem orientar a sua vocação para áreas mais complexas do que a de matar a fome. Mas a realidade é o que é. O que para mim é alarmante é que o assunto se tenha tornado fonte de um conflito desmedido.

      Abraço.

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  2. O Estado Social na sua plenitude de exercício de funções não deveria permitir que existissem Bancos Alimentares sequer. A existência de instituições como essa é em si uma vergonha e alimenta os egos piedosos (e não compassivos o que é bem diferente) de pessoas como Isabel Jonet. Que, aliás, ainda por cima revelam ser de uma completa estupidez pois com a afirmação que fez colocou em risco o próprio Banco Alimentar. Da próxima vez que lhes entregar um saco de comida apresentarei a minha exigência de que a dita pessoa se demita. Esta pessoa mais não é do que uma porta voz de um certo tipo de «gente» que sempre pensou da mesma maneira, uma Direita obscura que admite a existência de pobrezinhos que ainda por cima são culpados da miséria que os assola. É repugnante. Quanto ao alarme, ainda bem que existe. É sinal de que nos estamos a organizar para combater o mal.

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    1. Não vejo problemas no facto de a sociedade civil ter iniciativas que resolvam determinado tipo de problemas. Independentemente daquilo que motiva a acção das pessoas, o resultado é objectivamente bom. Apesar de não ser um liberal, tenho dúvidas sobre se o Estado deve resolver muitas destas questões. O ideal seria a sociedade civil e os indivíduos encontrarem formas de iniciativa solidária. Inclusive no campo da actividade económica. É preciso activar mecanismo de iniciativa colectiva em todas as áreas para proteger a comunidade. Não me repugna ver entre elas o Banco Alimentar, embora outro tipo de inciativas noutras áreas sejam necessárias como complemento.

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  3. Partindo do princípio que o Estado somos todos nós, e que contribuímos para que todos vivam com dignidade, isso já invalidaria a existência de instituições como os Bancos Alimentares. São instituições que são um mal em si, necessário infelizmente. Mas sou radicalmente contra estas instituições. Mas concordo com mecanismos de iniciativa colectiva, sim, mas para arranjar trabalho para a comunidade e não para a piedadezinha. Por exemplo, cooperativas agrícolas, industriais...

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    1. Eis uma coisa em que não estamos de acordo. Este exercício de voluntariado parece-me claramente meritório. Não me interessa se quem nele participa o faz por piedade ou por outro motivo qualquer. Respondem voluntariamente a um pedido de ajuda. Julgo mesmo que isso tem mais mérito do que se for o Estado. É uma iniciativa cívica. O problema de tudo isto é que a ideologia contamina tudo e perverte a visão das coisas.

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