segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

O velho horizonte

Yves Tanguy - Viejo horizonte

Está a acabar 2012. Este é um ano marcante, pois é aquele em que os portugueses fizeram uma experiência fundamental. Durante muito tempo, os portugueses, como outros europeus, pensaram que a vida material, com o passar do tempo, só poderia melhorar. Sim, haveria crises, mas estas seriam apenas momentâneas, uma espécie de recuo para ganhar balanço e projectar o progresso para mais longe e com mais força. O ano 2012 ensinou que isso foi um pouco piedoso embuste, o qual foi alimentado durante décadas por necessidades estratégicas de combate ao comunismo. Mas o ano de 2012 é marcado ainda por uma outra coisa. A alteração do horizonte. Durante muito tempo - para os portugueses a partir de 1974 ou mesmo do marcelismo - o futuro era um horizonte desejado, pois ele encerrava em si a promessa e a esperança de melhores dias. O futuro tornou-se, a partir da experiência de 2012, aquilo que todos temem, pois nada tem para prometer, mesmo se um primeiro ministro impensável - eleito pela preguiça e demissão de um povo - ainda tenha a desfaçatez, apesar de ser o agente da destruição, de vir entoar loas aos amanhãs que cantam. Resta-nos o velho horizonte. Não nos confundamos, porém. Há um velho horizonte que é ainda a vida que vivemos, aquilo que julgávamos ser uma existência equilibrada e uma vida decente. Apesar de ser passado, esse horizonte está, a partir de 2012, completamente vedado. Resta-nos o outro velho horizonte, o da pobreza endémica, o da injustiça como norma da vida social, o do restabelecimento das insuportáveis diferenças entre os homens. Este velho horizonte é aquilo que nos espera já amanhã. O ano de 2012 foi um ano suave e próspero em comparação com aquilo que nos espera dentro de algumas horas. Olhar para o futuro não é mais do que contemplar um velhíssimo e execrável horizonte.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Meditações taoistas (9)

Por isso o homem santo
Conhece-se a si mesmo sem se exibir
Ama-se a si mesmo sem se dignificar…
Lao Tse, Tao Te King, LXXII

Abandonara o deserto havia três meses e caminhara por vias secundárias, parando apenas quando a noite se anunciava no horizonte, evitando outro transporte que não os próprios pés. Por vezes, se a natureza não lhe fornecia alimento, entrava numa aldeia ou numa vilória e comprava fruta e pão. Olhavam-no surpreendidos, mas ninguém lhe perguntava quem era, de onde vinha, para que sítio se dirigia. Era parco em palavras, mas olhava com bonomia as pessoas com que se cruzava e recebia em troca um sorriso e, surpreendentemente, olhares de aprovação.

Quando chegou à cidade, estremeceu. Desabituara-se daquele mundo e sentiu, nas primeiras horas, dificuldade em ajustar-se ao burburinho. O silêncio tinha sido a sua vida durante anos. Depressa, contudo, se habituou, como se o silêncio que aprendera tivesse tomado conta de si, se tornasse parte dele, uma sombra que o acompanhava para onde fosse. Conversou com homens e mulheres e logo percebeu que, passados alguns momentos, se abriam com ele, oferecendo-lhe o segredo das suas vidas, a dor que os aprisionava, a sombria tristeza em que definhavam, alguma breve alegria que a vida lhes dera. A eloquência que admiravam nele vinha do olhar e nunca as suas palavras eram excessivas. Uma metáfora, uma breve alegoria, nunca uma ironia, abriam nos outros uma alma agradecida.

Durante anos meditara olhando as areias do deserto. Abandonara a cidade cansado de si, exaurido por uma vida que crescia em insignificância, deixando tudo e todos para se entregar ao vazio que a monotonia do deserto lhe dava. Nos primeiros anos, um mundo de interrogações e incertezas assaltavam-no e cobriam de dúvidas o espírito ainda inquieto. Um dia, ao olhar um grão de areia, viu-se a si mesmo e descobriu a verdade que o habitava. Ele era aquele grão ínfimo de areia, que o sol iluminava e o vento arrastava a seu belo prazer. Pela primeira vez amou em si este ser marcado pela irrelevância e destituído de qualquer poder. Era um grão de areia perdido no universo e isso bastava-lhe. Ao chegar à cidade, foi esse grão de areia que ofereceu aos outros e a quem estes, sem saber a razão, ofereciam, reconciliados, o doloroso segredo das suas vidas.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Heinrich von Kleist, Pentesileia


Heinrich von Kleist é, por norma, arrumado na história da literatura ora entre o classicismo e o romantismo, ora como um romântico. Teve de certa maneira uma educação intelectual fundada no Iluminismo (Aufklärung), o movimento que advogou a preponderância de uma razão emancipada sobre a tradição, o sentimento e o preconceito. Se há, contudo, uma coisa que sai absolutamente derrotada na tragédia Pentesileia é a razão e a sua astúcia. O tema da astúcia da razão está presente na filosofia de Kant, essa figura maior da Aufklärung. Para Kant, os indivíduos ao perseguirem os seus interesses privados acabam por realizar algo que os ultrapassa e que não têm em vista. No cerne de Pentesileia e do seu desfecho trágico encontra-se a impotência da razão astuciosa para fazer vencer o amor.

A peça desenrola-se à volta do amor entre Pentesileia, a rainha das amazonas, e Aquiles, o herói grego da guerra de Tróia. As amazonas constituíam um povo guerreiro composto apenas por mulheres. Cada virgem guerreira, para consumar as núpcias que permitiam a vinda de novas gerações, tinha de, em batalha, derrotar o homem a quem se iria entregar. O amor é, de imediato, colocado como o resultado de um conflito e de uma submissão. A mulher só poderia amar aquele que submetesse pela sua perícia de guerreira. O amor é o resultado de uma guerra de conquista, um conflito que se apazigua na celebração nupcial. De certa maneira é ainda o resultado de uma astúcia da razão amorosa, de uma certa visão apolínea da vida.

No intuito de encontrar jovens guerreiros, as amazonas dirigidas por Pentesileia, entram em confronto com o exército grego que cerca a cidade de Tróia. Num primeiro confronto, Aquiles derrota Pentesileia, mas acabam enamorados um do outro. Aquiles decide, então, pôr em marcha um plano astucioso. Deixar-se derrotar, num próximo combate, para que Pentesileia possa consumar com ele as núpcias. A razão astuciosa, porém, não tem em consideração o furor que toma conta da rainha das amazonas, que desconhece o plano de Aquiles. Despeitada e sentindo-se traída, Pentesileia dirige-se para o confronto em plena fúria e acompanhada por cães assassinos. A ilusão apolínea, protagonizada por Aquiles, é impotente perante o desvario dionisíaco. Fora de si, tomada por algo que não domina, a rainha não apenas derrota Aquiles, como o mata numa orgia de sangue, canibalismo e sensualidade.

Heinrich von Kleist dramatiza os limites da razão astuciosa perante o império de forças muito mais fundamentais e misteriosas. Há na peça de Kleist, contudo, uma ambiguidade que justifica a hesitação com que ele é caracterizado na história da literatura. O triunfo das forças da desrazão, a profunda energia onírica que perpassa pela peça, a destruição dos ardis da razão fazem dele um romântico. Esta leitura, todavia, pode ser muito apressada. Se voltarmos a Kant e à sua concepção de razão prática, descobrimos, ainda na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que a razão não visa assegurar ao homem a felicidade. Se fosse esse o fim da razão, muito mal teria andado a natureza, diz o filósofo de Königsberg, pois o instinto seria, para tal fim, muito mais seguro  e eficaz. É aqui que, apesar da aparência em contrário, Kleist é ainda um iluminista. A razão derrotada é uma razão heterónoma submetida estrategicamente aos imperativos da felicidade e do amor sensual. A astúcia da razão amorosa significa que esta está a ser utilizada para um fim que não lhe é próprio, a felicidade afectiva e o prazer erótico.

A razão que sai castigada da tragédia de Kleist é uma razão que se desvia dos seus próprios fins e toma caminhos para os quais não se encontra habilitada. Foi a inabilidade da própria razão em encontrar o caminho para a consumação do amor e da felicidade que desencadeou as fúrias do instinto, como se este tivesse necessidade de afirmar, através de um exercício extremo de violência, o seu império sobre o território de Eros e afastar as pretensões da racionalidade em tal campo. A derrota da razão pode ser lida como uma vitória do instinto, mas também pode ser compreendida como a salvaguarda da autonomia da razão, a qual não se deve envolver nos estratagemas que os humanos usam para satisfazer as suas inclinações para a felicidade.


Heinrich von Kleist (2003). Pentesileia. Porto: Porto Editora. Tradução de Rafael Gomes Filipe.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Uma história mal contada

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Há qualquer coisa de misterioso sobre a forma como um suposto coordenador da ONU – segundo parece, alguém que saiu há pouco da cadeia – é entrevistado por um conjunto diferenciado de importantes órgãos de comunicação social. A questão parece corriqueira. O número de órgãos de comunicação social, incluindo os mais importantes do mundo, que têm sido vítimas de embustes é grande, e um dia chegaria a vez de Portugal. O que torna a questão estranha, contudo, é o conteúdo da mensagem do presuntivo coordenador da ONU. Ela é bastante razoável e vai ao encontro daquilo que, na oposição ao governo, muita gente defende. No cerne está a renegociação da dívida soberana.

Não é que os órgãos de comunicação social omitam a existência de pessoas que defendem uma política alternativa à actual, nomeadamente a renegociação da dívida. O que se passa é que para o auditório essas mensagens resultam sempre como pouco congruentes. Há um clima ideológico na comunicação social que tende a criar uma atmosfera que deslegitima todas as alternativas a actual política e, apesar dos resultados absolutamente desastrosos desta, legitima o actual processo de destruição dos direitos sociais em Portugal.

Inopinadamente, o discurso contrário ao do governo surge, perante os olhos e os ouvidos da opinião pública, como tendo sentido e sendo absolutamente legítimo. A comunicação social ecoa opiniões pretensamente autorizadas e independentes que põem em causa o cego trajecto que se tem seguido até aqui. Os corações oposicionistas fervilham de esperança e aqueles que estão a pagar (nós) os desmandos do BPN, da Madeira, das Parcerias Público-Privadas, etc., quase respiram de alívio. Pura ilusão. Não há coordenador nenhum, nem a ONU tem qualquer interesse específico no que se passa na Europa do Sul.

Eu não acredito em bruxas e muito menos em teorias da conspiração. Mas a minha razão diz-me uma coisa muito simples. Não é o pretenso coordenador da ONU que sai mal da história. Quem sai muito mal tratado da história é o argumento que ele foi defender. O que se assistiu foi ao linchamento público daqueles que argumentam contra o governo, ao envolver a sua argumentação numa suposta história de embustes e de imposturas. Cada vez que se argumentar a favor de uma maior racionalidade da governação e da necessidade de renegociar a dívida para aliviar os portugueses, o governo só tem que lembrar este oportuno episódio. Pode ter sido uma brincadeira de mau gosto, mas os seus efeitos são, politicamente, demasiados interessantes. Repito, no creo en brujas, pero que las hay, las hay.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O direito ao uso de armas

Charles M. Russell - Meat´s Not Meat Till It´s in the Pan (1915)

Esta petição do denominado de lobby das armas nos EUA mostra tudo o que separa ainda hoje a Europa, a velha Europa, dos EUA, a que podemos chamar com propriedade a nova Europa. O direito a possuir uma arma faz parte do conjunto de direitos fundamentais dos americanos. O porte de armas é muito mais importante e significativo que qualquer direito social, os quais nunca foram muito significativos nos EUA. Será pertinente pensar se a erosão dos direitos sociais na Europa, copiando o modelo americano, não estará a criar condições para que, mais tarde ou mais cedo, a reivindicação de um direito de porte de armas, idêntico ao que existe nos EUA, se torne uma realidade. O enfraquecimento do Estado, a instituição onde se concentra ainda a violência legítima, pode abrir caminho para que a velha Europa se americanize ainda mais até que se torne numa nova Europa, mais injusta e mais violenta, onde a própria defesa pessoal deixe de ser uma questão da comunidade para se tornar num problema de iniciativa individual. Uma verdadeira liberalização.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Do significado da ironia

Jacinta Gil Roncalés - Ironía (1998)

Loin de s'émerveiller, la pensée objective doit ironiser. Sans cette vigilance malveillant, nous ne prendons jamais une attitude vraiment objective. (Gaston Bachelard, La psychanalyse du feu)

O que nos distingue a nós, homens modernos, dos antigos gregos? Estes ainda pensavam que o acesso à verdade se iniciava com o espanto, com o evento do espantar-se (s'émerveiller), enquanto a nós resta-nos, no mundo desencantado que nos coube, o exercício da ironia. Mas não foi Sócrates o principal ironizador? Não foi ele que transformou a εἰρωνεία de um mero interrogar na suprema arte de converter a alma ao caminho da verdade? Sim, mas Nietzsche ensinou-nos que Sócrates foi o primeiro dos modernos. Ele é o alfa e o ómega da modernidade, alguém que já tinha perdido o ethos do encantamento. Ora o que Bachelard nos ensina inadvertidamente, pois quer ainda salvar o pensamento objectivo, é que a ironia é uma forma de vigilância malévola. Toda a nossa filosofia e todas as nossas ciências se inscrevem, dessa forma, numa atitude, a vigilância malévola, que se funda na suspeita, a qual usa a ironia como processo crítico. Ironia, vigilância malévola, suspeição, toda uma fenomenologia da degradação do carácter, todo o percurso que transforma um espírito nobre numa alma burguesa.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

A adoração do Menino e a esperança

Rafael Romero Barros - Adoración al Niño (1863)

No Público de ontem, José Vítor Malheiros escrevia sobre o ano em que Passos Coelho matou o Natal. Percebe-se a argumentação tendo em conta a drástica redução dos portugueses à indigência que o actual governo, a coberto do acordo com a troika, está a perpetrar, bem como o medo que se instalou pelo que está para vir. Indigência e medo são, de facto, categorias que não servem para descrever o Natal. Mas Passos Coelho é demasiado irrelevante para matar o Natal. Acontece antes uma outra coisa. O Natal simboliza, enquanto expectativa futura, já o momento em que nos livraremos dos Passos Coelhos e dos Relvas que atormentam a vida dos portugueses. A adoração do Menino é também o tributo prestado à esperança dum novo tempo. Não um tempo de utopias e de sociedades perfeitas (esse é o tempo que estamos a viver, um tempo de fanáticos que acreditam num mercado perfeito e justo, uma utopia totalitária como todas as utopias políticas), mas um tempo de equilíbrios e de negociações, um tempo em que a acção política visa manter a coesão da sociedade e não destruí-la, como é o propósito do governo de Passos Coelho. Na imagem da criança divina está também contida a esperança sensata dos homens que vivem na terra. Uma esperança na justiça, uma esperança fundada nesse saber que todas as crianças trazem consigo sobre a inadmissibilidade da injustiça, sobre a inaceitabilidade das partilhas injustas. Um bom dia de Natal,

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

A expectação da Virgem, o Natal e o tempo

N. Senhora do Ó, ou da Expectação. 
Pedra calcária policromada. Portugal, séc. XIV. 
Lisboa, Museu das Janelas Verdes

O culto da Senhora do Ó ou da Expectação, em Portugal, teve início, ainda no reinado de Afonso Henriques, em Torres Novas, na antiga igreja de Santa Maria do Castelo. Foi uma importação de Castela. Mas não é a questão histórica que me interessa no dia de hoje, dia em que a expectação da Virgem terá fim com o nascimento do Menino. Gostava de fazer uma leitura desta peça, que faz parte do espólio do Museu das Janelas Verdes. A leitura não será, porém, de índole artística ou mesmo religiosa, num sentido restrito do termo. Volto a um dos meus temas preferidos, o tempo. As espantosas figurações da Virgem grávida facilmente se reconduzem a uma meditação sobre o tempo. A Virgem figura o tempo presente e, de certa forma, o tempo que passou. O facto de ela estar ali e de a sua face estar manifesta a quem a olha são formas de presença. Nessa presença está configurada a dimensão temporal do presente e, sugerida por essa presença, a dimensão temporal do passado, toda ela condensada na figura que se apresenta e, dessa forma, se torna presente. 

A exposição sem ambiguidades da gravidez traz a dimensão, ainda oculta, do futuro. O que nos ensina esta imagem sobre o futuro. Ensina múltiplas coisas. Em primeiro lugar, ensina que o futuro está já presente no próprio presente como expectativa (um tema pensado por Santo Agostinho na sua célebre meditação sobre o tempo) simbolizada na gravidez. Está presente de duas formas. Por um lado, como um processo que está em formação no interior do próprio presente, um processo em que o novo tempo se prepara para ganhar a sua autonomia ao manifestar-se no nascimento. O Natal é o momento simbólico em que o futuro se torna presente, se configura. Esta é a dimensão objectiva da presença do futuro já no próprio presente. Há, ainda, uma segunda forma, de natureza subjectiva, que se simboliza na expectativa da própria Virgem. Há o processo autónomo de formação do presente, mas também a presença da subjectividade humana na configuração tanto desse futuro como da sua recepção e percepção. No tempo, na sua formação, confluem processos objectivos e independentes do homem e processos subjectivos derivados do próprio homem e das suas estruturas psicológicas.

Independentemente de outras interpretações simbólicas, é importante ler as mãos da Virgem. Os gestos são indicadores de uma ética relativamente ao tempo. A mão direita pousada sobre o ventre protege aquilo que está em formação. Indica que o futuro deve ser cuidado e protegido pelo presente. Indica que os homens têm por dever moral proteger a novidade que o futuro é e que o futuro traz. O futuro tem, como se viu, uma dimensão objectiva e independente do homem, mas tem também uma dimensão subjectiva. Esta surge, a partir da imagem da Senhora do Ó, como uma injunção ética de protecção desse futuro. O gesto da mão esquerda, por seu turno, pode suscitar múltiplas interpretações, umas mais esotéricas em torno do número quatro - os quatro dedos erguidos pela Virgem - outras mais profanas, como um gesto de saudação. Podemos ler, contudo, na mão esquerda levantada ainda um sinal ético, o sinal da prudência, o sinal de que não se devem acelerar os tempos, que cada tempo tem a sua hora, que essa hora deve ser respeitada, isto é, vivida na sua plenitude sem querer antecipar o que há-de vir.

O mais interessante é compreender a sacralização do próprio tempo. Jesus Cristo não simboliza apenas o carácter divino do homem, o qual já estava simbolizado na figura de Adão. O Menino que nascerá à meia-noite simboliza também a natureza sagrada do futuro e, por extensão, do próprio tempo. Na expectação da Virgem compreendemos o futuro como tendo um carácter sagrado. Esta carga simbólica presente na temporalidade, neste caso no futuro, explica por que muitos movimentos sociais e políticos dos séculos XIX e XX falavam com esperança no futuro e nos amanhãs que cantam. Todos esses movimentos redentores da condição humana, com o marxismo à cabeça, só são compreensíveis a partir do cristianismo e do conjunto de símbolos que ele oferece. O grande problema, porém, reside na leitura que se faz do sagrado. A contínua racionalização a que o cristianismo foi sujeito fez-nos ter uma leitura empobrecida desse mesmo sagrado, por vezes reduzido a uma espécie de terapia psicossocial de telenovela. Ora a experiência do sagrado é ao mesmo tempo a da misericórdia e a daquilo que há de mais terrível, de tal maneira que nenhum homem poderá ver a face de Deus sem morrer. O futuro é sagrado, como se compreende pela figuração da Senhora do Ó, mas isso não quer dizer que ele seja uma coisa agradável. Pode ser o que há de mais terrível ou pode ser o seu contrário. Que este seja um bom Natal.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Meditações taoistas (8)

Mistério que se renova no mistério
porta de todo o deslumbramento…

Lao Tse, Tao Te King, I


Um súbito rumor, a sombra que desliza, a tarde silenciosa debruçada para o mar. Caminho sobre a areia molhada e fria, caminho na solidão ferida pelas algas marítimas, caminho preso ao abismo. Sento-me sobre uma rocha e olho o mar, o vaivém das águas, o destino das gaivotas sobre o oceano. Contemplo a reverberação da luz solar, os infinitos raios que se desprendem da agitação marítima, formam figuras leves e aladas, que a atmosfera traga com um lampejo de cinza, deixando no ar uma promessa de saudade, o vazio daquilo que não mais voltará.

Levanto-me e os teus olhos esperam-me silenciosos, olhos que nunca vi e que abrem um sulco na minha alma, rasgam-me a carne até sentir o ventre pulsar e uma agonia obscura a dançar no centro do coração. Olho esses olhos e tudo se dissolve, a areia molhada, o vento marítimo, as ondas que desenham mapas no areal, o oceano desmemoriado e cruel como a vida. Cada instante, um prenúncio de eternidade, o desenho de um mistério que se esconde no mistério de um olhar, a vertigem que faz desabar o mundo para o reconstruir na palidez de uma face, na trama urdida de uma alma.

Sou agora uma estátua, carne petrificada e suspensa do lago infinito onde os meus olhos se perdem, mármore branco de onde toda a cor foi sugada para se perder no fundo que se oculta no fundo de ti. Perdi a memória e a noite escura que, mal os olhos se tocaram, caiu sobre mim é uma girândola de fogo, um vulcão em erupção, a luz de mil sóis que se abrem como uma porta para iluminar o mistério da noite. Trazes em ti a água de todos os oceanos, o perigo de cada ondulação, a dor de todos os naufrágios. Cego, deixo que a negra luz dos teus olhos ondule no sangue e desenhe um uivo selvagem no silêncio da voz. Deslumbrado, entro no mistério desse olhar e já não há noite nem dia, não há luz ou trevas, apenas o mistério de um rio que, silente e invisível, corre da tua para a minha solidão.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Poema 46 - Natividade do Senhor

Josefa de Óbidos - Natividade

46. Natividade do Senhor

A luz que ilumina a criança nascida
abre-se do alto, rasga o mundo,
e revela-nos o deslumbramento
que a vida traz sobre a terra,
o pó miserável onde cresce a palha,
o mais secreto e visível dos berços,
lugar de glória que irrompe da pobreza.

Todos aqueles que não têm rosto,
e cuja estirpe o vento apagou,
nasceram na luz daquela hora.
Sobre eles, de súbito, desceu um halo
e um anjo tremente segredou-lhes: 
também vós sois filhos do orvalho
e o crepúsculo chama-vos Senhor.

Serão sólidos os vossos ombros
e serena e luminosa a face?
Tereis a coragem da cruz e da coroa?
Em vós o eterno proclama a glória
e de cada um espera o porte majestoso.
Os campos aguardam o vosso reino,
a cidade implora-vos a salvação.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Delírios



Escrever sobre as razões que levam alguém a entrar numa escola e matar vinte e seis pessoas inocentes, entre as quais vinte crianças, como aconteceu agora nos Estados Unidos, não passará de uma especulação inútil sobre a perversidade ou a patologia dos seres humanos. Certamente que a repetição deste tipo de acontecimentos na sociedade americana dirá alguma coisa sobre a sua natureza. Mais interessante de que tudo isso é, contudo, escutar o que nos dizem certos sectores radicais republicanos, gente ligada ao Tea Party

Por exemplo, a ex-governadora do Alasca, Sarah Palin, acha que os cidadãos americanos não devem escutar as elites que pretendem controlar o uso de armas. Nos momentos de desespero, resta apenas pôr a fé em Deus. Por seu turno, o ex-candidato a candidato republicano às presidenciais deste ano, Mike Huckabee, estabelece uma relação entre esta violência nas escolas e o facto de Deus ter sido retirado dessas mesmas escolas. Estamos perante visões da realidade absolutamente delirantes. O delírio é tão grande que o próprio presidente Obama em vez de agir pede sugestões para enfrentar o problema, numa clara confissão de medo perante o lóbi dos fabricantes de armas. 

Este delírio com que se enfrenta os massacres de inocentes não é diferente daquele que pretende impedir que qualquer cidadão americano possa aceder a cuidados mínimos de saúde, ou ao delírio com que, nos EUA, se tem vindo a destruir as classes médias para proteger, através de uma legislação conveniente, os mais ricos. 

O grande problema para nós, europeus, reside no facto desse delírio ter sido avidamente importado pelas lideranças europeias. Durante algumas décadas, talvez devido à experiência traumática de duas guerras mundiais e à bolchevização, digamos assim, de parte substancial da Europa, os líderes europeus procuraram afastar visões delirantes do mundo, tentando encontrar soluções razoáveis que permitiram construir uma certa harmonia nas diversas sociedades europeias. 

Com o fim do comunismo e a diluição da memória das Grandes Guerras, as elites políticas europeias americanizaram-se e importaram doses maciças da mais descabelada fantasia americana. Rimo-nos das Sarah Palin, dos Mike Huckabee, dos George W. Bush. Mas na verdade deveríamos chorar lágrimas amargas, pois são os seus émulos europeus que nós temos, nos últimos tempos, escolhido para nos governarem. Falta-nos ainda um passo decisivo na loucura, falta-nos chamar Deus para justificar as atrocidades sofridas ou o longo exercício de injustiça em vigor, mas já estivemos mais longe. O delírio é uma doença viral.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Catalunha, língua e liberdade

Foto daqui.

Retorna-se ao problema catalão. Três notícias do diário espanhol El Mundo sublinham a complexidade da situação e o imbróglio que se avizinha. Em primeiro lugar, a disputa em torno do estatuto da língua catalã. Como se sabe nacionalidade e língua própria andam intimamente unidos. O que está em jogo não são meras questões de semântica nem de linguística. O que está em jogo, na discussão se a língua catalã é troncal ou apenas língua de especialidade, é política pura e dura. O governo pretende desvalorizar o estatuto das línguas das autonomias, enquanto a Catalunha pretende afirmar a identidade estatutária da sua língua com o castelhano. Discussões sobre línguas nunca são discussões pacíficas (veja-se o charivari que o acordo ortográfico levanta por cá). Por detrás de cada língua esconde-se um vespeiro, de onde sempre sai alguém dispoto a matar e a morrer pela língua pátria.

Esta notícia, com "pacto de la libertad" de Cataluña em fundo, e esta, com a ameaça do governo central, mostram claramente que o conflito já escalou o suficiente para ser introduzido o argumento da violência, coberta pela lei, é certo, mas mesmo assim da violência. Ainda não estamos numa fase que seja impossível às partes recuarem para terrenos mais pacíficos, mas tudo dependerá da evolução da situação internacional e da relação de forças internas. A turbulência que se desenha na parte oriental Península Ibérica - se crescer e se assistir a uma escalada do conflito - arrastará toda a Península e virá mostrar que os equilíbrios existentes não serão tão sólidos quanto se tem pensado. A questão catalã não é uma coisa que possa ser indiferente à governação de Portugal. É uma matéria em que todo o cuidado é pouco e que não pode ser, do ponto de vista dos interesses soberanos de Portugal e da sua unidade política, abordada de forma amadora, como é uso na generalidade dos problemas com que o país se defronta.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O peso da irrelevância

Philip West - Todo el peso del mundo (1992)

Nunca me deixa de espantar a dissonância cognitiva em que nós, seres humanos, vivemos. Foi anunciada a demissão da administração da Casa da Música, no Porto. Como se pode ver no Público, as reacções são veementes e a indignação grassa nos meios ligados à música. Usam-se expressões como "enorme perigo", "extrema gravidade". De facto, é lamentável a demissão de uma administração que tinha cuidado bem da instituição que dirigia. Mas o caso é absolutamente irrelevante no panorama em que vivemos. Não me estou a referir à crise financeira e à pobreza que cresce país fora. Refiro-me à mais completa ausência de padrões que permitam dar importância a um acontecimento, qualquer que ele seja. 

Ver neste caso um perigo ou algo de grave é viver num mundo que não existe, num mundo onde existem padrões absolutos e uma hierarquia de valores. Nada disso existe. Tudo foi relativizado e os valores que existem assemelham-se todos uns aos outros. Esta demissão é absolutamente irrelevante, por muito que isso custe aos amantes dessa arte suprema que é a música. A utilização da expressão "arte suprema" não passa de uma ironia, pois o que torna irrelevante a demissão da administração da Casa da Música é a irrelevância, no contexto dos valores que orientam o nosso actual modo de vida, da própria música ou de qualquer outra forma artística ou cultural. 

Ver neste acontecimento algo de relevante é que se torna mesmo perturbador, pois mostra que à irrelevância geral dos valores se junta a dissonância cognitiva dos agentes, a profunda desadequação entre as descrições e avaliações da realidade e esta mesma realidade. Numa sociedade onde existisse uma hierarquia de valores, onde os valores da arte e da cultura estivessem no cume da pirâmide valorativa, não teríamos primeiros-ministros como José Sócrates ou Passos Coelhos, não seríamos governados por gente como Miguel Relvas.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Michael Haneke, Amor


Talvez por um defeito de formação habituei-me a perguntar, ao ver um filme ou ler um romance, qual o conceito em torno do qual a obra se organiza. Um objecto estético dirige-se, de preferência, à sensibilidade e ao sentimento e menos ao pensamento, mas não podemos deixar de ser quem somos. Ora o filme (ver aqui os dados essenciais) não trata do amor nem da compaixão, mas de uma outra categoria, de uma categoria que anula o esforço da vontade e o livre-arbítrio. Essa categoria é o irremediável. Um casal octagenário de professores de música, Georges e Anne, vive no seu apartemento parisiense. Liga-os um longo amor. Um dia, ao pequeno-almoço, após uma noite onde o casal assiste ao concerto de um dos antigos alunos de Anne, um estado de ausência de Anne, um mergulho no vazio e no nada, revela a presença do irremediável, a presença da doença para a qual não há remédio.

Não é a solicitude amorosa de Georges que está a ser filmada por Haneke, mas a estratégia que o nada empreende para alcançar uma vitória que, desde o princípio, está assegurada. A degradação de Anne, as diferentes metamorfoses da vontade, do rosto, do corpo e da linguagem são outras tantas vitórias desse nada que se apresenta, aos olhos dos homens, como o irremediável. Há dois momentos essenciais no filme que sublinham a crua e cruel marcha do nada para a vitória. Um momento é a exposição, no banho, de partes substanciais do corpo nu de Anne, o outro dá-se quando uma enfermeira a penteia e lhe diz que está bela, colocando-lhe um espelho à frente, num exercício de insensibilidade moral e de incompetência profissional. No primeiro momento, é o espectador que é confrontado com a fragilidade do corpo humano. No segundo, é a própria Anne que é obrigada a cumprir o seu destino de personagem moderna e confrontar-se, através de um exercício especular (o espelho como a grande metáfora filosófica da reflexividade), com o reflexo de si, com a tomada consciência do seu estado, a apreensão visual da marcha irremediável do nada sobre o seu próprio ser.

Haneke filme cuidadosamente a solicitude e o amor de Georges por Anne, filma os pequenos gestos quotidianos com que ele trata a mulher. Mas isso é apenas a superfície. Se a irremediável vitória do nada está desenhada na personagem de Anne, na de Georges é o conceito de rendição que se torna fundamental. O que o filme nos mostra é o processo como Georges se rende ao irremediável. Esta rendição só é compreensível num horizonte de onde desapareceu qualquer referência à redenção. Num mundo onde a metafísica da redenção deixou de ter lugar, quando o irremediável chega, a única resposta é a rendição perante ele. A vontade humana é impotente e o livre-arbítrio, essa possibilidade de escolher entre vários caminhos possíveis para agir, desaparece. Mesmo no acto supremo em que Georges mata Anne não é o livre-arbítrio que o impele a essa acção, mas a força das coisas, a lógica inerente do irremediável, a gravidade (quase no sentido newtoniano) com que o nada se impõe ao ser. Sem um horizonte redentor, perante o triunfo do irremediável, a única coisa que resta é executar o imperativo que esse irremediável impõe, é deixar-se ser o agente que assegura o inevitável triunfo do nada.

Não estamos, com este filme, perante uma interrogação sobre os limites da nossa capacidade de amar. Estamos antes confrontados com os limites do próprio amor, enquanto potência humana dinamizadora do agir, perante aquilo que é irremediável. O filme acaba por ser uma desconstrução das narrativas modernas, centradas no poder humano, eventualmente na potência da vontade ou na exuberância do sentimento. Isto é sublinhado no final do filme, antes da filha do casal deparar com o vazio e o nada que tomou conta do apartamento dos pais. Depois de matar a mulher, Georges escreve-lhe longamente, até que - e aqui Haneke troca o explícito pela mera sugestão -, estando deitado, ouve Anne a lavar a loiça. Vai ter com ela e, na dimensão fantasmática que é agora a de ambos, abandonam a casa. A dimensão fantasmática do casal é, ao mesmo tempo e na sua ambiguidade, o sintoma de uma nostalgia pelo mundo onde ainda se pensava num além e na redenção após a morte e a confissão da impotência do homem moderno, culto e civilizado, em pensar e aceitar esse mundo. Também o final deste filme de Haneke se inscreve na tradição que Kant tematizou ao dizer que a razão coloca problemas que não pode evitar nem resolver. Num mundo como aquele em que vivemos, o irremediável torna-se numa categoria central, a qual apela para a categoria da rendição como seu complemento natural. A redenção não passa já de uma nostálgica fantasmagoria. Poderá haver filme mais europeu do que este?

domingo, 16 de dezembro de 2012

Exercícios da memória

Julia Hidalgo Quejo - Memória (1999)

Ontem dei uma volta pelos alfarrabistas que, aos sábados, têm banca montada ali para os lados do Chiado, mais precisamente na Rua Anchieta, em cuja esquina com a Rua Garrett fica a velha Bertrand. Comprei alguns livros a cinco euros. Dois deles remetem, de imediato, para um estranho exercício de memória. O primeiro é o Sémiotique - dictionnaire raisonné de la théorie du langage, de Greimas e Courtés. O livro vem assinado por uma antiga proprietária, que o comprou em 1979, ano em que foi publicado. Fiquei a saber, ao examinar o livro, que foi comprado na FNAC - presumo que a de Paris - e que custou 72 francos. Encontrei ainda um ficha de leitura que reenviava para o conceito de lexema em Greimas, bem como dois marcadores de livros, simples papel pautado de boa qualidade cortado com esmero, onde num estava escrito "20" e noutro "1. Introdução -> as propriedades comuns a todos os textos [mudava de linhe e:] -> as características decorrentes da utlização". Folheio o dicionário e tento imaginar a mulher cujo nome está inscrito numa das primeiras páginas. Perante a incapacidade de lhe dar um rosto, interrogo-me o que a terá levado a vender o livro. Será ainda viva? Continuará a interessar-se por questões semióticas ou foi um interesse passageiro? O comércio tem destas coisas, cruza pessoas que nunca se encontraram. O que me levou, porém, a comprar o livro foi outra coisa. Quando entrei na universidade, na altura em em que o livro foi publicado, Greimas era um autor em expansão, digamos assim, num certo universo intelectual. Não na minha área, a filosofia, mas na dos estudos da linguagem. Sempre tive um interesse paralelo por essas questões e a memória levou-me a comprar o livro.

O outro livro é o romance Os desertores de Augusto Abelaira. O livro foi publicado pela primeira vez em 1960, mas a edição que comprei, a quarta, é de 1978. Abelaira morreu em 2003 e é, hoje em dia, quase dez anos passados, um autor praticamente desconhecido. Mas nos anos setenta e oitenta do século passado era autor considerado e com audiência considerável. Só li um romance dele, Bolor. Mas há dias, o seu nome, entre outros ilustres esquecidos, veio à minha memória e decidira ler algumas coisas dele para tentar perceber, um pouco melhor, o país que é o meu visto pelos olhos daqueles que, nas décadas passadas, escreveram nele e sobre ele. Mas não foi essa decisão que me motivou na compra da obra, mas a memória cruel, neste caso. Como é possível que alguém com certo peso no mundo da cultura portuguesa seja, passados menos de dez anos da sua morte, um desconhecido? Residirá esse destino na própria obra ou será apenas um efeito que o mercado tece, destruindo a memória dos homens para que novos produtos sejam consumidos? Se foi um efeito do mercado, então este talvez tenha um défice de percepção da realidade. Também a memória é ávida, também ela é desejante, também ela é um buraco a preencher. Isto significará que aqueles que pretendem servir o mercado estão pouco atentos a uma das suas dimensões mais importantes, aquela que assenta no fascínio que o passado exerce na generalidade dos homens. A transformação da literatura em mercadoria não tornou, contudo, os mercadores mais inteligentes. A partir de certa altura compramos coisas porque a memória nos convoca ou intima a fazê-lo.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Ad hoc

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Gosto da expressão latina ad hoc. Ela significa literalmente ”para isto”. O uso corrente da expressão refere um determinado tipo de soluções que, não sendo gerais, se aplicam a um certo caso particular. O meu interesse pela expressão deve-se a uma coisa muito simples. Ela caracteriza, infelizmente, demasiado bem a maneira como se governo o país. Desde há muito que as soluções políticas encontradas são ad hoc, respostas particulares sem qualquer pensamento de fundo, sem qualquer visão sobre o futuro do país, aos problemas que vão surgindo. 

Quando a tormenta nos bateu porta, em 2008, na sequência da crise do subprime nos EUA, todas as opções políticas de enfrentamento da crise têm sido soluções ad hoc, respostas particulares, respostas sem qualquer pensamento estratégico que permita desenhar um percurso para a saída da situação. Há falta de dinheiro? Então, faz-se um PEC e corta-se aqui. Continua a haver falta de dinheiro? Faz-se outro PEC e corta-se ali. Acabam-se com os PEC e chama-se a troika, mas continua a faltar dinheiro. Qual a solução? Fazem-se mais uns cortes aqui e ali. Tudo isto parece o exercício de amadores. 

Mesmo os actuais arroubos ideológicos do governo, uma espécie de espasmo masturbatório ultraliberal, não passam de arroubos ad hoc, para aproveitar o momento em que toda a gente anda distraída com a falta de dinheiro e entregar um conjunto de bens públicos à voracidade de interesses privados. O único pensamento que existe, mesmo neste caso, é entregar o máximo que se for capaz enquanto se tiver a mão na rédea do poder. O adhoquismo reinante trouxe o país para a malfadada situação em que se encontra. Mas como nunca aprendemos nada de relevante, continuamos com o mesmo tipo de atitude, tentando apenas sobreviver até ao mês seguinte ou até à próxima avaliação da troika

Há dois momentos que desenham esta infinita tragédia que nos acomete. O primeiro é a adesão à CEE e o segundo, a entrada no Euro. Teriam sido os momentos ideais para não deixar desordenar as finanças públicas e traçar um rumo viável para um país periférico como o nosso. Mas Cavaco nunca passou de um demagogo eleitoralista e Guterres nunca teve rasgo ou coragem para enfrentar a situação. Quando Durão Barroso grita que o país está de tanga, estávamos já atolados no inferno. Daí para cá, o descalabro foi aumentando perante a pusilanimidade, incompetência e desfaçatez de um punhado de agentes políticos impreparados e sem qualquer sentido de Estado. No fundo, estamos a pagar duramente por termos entregado o país a gente ad hoc.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

A batalha das ideias

José Luis Molleda Rodríguez - Ideia

A actual vaga de retrocesso das denominadas conquistas sociais é o resultado de uma clamorosa derrota da esquerda no âmbito da vida política. Este artigo de São José Almeida, no Público, permite perceber uma das causas, talvez a causa mais importante, dessa derrota. Onde a esquerda começou a perder - onde, apesar da situação difícil que a política de direita coloca as pessoas, continua a perder - foi na luta de ideias. Durante muito tempo, a esquerda pensou que tinha o monopólio da inteligência e que era a única fonte produtora de ideias transformadoras do mundo. Este mito cegou-a. Cegou-a de duas maneiras diferentes. Por um lado, não percebeu que, em múltiplas áreas do pensamento, intelectuais de direita, nomeadamente, liberais, elaboravam um pensamento consistente. Por outro, essa arrogância simbólica acabou por encerrar a esquerda num conjunto de esquemas teóricos e doutrinais cada vez mais consevadores e incapazes de responder a dois desafios que a realidade social lhe tinha colocado. Em primeiro lugar, a derrota e o fracasso do comunismo. Em segundo, a ocupação do espaço público pelas ideias provenientes da direita.

O grande problema da resposta à ofensiva neoliberal reside na questão das ideias. Apesar das patifarias da crise do subprime de 2008, apesar da situação desastrosa em que se encontram as pessoas nos países sob intervenção da troika, apesar da experiência mil vezes repetida dos desastres das intervenções do FMI na América Latina, apesar de tudo isso, as pessoas, apesar da revolta que sentem, pouco fazem, mesmo na Grécia, para alterar o rumo dos acontecimentos, pois a esquerda não tem nada para oferecer. Nada significa aqui nada que tenha consistência e que as pessoas sintam confiança para seguir esse caminho. A esquerda deixou de pensar e as concepções do mundo que eram as suas foram derrotadas pela vida. A direita, pelo contrário, fez da fraqueza força, investiu muito no pensamento, construiu modelos teóricos e, depois, como se pode ver pelo artigo referido, tratou, e trata, de os difundir de forma compreensível para a opinião pública. Em cada momento da história, ganha quem ganhar a batalha das ideias. Como dizia um célebre filósofo alemão, quando as ideias mudam a realidade não resiste. Preparar a resposta a tudo o que se está a passar implica, em primeiro, pensar e pensar radicalmente de forma a criar uma configuração de ideias que desaloge e retire legitimidade, perante a opinião pública, àquelas que, neste momento, são triunfantes. A preguiça do pensamento paga-se muito cara.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Poema 45 - Quatro elementos: Fogo

Gustavo Torner - Átomos - Los Cuatro Elementos. Fuego (1986)

45. Quatro elementos: Fogo

Rodopiam faúlhas por detrás da vidraça.
Chegou o tempo de inverno
e os frios vindos do norte acendem
nas almas o escasso desejo da rua,
um tempo de meditação na sombra do calor,
o obscuro pulsar da memória arcaica
escondida num gene por decifrar.

Olho o fogo e uma evidência nasce,
torna-se límpida e desenha um mapa:
todos os lugares que os meus habitaram
e onde, transidos de frio, escutaram,
entre fumo e labaredas, o crepitar do fogo,
a lareira que agora trago na alma
e me aquece na desolação da vida
tomada pela sombra do inverno,
crescendo desmesurada sob o fogo
que as tuas mãos ateiam em mim.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A prática salazarista em democracia

Giovanni Battista Tiépolo - O Olimpo

Em seu redor, neste Olimpo da «alta política», circulava a nata, a elite do regime, um grupo restrito e de difícil acesso girando promiscuamente entre os altos cargos políticos e as administrações das empresas. Ao contrário do que faz constar uma difundida lenda urbana recente, Salazar inaugurará o hábito, quase uma praxe, de compensar os seus servidores  mais chegados com substanciosos lugares no mundo dos negócios ou nas boas sinecuras do Estado. (Fernando Rosas, Salazar e o Poder. A Arte de Saber Durar, p. 43)

Esta citação do último livro de Fernando Rosas ajuda a perceber muito do que é a democracia em Portugal, e o mal estar que hoje em dia se vive. De facto, a transição à democracia não representou, em muitos aspectos, um corte substantivo com as práticas salazaristas, mas a sua democratização, isto é, a sua distribuição por um grupo mais alargado de agentes políticos e económicos. A lenda de um Salazar incorruptível, que chegou remediado ao poder e remediado morreu, sempre ocultou o outro lado da história. A natureza corruptora do regime, a forma como o ditador se servia das paixões e dos interesses humanos para os explorar em favor do seu projecto pessoal de poder.

A falência do regime democrático, contrariamente ao que se pretende difundir em certos círculos não se deve ao facto deste ter cortado com o santo ethos salazarista. Pelo contrário, aquilo que correu mal, e continua a correr, deve-se à continuidade desse ethos, apesar de existir um regime formal de democracia e de liberdade. A pluralização das elites políticas não representou a construção de um Estado independente do poder económico, mero árbitro do jogo do mercado e dos interesses privados, mas, antes, uma porosidade diferente entre poder político e poder económico, com as andanças conhecidas entre os ministérios e a administração de grandes empresas. 

Para Salazar, ou para a sua retórica, esta praxis estava ligada à promoção de um Estado nacional forte. Na verdade, estava ligada à criação de um poder pessoal forte. É isto que é transferido para o regime democrático (inclusive no PREC), com as suas oscilações de poder, obrigando os grupos empresariais ao contorcionismo necessário para estar de bem com o governo e com a oposição que, num futuro sempre próximo, substituirá o poder em vigor. É isto que torna o regime democrático frágil e o Estado fraco. É isto a origem de toda a corrupção. Quando se fala, como muita gente o faz hoje em dia, em mudar de regime, está-se a falar em abstracções. O importante seria cortar radicamente com a velha prática herdada do salazarismo. Coisa que não aparece interessar a ninguém, o que torna ociosas todas as melancólicas meditações sobre a salvífica mudança de regime.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Meditações taoistas (7)

A rectidão suprema parece sinuosa.

A habilidade suprema parece desajeitada.

A eloquência suprema parece balbuciante.
Lao Tse, Tao Te King, XLV

Sentou-se no silêncio do deserto e esperou pela noite. A areia escaldante do meio-dia tornava-se, a cada hora, mais fria e o corpo esquecia o calor e mergulhava na recordação longínqua dos invernos tempestuosos da montanha onde nascera. Olhava as estrelas no firmamento e lembrava-se das velhas histórias de Zenão, o eleata. Nas primeiras horas, considerou a remota hipótese de um dia Aquiles ultrapassar a tartaruga e vencer essa eterna corrida. Meditou na linha recta e na sinuosidade da curva, mas em todas elas a tartaruga já abandonara o lugar onde Aquiles, lépido, poisava o alado pé.

Para vencer o sono que a noite trouxera, abandonou Aquiles e a tartaruga ao seu destino e contemplou a flecha que, voando, estava em repouso. Parece desajeitado o arqueiro que lança tal flecha, mas isso é apenas uma ilusão trazida pela precipitação dos frágeis e enganadores sentidos. Na verdade, não há mais perigoso guerreiro do que aquele que, pegando com suavidade no arco, lança a flecha que imóvel se move, nunca trocando o aqui por um ali. Assim, vê cair o inimigo abatido não pelo projéctil que lhe entra no corpo, mas pela infinita visão da imóvel flecha que o matará.

Quando a noite começou a entregar-se nos braços da aurora quis esquecer os paradoxos do eleata e deixou a consciência mover-se para o passado. Lentamente, recuou na sua vida. Em todas as etapas, porém, assaltavam-no visões de Aquiles e da tartaruga ou da flecha que voando repousava eternamente. Descobriu que, impulsionado por tais paradoxos, se entregara, nos dias de maturidade, à eloquência. Nos anfiteatros e nas praças, via-se a discorrer sobre o mundo e os seus negócios, por vezes sobre os seus segredos. Um rio de amargura atravessou-lhe o peito e, fugindo da dialéctica, entrou na pátria da infância. Chegou ao tempo das primeiras letras, depois aos despreocupados dias onde os deveres não lhe reclamavam a vida. De súbito, sentiu o instante onde as primeiras palavras lutavam contra a insensatez da língua e saíam, balbuciantes e incrédulas, para a rua. Nessa hora, um raio iluminou-o por dentro, ergueu-o, translúcido, sobre as areias do deserto, enquanto o Sol rasgou o horizonte e a luz anunciou o novo dia.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Mo Yan, literatura e política

Julio Gómez Biedma - Un grito: ilibertad

A atribuição do prémio Nobel da literatura ao chinês Mo Yan veio recolocar, mais uma vez, o problema da relação entre arte e política. Como se pode ver pelo artigo do Público, muitos dos intelectuais chineses oposicionistas desejariam que a recepção do prémio fosse um momento de denúncia do regime chinês. Contudo, Mo Yan recusa tomar partido entre o regime e a oposição, dizendo-se independente, o que é visto, por parte de outros, como puro colaboracionismo com o regime ditatorial.

Desde o século XVII, isto é, desde a origem, que a modernidade se caracteriza por ser um projecto de autonomização contínua das diversas esferas da actividade humana, as quais encontram dentro de si mesmas as razões da sua existência. Filosofia e ciência, bem como a política, autonomizaram-se da religião, a economia libertou-se da política, as artes tornaram-se independentes de qualquer tutela. Deste ponto de vista, a atitude de Mo Yan pode ser entendida como uma mera expressão da modernidade, o não querer confundir literatura, com os seus imperativos estético-literários, com a política e a luta pelo poder. 

Aquilo que ressalta à vista, porém, é a profunda limitação do projecto moderno de autonomização contínua das diversas esferas da acção humana. Este projecto permitiu coisas inauditas. Por exemplo, a economia não apenas se libertou da tutela política como acabou por tutelar a própria actividade política, retirando-lhe a sua putativa autonomia. A questão levantada em torno de Mo Yan vem recolocar em cima da mesa a discussão das relações da arte e dos artistas tanto com a política como com a moral. Ao fazer uma literatura não denunciadora politicamente, ao não denunciar o regime chinês, Mo Yan é cilindrado moralmente por outros intelectuais chineses. 

Estes dois exemplos mostram que o projecto moderno treme sempre que se trata da própria vida e não de reflexões e conceptualizações abstractas acerca dela. A vida não se deixa espartilhar por áreas diversas e estanques. Quando ela nos bate à porta não traz etiqueta a dizer se é estética, epistemológica, política, moral ou religiosa. Ela vem toda na sua completude, na sua monstruosa completude, e é com isso que teremos de lidar. Ora a educação moderna desarmou-nos ao apresentar a realidade espartilhada, ao tornar-nos cidadãos num campo e apátridas noutros. É isso que já não funciona e que torna a posição do Mo Yan tão desconfortável.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O Banco Alimentar


Decorreu uma nova recolha de alimentos organizada pelo Banco Alimentar. Apesar da crise que atinge as famílias, a operação foi um sucesso, tanto pela quantidade de comida recolhida como pela organização de uma vasta e eficiente rede de solidariedade. O Banco Alimentar, bem como outras instituições do género, é, no entanto, um símbolo da sociedade portuguesa, daquilo que tem de melhor e do que tem de pior.

O que a sociedade portuguesa tem de melhor é este espírito de dádiva e de solidariedade concreta, de entrega aos outros, de resposta efectiva a necessidades de alguém quando já nada nem ninguém responde. Dar e trabalhar para os outros, dizer presente quando tudo e todos se ausentam da vida das pessoas, são actos de alto valor moral. Alguns dirão que não passa de caridade. Sim, é verdade, tudo isto representa um género de caridade. Mas a caridade não é um defeito. É uma virtude nobre, é uma resposta ao apelo daquele que nos é próximo e nos solicita. Pelo acto caritativo, alguém rompe, nem que seja por instantes, a esfera do seu egoísmo e abre-se para a dor do outro. Nestas acções caritativas fundem-se a generosidade natural do ser humano e o amor ao próximo cristão.

Por outro lado, o peso crescente do Banco Alimentar sinaliza o que há de pior na sociedade portuguesa. Sinaliza uma sociedade em desagregação, uma sociedade que não encontrou um caminho de integração económica de todos os seus membros. Sinaliza, fundamentalmente, e terrível falência das elites políticas e económicas, a sua incapacidade de pensar em soluções para o país e para a economia, a sua incapacidade para mobilizar os cidadãos. Muitos – talvez a maioria – daqueles que hoje recorrem ao auxílio do Banco Alimentar são vítimas da incompetência dessas elites, do seu oportunismo, da avidez com que colonizam a sociedade. O peso do Banco Alimentar é o sinal da degradação política que nos atingiu.

Criticam-se, por vezes, as instituições como o Banco Alimentar por suprirem necessidades  que deveriam ser asseguradas pelo Estado. Não confundamos os planos. Estas instituições movem-se na dimensão moral e não na dimensão política. São moralmente virtuosas. Merecem todo o nosso apoio. Isso não significa, contudo, que não se critique drasticamente a sociedade que gera tamanhas desigualdades e injustiças. É verdade que os portugueses se devem orgulhar do seu contributo para o Banco Alimentar, mas as nossas elites deveriam ter vergonha na cara cada vez que uma operação do Banco Alimentar é posta em acção.