sábado, 29 de dezembro de 2012

Heinrich von Kleist, Pentesileia


Heinrich von Kleist é, por norma, arrumado na história da literatura ora entre o classicismo e o romantismo, ora como um romântico. Teve de certa maneira uma educação intelectual fundada no Iluminismo (Aufklärung), o movimento que advogou a preponderância de uma razão emancipada sobre a tradição, o sentimento e o preconceito. Se há, contudo, uma coisa que sai absolutamente derrotada na tragédia Pentesileia é a razão e a sua astúcia. O tema da astúcia da razão está presente na filosofia de Kant, essa figura maior da Aufklärung. Para Kant, os indivíduos ao perseguirem os seus interesses privados acabam por realizar algo que os ultrapassa e que não têm em vista. No cerne de Pentesileia e do seu desfecho trágico encontra-se a impotência da razão astuciosa para fazer vencer o amor.

A peça desenrola-se à volta do amor entre Pentesileia, a rainha das amazonas, e Aquiles, o herói grego da guerra de Tróia. As amazonas constituíam um povo guerreiro composto apenas por mulheres. Cada virgem guerreira, para consumar as núpcias que permitiam a vinda de novas gerações, tinha de, em batalha, derrotar o homem a quem se iria entregar. O amor é, de imediato, colocado como o resultado de um conflito e de uma submissão. A mulher só poderia amar aquele que submetesse pela sua perícia de guerreira. O amor é o resultado de uma guerra de conquista, um conflito que se apazigua na celebração nupcial. De certa maneira é ainda o resultado de uma astúcia da razão amorosa, de uma certa visão apolínea da vida.

No intuito de encontrar jovens guerreiros, as amazonas dirigidas por Pentesileia, entram em confronto com o exército grego que cerca a cidade de Tróia. Num primeiro confronto, Aquiles derrota Pentesileia, mas acabam enamorados um do outro. Aquiles decide, então, pôr em marcha um plano astucioso. Deixar-se derrotar, num próximo combate, para que Pentesileia possa consumar com ele as núpcias. A razão astuciosa, porém, não tem em consideração o furor que toma conta da rainha das amazonas, que desconhece o plano de Aquiles. Despeitada e sentindo-se traída, Pentesileia dirige-se para o confronto em plena fúria e acompanhada por cães assassinos. A ilusão apolínea, protagonizada por Aquiles, é impotente perante o desvario dionisíaco. Fora de si, tomada por algo que não domina, a rainha não apenas derrota Aquiles, como o mata numa orgia de sangue, canibalismo e sensualidade.

Heinrich von Kleist dramatiza os limites da razão astuciosa perante o império de forças muito mais fundamentais e misteriosas. Há na peça de Kleist, contudo, uma ambiguidade que justifica a hesitação com que ele é caracterizado na história da literatura. O triunfo das forças da desrazão, a profunda energia onírica que perpassa pela peça, a destruição dos ardis da razão fazem dele um romântico. Esta leitura, todavia, pode ser muito apressada. Se voltarmos a Kant e à sua concepção de razão prática, descobrimos, ainda na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que a razão não visa assegurar ao homem a felicidade. Se fosse esse o fim da razão, muito mal teria andado a natureza, diz o filósofo de Königsberg, pois o instinto seria, para tal fim, muito mais seguro  e eficaz. É aqui que, apesar da aparência em contrário, Kleist é ainda um iluminista. A razão derrotada é uma razão heterónoma submetida estrategicamente aos imperativos da felicidade e do amor sensual. A astúcia da razão amorosa significa que esta está a ser utilizada para um fim que não lhe é próprio, a felicidade afectiva e o prazer erótico.

A razão que sai castigada da tragédia de Kleist é uma razão que se desvia dos seus próprios fins e toma caminhos para os quais não se encontra habilitada. Foi a inabilidade da própria razão em encontrar o caminho para a consumação do amor e da felicidade que desencadeou as fúrias do instinto, como se este tivesse necessidade de afirmar, através de um exercício extremo de violência, o seu império sobre o território de Eros e afastar as pretensões da racionalidade em tal campo. A derrota da razão pode ser lida como uma vitória do instinto, mas também pode ser compreendida como a salvaguarda da autonomia da razão, a qual não se deve envolver nos estratagemas que os humanos usam para satisfazer as suas inclinações para a felicidade.


Heinrich von Kleist (2003). Pentesileia. Porto: Porto Editora. Tradução de Rafael Gomes Filipe.

3 comentários:

  1. Gostei imenso desta tua leitura, Jorge. Esta gente é muito cá de casa. A Penteliseia de Kleist lembra-me, em muitas coisas, As Bacantes de Eurípides, mormente no terreno que a razão e austúcia (a mêtis) cedem aos caminhos menos usuais da felicidade.

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  2. Obrigado, Ivone. Um dia destes, perco a cabeça e começo a escrever sobre os trágicos gregos.

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