domingo, 30 de setembro de 2012

Passos Coelho - a recompensa do adivinho

Giorgio de Chirico - La recompesa del Adivino (1913)

Hoje estou um bocado preguiçoso para escrever e fui buscar um texto antigo sobre Passos Coelho, do meu blogue, retirado de circulação, averomundo. O texto foi publicado em 19 de Julho de 2008. Na altura (escrevi nessa época vários textos sobre a personagem), era já muito claro para mim que Passos de Coelho não tinha qualquer preparação para o cargo a que almejava, que tinha um forte conflito com a realidade. Com a chegada ao poder, esse conflito com o real não cessou de se agravar para chegar ao puro delírio onde vive, rodeado de personagens como os Borges, os Relvas, as Cruzes, os Gaspares, os Pereiras, os Portas, as Cristas, os Macedos, num nunca mais acabar de nomes que se tornaram símbolo do desespero das pessoas e da risibilidade de quem ocupa o poder. Se olharmos para a política do governo parece que Passos Coelho seguiu à risca as instruções dadas, uma política desenhada num fim-de-semana para salvar a pátria. Mas o facto de ter adivinhado o que viria aí de tenebroso, não sinto qualquer prazer pela recompensa do adivinho. Aqui fica então o texto de há quatro anos.

O novo génio da política nacional, Pedro Passos Coelho, acha, segundo o Público, que o PSD “precisa de apresentar um projecto alternativo e um discurso de esperança e não pode querer ganhar com o descontentamento face ao PS.” Se o problema for o de criar um projecto alternativo, a coisa não é assim tão difícil. Uma equipa de sábios organiza a papelada num fim-de-semana. Também ter um discurso de esperança não será complicado. O que a novel estrela da política nacional parece esquecer é que qualquer receita que exista será sempre idêntica à actual ou ainda, para a maioria dos portugueses, mais tenebrosa. Alternativas, esperanças, tudo palavras bonitas e pensamentos geniais. O problema é a realidade. Talvez essa conte para pouco.

sábado, 29 de setembro de 2012

O tempo das praças

Edgar Degas - Plaza de la Concordia (1875)

Quando chega o tempo em que as praças se enchem alguma coisa se perdeu. Todas elas foram desenhadas como lugar de concórdia, espaços amplos onde transeuntes despreocupados passeiam, presos na sua solidão. Sim, a praça é o lugar da solidão, o espaço onde a concórdia nasce do estar só de cada um. Quando os homens sentem o chamamento da multidão e ocupam esses lugares de meditação, sabemos que o reino está podre e as vozes têm de romper o amado silêncio para reclamar um módico de justiça, aquele que basta para podermos viver, segundo o modo de cada um, o retiro que nos cabe.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Um bando de rapazolas


O pior não é sequer a vexata quaestio do défice. O pior é mesmo a comunidade nacional encontrar-se num grau de completa degradação cívica. Só assim se pode entender que os portugueses, para além de episódicas manifestações, aceitem serem governados por gente absolutamente inverosímil. A degradação tornou-se evidente quando Durão Barroso decidiu livrar-se dos imensos sarilhos que lhe prometia a governação em Portugal. A escolha de Santana Lopes foi já a manifestação clara de um mal incurável.

O extraordinário, porém, é que Santana Lopes, comparado com o que veio depois, parece um sábio e o mais sensato dos homens políticos. A governação de Sócrates foi um exercício contínuo de prepotência e de decisões absurdas que, em vez de atalhar os problemas que já empestavam a atmosfera, tornaram ainda mais grave a situação que se vivia. Bastam dois exemplos, o célebre Magalhães distribuído gratuitamente sem que se percebesse para quê e esse exercício tortuoso, embora a vontade seja chamar-lhe outra coisa, que dá pelo nome de Parcerias Público-Privadas. Os governos de Sócrates foram das coisas mais perigosas que ocorreram em Portugal. Por uma questão de sobrevivência do país, Sócrates e aquele grupo que com ele tomara conta do PS tinham de ser postos fora do poder.

A desgraça, porém, é que a direita não tinha ninguém para substituir Sócrates. A governação tornou-se, então, o exercício de gente que nunca saiu verdadeiramente da adolescência. Não pode ser levado a sério um primeiro ministro que manda os portugueses emigrar ou que, de um dia para o outro, num país onde os salários são dos mais baixos, decide transferir milhares de milhões de euros do bolso dos trabalhadores para as entidades patronais, e, instantes depois, vai para o Pavilhão Atlântico rir e cantar com a Nini dos 15 anos (a idade da adolescência). Não podem ser levados a sério ministros como o folgazão Miguel Relvas, o subtil Paulo Portas, que apunhalou o parceiro de coligação em público, o deslumbrado Vítor Gaspar, a eminência que ainda não acertou uma previsão, o deslocado Álvaro Santos Pereira, a cigarra moralista do Miguel Macedo. Seria cansativo falar dos outros.

Portugal deixou de ter, para governar o país, gente sábia, experimentada na vida, ponderada, gente que perceba a fragilidade e o sofrimento da população e que procure equilíbrios sensatos. Vive-se com o sentimento de que se é governado por um bando de rapazolas, perturbados com os sintomas da adolescência, cuja sabedoria não ultrapassa a de uma cigarra cantante ou a da Nini dos 15 anos, a tal que vestia de organdi.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A morte e a vida

Lytras Nikiforos - Antigone in front of the dead Polynices (1865)

Estava, no intervalo entre duas aulas, na biblioteca da minha escola a ler. Olho para uma estante ao meu lado e vejo a obre prima A Cidade Antiga, do historiador francês do século XIX, Fustel de Coulanges. A obra foi originalmente publicada em 1864 e revista em 1875. Do ponto de vista histórico, deve estar completamente ultrapassada. Ela sublinha o papel da religião no desenvolvimento social e político da Grécia e de Roma antigas. Para lá daquilo que a investigação histórica posterior pôs em causa, a obra é um clássico da língua francesa, devido à qualidade do francês em que foi escrita. Peguei nela e li o primeiro capítulo, ainda um prazer estético mesmo depois de passar para português. Trata das crenças sobre a alma e a morte, as quais se teriam formado muito antes destas formas civilizacionais, a cidade grega e o império romano, terem atingido o apogeu e declinado até desaparecerem. 

Independentemente das crenças em questão, o que ressalta é a importância da morte na configuração da vida. Entre ambas há uma continuidade, a qual se reflecte na organização da própria sociedade. A morte não é apenas o que sucede à vida, mas ainda um lugar onde a vida se dá e o qual tem de ser cuidados pelos vivos. O resultado dessa relação com a morte é, surpreendentemente, uma vida mais densa e mais plena, uma vida mais completa. O que se passa nos nossos dias é qualquer coisa de completamente diferente. A sociedade burguesa, contrariamente às sociedades de índole aristocrática, tem vergonha da morte, esconde-a, prende-a em redutos quase inacessíveis, e desfaz-se das provas da sua evidência o mais asséptica e rapidamente possível. Apesar dos meios de comunicação social terem um gosto perverso pela morte, esta surge sempre como uma ficção, entendida esta como uma falsificação do real.  São processos de censura e de denegação.

Esta rasura da morte, por outro lado, foi acompanhada pela crescente frivolidade da vida colectiva e individual. Aquilo que se torna patente nos costumes gregos e romanos - aliás, como de muitos outros povos - é que o sentido pleno da vida só se manifesta se contiver explicitamente a morte. É ela que dá substância a uma vida que valha a pena ser vivida. A rasura da morte nas nossas sociedades é apenas a manifestação de uma vida frágil, desvitalizada e que perdeu qualquer sentido, para além dos exercícios frívolos que o entertainment organiza. Nas sociedades tradicionais, a vida ao conter em si a morte mostrou-se exuberante; nas sociedades actuais, ao expulsar a morte do círculo da vida, esta tornou-se frágil e sem impulso vital.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A arte da soldadura

Amadeo de Souza Cardoso - Crime abismo azul, remorso físico (1915)

O maior dos crimes é o que nos cabe em sorte, essa desesperada tentativa, nunca cumprida e nunca abandonada, de soldar o abismo que há entre nós e a vida. A desmesura desta e a sua insensatez esmagam-nos e põem-nos à distância, como animais desconfiados. A pobre consciência dispara então imperativos sobre a vontade, como se fosse possível um dia a partícula coincidir com o todo. Somos brotos deformados, frutos dessa ânsia de coincidência com a desmesura e a insensatez. O outro limitava-se a sentir em vez de pensar, mas nem isso deixa de ser já um atentado. Em cada sensação, na sua aparente completude e imediatez, ressoa uma distância, um buraco, o primeiro sinal da incomensurável distância que há entre aquele que sente e a vida. Cada sensação é já um abismo que reclama a criminosa arte da soldadura.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Da velhice como forma artística

Odilon Redon - Viejo alado, con larga barba blanca


Era-lhe agradável sentir a barba sob a mão como se esta alisasse o pêlo azulado de um animal. Começavam já a despontar nela os primeiros fios de prata, mas isso não o incomodava. Também o medo de envelhecer era um preconceito europeu. O prazer da vida aumentava com o correr dos anos, para o que era essencial o papel da experiência - na velhice não se sente apenas, tem-se consciência do prazer. Era como se, no teatro da vida, a mesma pessoa a representar no palco se visse simultaneamente como espectador. Os jovens dissipam e esquentam demais a pólvora e as suas ideias causam mais dores de cabeça do que prazer. (Ernst Jünger, Um Encontro Perigoso, p. 35)

Ernst Jünger publicou o livro de onde foi retirada a citação quando tinha 90 anos. Sabia do que falava. O curioso, porém, é que nós vivemos num mundo em que as pessoas são cada vez mais velhas e, ao mesmo tempo, onde deixaram, por isso, de ter lugar. A sabedoria que o envelhecimento traz parece ser inimiga dos poderes do mundo. Talvez a razão resida no facto destes poderes serem dados à dissipação, movidos por uma estranha sensação de falta de tempo, o que impede essa suprema aprendizagem de se ver a actuar no palco. Os poderes mundanos não suportam a sua própria imagem e, por isso, a velocidade tornou-se um imperativo inamovível.

Não se trata apenas de acrescentar a consciência ao sentimento de prazer. Essa observação pode fornecer um prazer narcísico, mas o mais importante não está aí. O prazer nasce de uma certa perversão da razão, a qual é desviada de si mesma e do seu conteúdo moral para se focalizar no prazer. Não para o julgar, mas para encontrar caminhos de intensificação. Contrariamente ao que um pensamento ingénuo pode supor, a razão e a consciência não são inimigas do prazer e do sentimento deste. Pelo contrário, elas têm o poder - não é a razão um poder? - de iluminar o sentimento, de lhe suspender a imediatez para o tornar mais demorado e requintado. A energia abrupta do sentimento, presente nos verdes anos, suaviza-se, ao mesmo tempo que se torna, pela intromissão da razão, mais incisiva, mais aberta e, apesar do poder do corpo ser menor, mais poderosa, porque abandonou a ilusão do poder.

A experiência, claro, é importante, mas apenas se ela for uma aprendizagem da razão. Não da razão pura, mas da outra, daquela a que Kant chamou heterónoma, a que se submete aos imperativos do prazer e da felicidade. Nesta aplicação, a razão aprende a libertar-se do seu próprio poder. Libertar-se significa dispensá-lo com benevolência, de forma a que sentimento e razão se tornem cada vez mais leves e cada vez mais plásticos e o prazer possa aproximar-se do paroxismo, como se fosse a obra de um exímio artista. Por isso, os poderes do mundo não suportam o envelhecimento. Quem, nestas paragens, se interessa pelo exercício requintado de uma arte?

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A cigarra pueril

Bartolomé Esteban Murillo - Niños jugando a los dados (1670-1675)


Não há nada mais revelador sobre o horizonte de um político do que a hora em que ele pretende ser edificante. Ontem, Miguel Macedo teve o seu momento de pregador evangélico: "um país de muitas cigarras e poucas formigas". Para além do carácter insultuoso contido na prédica, ainda por cima num país em que gente como Miguel Macedo tem destruído, por via das opções políticas, a vida de muitas pessoas, é notável o recurso a uma fábula infantil. As fábulas para crianças possuem, certamente, propriedades que as tornam mecanismos que permitem a interiorização do senso comum corrente. Mas o valor de uma fábula depende do contexto em que ela é utilizada. Se é um adulto que fala a uma criança, a fábula revela a intenção do adulto em fazer crescer aquele que ainda não o é. Se é um adulto que a aplica a outros adultos, ou a um povo, não apenas é um insulto - o que poderá haver de mais insultuoso do que tratar um povo como um bando de crianças? - como revela o carácter pueril de quem assim moraliza. O nível de reflexão moral não ultrapassa as pequenas histórias ouvidas na infância. É a este tipo de gente que Portugal está entregue. Pior que uma cigarra que passa a vida a cantar é a cigarra que nem cantar sabe.

domingo, 23 de setembro de 2012

Luz lateral

Emil Hansen - Blue Couple (in Profile) in Sidelight

Um dos principais problemas da actual crise reside na luz que sobre ela é projectada. As partes em confronto, nomeadamente os partidos políticos, fazem incidir sobre a situação em que se vive um foco directo. Como cada um está num ponto diferente, aquilo que é iluminado por cada partido acaba por ser diferente do que é iluminado pelos outros. Esta crise exigiria, dos vários agentes envolvidos, que aprendessem a iluminar a realidade lateralmente e conseguissem olhar de viés. Só assim se poderia encontrar pontos de convergência e novos caminhos para a comunidade. A luz directa encandeia e cega, a luz lateral cria um ambiente para que a realidade possa emergir na sua crueza e globalidade.

sábado, 22 de setembro de 2012

Paul Auster, No país das últimas coisas


Apesar de a literatura já apresentar casos que poderiam ser descritos como utopias, como a República, de Platão, é por volta de 1516 que Sir Thomas More escreve uma obra a que dá o estranho nome de Utopia. Literalmente, utopia significa não-lugar. No caso da Utopia, de Thomas More, esse não-lugar é uma ilha, onde os homens vivem em harmonia uma vida motivada pelo bem comum. Do ponto de vista literário e filosófico, estes não-lugares – que proliferaram a partir do século XVI – são visões felizes da vida em sociedade, criações imaginárias onde o mal e a injustiça – isto é, as diversas manifestação do egoísmo – não estão presentes. Não por acaso, o texto fundador do pensamento utópico moderno coloca a utopia numa ilha, como se a água pudesse evitar a contaminação da terra pura da felicidade humana.

Se o pensamento utópico moderno se desenvolve a partir do século XVI, o século XX vê chegar em força as descrições distópicas, das quais se podem destacar O admirável mundo novo, de Aldous Huxley, 1984, de Georges Orwell, e O zero e o infinito, de Arthur Koestler. Distopia significa, literalmente, um lugar de dor, de privação ou de infelicidade. As distopias referidas apresentam um carácter de intervenção política e social, uma denúncia de uma sociedade que perdeu a liberdade a favor de um modo de vida totalitário. O romance de Paul Auster, No país das últimas coisas, instala-se deliberadamente no território das distopias contemporâneas. Contudo, o seu carácter de intervenção política directa está bastante mais diluído do que nas obras já referidas.

No romance de Auster, Anne decide ir à procura do seu irmão a uma cidade para onde ele partiu como correspondente de imprensa, mas de onde nunca deu qualquer notícia nem sinal de vida. O romance é todo ele uma longa carta escrita por Anne, a um velho amigo, sobre a sua vida nessa cidade. Quando chega à cidade, a protagonista depara-se com um cenário pós-apocalíptico, onde o modo de vida habitual desaparecera sem que se saiba muito bem a verdadeira razão. Um dos traços da cidade é a sua crescente insularização, o estar a isolar-se cada vez mais do mundo, de tal modo que se ainda é possível que os forasteiros entrem, é muito improvável que alguém possa alguma vez sair.

Se o acontecimento que fez colapsar o modo de vida habitual não é descrito nem explicado no livro, há no título uma indicação preciosa. Que coisas são as últimas coisas? O romance começa assim: "Estas são as últimas coisas, escreveu ela. Uma após outra, desaparecem para não mais voltarem. Posso falar-te daquelas que vi, daquelas que já não existem, mas duvido que haja tempo para isso." Estas últimas coisas não são entidades metafísicas, pois foram vistas. Também não seria curial pensar que essas últimas coisas fossem coisas da natureza, pois esta parece ser um reservatório inesgotável de matérias. As últimas coisas, aquelas que desaparecem uma após outra, até os homens não se lembrarem mais delas, são os artefactos humanos, os produtos do engenho e da indústria humana.

O colapso da cidade não é outro senão o colapso da capacidade criadora e industriosa da humanidade. O autor desenha um território insularizado, por decisão das autoridades, onde a produção dos bens materiais que suportam a vida cessou. A partir da criação deste mundo, Auster investiga, através de Anne e das pessoas com ela vai estabelecendo relações, como seria a vida humana em tal lugar e em tais condições. As últimas coisas são aquelas que desaparecem pois não há um sistema de reposição de bens. Isto não significa que não exista trabalho, comércio e organização social. Mas o trabalho retorna à antiga fase da recolecção. Os habitantes da cidade tornam-se caçadores e recolectores. Anne tornou-se uma recolectora de artefactos perdidos que, por via da sua recuperação, entravam nos circuitos comerciais da cidade. O problema, porém, estava no uso. Usá-los significava, em última análise, fazê-los desaparecer, até que chegasse o momento em que ninguém já se lembrasse deles.

Apesar de, num mundo como o descrito, não despareceram as formas habituais que conferem sentido à existência, o amor, a lealdade, mas também a mentira, a armadilha, os habitantes da cidade dividiam-se entre aqueles que pura e simplesmente desejavam morrer, encontrando estranhos cânones para a prática do suicídio, e os que pretendiam chegar ao dia de amanhã. Ambos eram animados por um certo princípio de esperança. Os primeiros, a esperança de libertação de um mundo que perdera a significação. Os segundos, a esperança de prolongar a vida nem que fosse mais umas horas ou dias. Anne chega animada pela esperança de encontrar o irmão, mas cedo percebe que tem de transferir essa esperança para a sua sobrevivência. A cada golpe de infortúnio, a possibilidade de sobreviver requisitava uma dose suplementar de esperança.

A longa carta – que constitui o romance – é um último dispositivo de manutenção da esperança. A esperança de, por um golpe fortuito do acaso, poder fugir daquele mundo. Uma esperança sempre mitigada, pois há nela uma forte dose de ilusão, como as palavras finais acentuam: "Todos os outros dormem e eu estou sentada na cozinha, tentando imaginar o que me espera. Não consigo imaginá-lo. Não consigo sequer ter a mais vaga ideia do que nos acontecerá. Tudo é possível, e isso é quase o mesmo que nada, quase o mesmo que ter nascido num mundo que nunca existiu antes. Talvez encontremos William depois de termos deixado a cidade, mas eu esforço-me por não alimentar demasiadas esperanças. A única coisa que peço é a oportunidade de viver mais um dia. É Anna Blume quem te escreve, a tua velha amiga de um outro mundo. Prometo que, quando chegarmos ao nosso destino, tentarei escrever-te de novo."

A esperança surge, deste modo, como essa mistura de convicção e de ilusão, de crença e de mentira, que nos permite, a cada um de nós, chegar ao dia de amanhã. Mas se estabelecermos uma conexão entre a natureza distópica do romance e o princípio de esperança, compreendemos que um espaço distópico é aquele em que a esperança se funda numa ilusão sobre a situação real do agente. Esta ilusão reside toda ela na crença de que existe uma saída e há um destino onde possamos chegar para dar notícias. Paul Auster retira o seu romance do âmbito da denúncia das sociedades totalitárias, o que lhe permite dar a perceber que a distorção da vida e da comunidade humana pode ocorrer em qualquer lado. De súbito, algo que sustenta a vida deixa de funcionar e o mundo torna-se um lugar hostil aos homens. É nesse momento que a esperança surge como a grande ilusão que permite manter a vida, ainda que marcada pela hostilidade do ambiente envolvente, até ao dia seguinte. O espaço da distopia é então o de qualquer vida humana sobre a terra, essa ilha onde todas as nossas coisas são as últimas coisas.

Paul Auster (2010). No País das Últimas Coisas. Alfragide: Edições ASA. Tradução de José Vieira de Lima.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Manifestações


A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Vale a pena comparar as manifestações de passado sábado com as que ocorreram no 1.º de Maio de 1974. Em Maio de 1974, as pessoas manifestaram a esperança de que lhes fosse dado um início limpo e puro. Em Setembro de 2012, as pessoas manifestaram o desespero final, a descrença nas elites políticos e um cansaço sem fim. Da ilusão à decepção. Como em Maio de 1974, nas manifestações de sábado estiveram pessoas sem grandes compromissos políticos, pessoas de vários estratos sociais, esteve um povo que, na generalidade, não é militante político ou sindical.

Nos 38 anos que decorrem entre estes dois acontecimentos, os portugueses entregaram o seu destino à classe política, fundamentalmente à troika PP/PSD/PS. Avaliaram esses partidos como politicamente moderados e ansiaram que fossem justos e competentes. Desde muito cedo, porém, que o sentido de justiça se corrompeu e a competência técnica e política foi escasseando. Hoje (e hoje não se refere apenas ao actual governo) somos governados por gente que há décadas atrás nem para motorista do governo serviria. Gente que não estudou, gente que, se estudou, não conhece o país e a realidade nacional, gente irresponsável, habituada apenas aos truques das juventudes partidárias ou aos jogos florentinos das universidades. Foi contra esta gente que centenas de milhares de pessoas se manifestaram.

Como a manifestação do 1.º de Maio de 1974, também estas correm o sério risco de não serem mais do que um happening, que termina no momento em que toda a gente retorna a casa. Se isso for assim, 38 anos de experiência democrática não nos serviram para nada. Hoje em dia, a questão não é já exigir governantes mais justos, competentes e menos corruptos. Trata-se, pura e simplesmente, de limitar o poder dos governantes – nacionais ou locais e sejam de que cor forem – retirar-lhes através da lei o conjunto de discricionariedades que possuem,  restringir-lhes o arbítrio quando governam.

O problema reside no poder excessivo de governantes e autarcas. Esse poder só será circunscrito de forma razoável se os cidadãos perceberem que a sua função não é legitimar, pelo voto, quem governa mas fiscalizar, criticar e exigir que a classe política seja frugal nos seus apetites, transparente nos seus actos e que responda, efectivamente e de forma ampla, perante a lei pela sua acção. Salvar a democracia implica que desconfiemos absolutamente dos partidos e das pessoas em quem votamos. Só assim, as manifestações de sábado passado não terão sido um mero happening e poderão contribuir para salvar a democracia.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A mulher de Cristo

Alexander Andreyevich Ivanov - Appearance of Jesus Christ to Maria Magdalina (1835)

Ontem o Público referia a pretensa descoberta de um pequeno pedaço de papiro do século IV da nossa era, onde eram atribuídas a Jesus Cristo as seguintes palavras: "A minha mulher..." O que levanta, mais um vez, a possibilidade, já discutida no século II, de Cristo ter sido casado, isto é, ter comércio com uma mulher. Este pedaço de papiro é uma prova muitíssimo frágil, mas o problema que levanta está longe de ser irrelevante do ponto de vista da cultura ocidental fundada no cristianismo.

O que está em jogo não é bisbilhotar a vida privada de Cristo, mas determinar o valor da sexualidade e do matrimónio dentro de uma cultura cristã e, neste momento, pós-cristã. Como justificar o celibato dos padres se o próprio fundador da Igreja e filho de Deus teve mulher? A sensação que se tem, quem lê os evangelhos e as cartas de Paulo, é que desde muito cedo se desenha uma fractura entre uma visão positiva de sexualidade, da relação do homem com a mulher, e uma visão meramente permissiva, onde o casamento é admitido mas o valor da abstinência e da virgindade é superior. Estas duas linhas trabalharam ininterruptamente o cristianismo que se foi espalhando pelo médio oriente e pela Europa, tornando-se um pilar estrutural da nossa cultura.

Por outro lado, caso Cristo tenha sido casado, é o próprio valor religioso da consagração da virgindade física que é posto em causa. E isto não seria incoerente com a essência do cristianismo e com o papel do sacrifício crístico na cruz. Do ponto de vista religioso, esse supremo sacrifício não significa apenas a redenção do homem decaído mas, e ao mesmo tempo, a abolição de todos os sacrifícios humanos. E a consagração virginal de homens e mulheres, presente nas religiões pagãs, deixaria de ter um sentido legitimado na virgindade do Filho de Deus. Mais, abriria o caminho para uma outra compreensão da virgindade no âmbito da religião, mas agora de uma virgindade espiritual e não física. O que estaria em causa, como no século passado foi pensado por Raymond Abellio, seria uma castidade sem abstinência. A castidade não significaria a ausência de uma prática sexual mas a forma como ela seria encarada e realizada.

As tradições cristãs não protestantes não se fundam apenas nos textos neotestamentários mas na tradição que se foi construindo ao longo dos séculos, a qual é a autoridade última para interpretar os textos. Se Cristo tivesse sido casado, uma parte dessa tradição seria posta em causa e as próprias Igrejas, nomeadamente a Católica, seriam obrigadas a repensar o valor, agora absoluto, do casamento e, concomitantemente, da sexualidade, o que seria uma verdadeira revolução cultural. O que não deixaria de ser perturbante para a interpretação vigente, pois acabaria por cruzar um certo dionisismo pagão com o cristianismo.

Obrigaria ainda à interrogação sobre as causas que teriam conduzido, na tradição apostólica, onde Paulo de Tarso tem um papel fulcral, ao recalcamento desse acto verdadeiramente seminal que teria sido, caso fosse verdadeiro, o casamento de Cristo. Levaria também a repensar o papel que o influxo das tradições neoplatónicas e neopitagóricas teve no cristianismo e na relação deste com o corpo e a sexualidade. O pequeno papiro pode ser uma falsificação ou uma irrelevância enquanto prova. Contudo, o problema que nele se esconde tem uma natureza que transcende a vida privada de um homem privado. Para todos os efeitos, e falo aqui apenas do ponto de vista cultural, Cristo não é um homem meramente privado, é o fundador de uma cultura que se foi moldando à sua imagem e semelhança ou, em certas ocasiões, contra essa imagem e essa semelhança.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A rua muçulmana e o Ocidente

Henri Matisse - Entrance to the Kasbah (1912)

Decididamente, o mundo muçulmano é hoje em dia um actor fundamental na geopolítica mundial, como se pode ver pelas reacções às caricaturas francesas (aqui) ou ao filme idiota produzido nos EUA. Quando se fala de mundo muçulmano refere-se a rua. Através de uma criteriosa encenação e aproveitamento das tecnologias de comunicação, a rua muçulmana exerce uma contínua pressão sobre o Ocidente e os seus valores. É paradoxal a situação que se vive neste lado do mundo. Qualquer ataque à figura de Cristo ou do Papa é interpretado, e muito bem, dentro do âmbito da liberdade de expressão. Contudo, os ocidentais estão a ser pressionados a deslocar o problema da crítica a Maomé e ao Islão da área da liberdade de expressão para a da segurança. É nisto que os estrategas radicais do Islão apostam, condicionar o Ocidente pelo medo e pela consciência culpada. No dia em que o mundo ocidental trocar a liberdade pela segurança, terá alienado a sua identidade e o seu modo de vida, terá começado a sua derrota enquanto civilização. É isto que pretendem os fanáticos com as suas coreografias ululantes e cheias de fogo de artifício. Contrariamente ao que se pode ingenuamente pensar, o problema não é religioso, mas pura e simplesmente político.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Georges Bernanos, Diário de um pároco de aldeia


Georges Bernanos faz parte de um grupo de escritores católicos franceses que, na primeira metade do século XX, tentaram fazer frente, no campo intelectual, à influência, nascida no século XIX, da filosofia positivista, cuja metafísica se reduz, em última análise, ao que é dado pela experiência sensorial, origem primeira da ciência e da descrição da realidade, fonte de negação de toda a transcendência. O Journal d'un curé de campagne (Diário de um pároco de aldeia, na tradução portuguesa) é uma das obras mais importantes desse movimento de reacção à filosofia positiva e ao ateísmo crescente em França e no mundo ocidental.

Não se pense, contudo, que estamos perante um livro apologético, uma espécie de panfleto militante de cariz católico. Pelo contrário. O romance, publicado em 1936, tem por centro a acção de um jovem padre católico que inicia o seu pastorado em Ambricourt, uma aldeia do norte de França. O diário tem a função especular de tornar manifestos à consciência do seu autor as incidências e acidentes do seu trabalho enquanto sacerdote. Aquilo que poderia ser pensado como um texto anti-moderno de extracção católica, pelo facto de utilizar o diário como recurso narrativo literário e, do ponto de vista da personagem do padre, como instrumento de reflexão da sua prática, mostra-se claramente como um romance moderno e inscrito na ambiência cultural da modernidade.

O diário do padre de Ambricourt liga o texto de Bernanos à tradição francesa da modernidade e à sua figura seminal, o filósofo René Descartes. Como o cogito cartesiano, o diário – que não é outra coisa senão um cogito desenvolvido e que abarca aquilo que o cogito de Descartes pôs de lado – é marca de uma singularidade, de um indivíduo que se destaca da sua casta (o clero) e individualiza a sua acção pastoral através da narração dos episódios que a compõem. Por outro lado, esse mesmo diário é o sinal da reflexividade que distingue os tempos modernos dos que lhes foram anteriores. O pároco, como qualquer homem moderno, não vive na consciência imediata de si mesmo, mas precisa da reflexão diarística para se constituir e saber enquanto subjectividade.

Utilizando uma linguagem muito posterior, a de Michel Foucault, dir-se-á que o diário é um dispositivo de subjectivação, que constitui o jovem padre em sujeito de acção (o seu pastorado na aldeia) e de paixão (entendida esta como sofrimento). A constituição da consciência de si do pároco de Ambricourt é marcada, de forma sub-reptícia, por uma oposição que, nos dias de hoje e para a generalidade dos homens, não é compreensível, a oposição entre a vocação contemplativa dos monges e a vocação activa daquilo a que se poderia chamar clero secular. Um monge vive para a sua própria salvação, e toda a vida contemplativa e de louvor da divindade se inscreve nesse desiderato. A salvação do outro é uma preocupação indirecta. Um pároco, pelo contrário, centra a sua vida na salvação do outro, no pastorear o seu rebanho paroquial, e a sua salvação pessoal é uma preocupação indirecta e derivada do seu objectivo primeiro.

A consciência de si do jovem sacerdote é então moldada por esta opção. Ele é um agente de Deus no mundo com a finalidade de salvar aqueles que estão nesse mundo. Contudo, o mundo é uma matéria resistente e adversa. Sejam os nobres, os burgueses ou o povo, em todos eles há um catolicismo de superfície e uma indiferença, quando não uma negação activa, da mensagem crística. A consciência de si do pároco, alguém que vem dos meios mais pobres mas que é dotado de grande inteligência, cresce no confronto com as outras consciências, com a duplicidade das outras consciências. Um padre que, pela sua vida ascética, pela pobreza que ostenta, pelo aspecto doentio a que nele se manifesta, gera em todos uma reserva, se não mesmo a mais profunda desconfiança. Resistência e desconfiança por parte dos membros da paróquia são elementos nucleares na descoberta das suas possibilidades e da sua capacidade de configurar a sua própria vocação. Todo este conflito com os outros e a sua mundaneidade, um conflito surdo pautado por avanços e recuos, é paralelo com o conflito que a doença abre dentro do si, do seu corpo e da sua consciência. Um câncer de estômago, uma herança de uma família de gente tomada pelo álcool, corrói-o e irá, por fim, conduzi-lo à morte.

O leitor pode interrogar-se sobre qual a verdadeira função do diário, enquanto dispositivo de subjectivação. Será a de pautar as conquistas da consciência de si ou, pelo contrário, marcar as derrotas e a inexorável perda de si? No âmbito do cristianismo, esta questão recebeu desde sempre um tratamento dialéctico ou, pelo menos, em forma de oxímoro. Como se sublinha em Mateus 16:25, “aquele que quiser salvar a sua vida perdê-la-á, e quem quiser perder a sua vida por amor a  mim, achá-la-á”. O diário é, então e ao mesmo tempo, o registo da perdição e da salvação de um homem, um homem moderno, colocado entre o missão que lhe foi confiada e a resistência do mundo às injunções e prescrições de Deus. Poder-se-á pensar que um romance como este não faz sentido hoje em dia, pois nem os católicos já são católicos, nem o mundo presta atenção ao que pode dizer a Igreja de Roma e os seus representantes. Na aparência isso é verdade. Mas o problema da conquista da consciência de si  e  do papel da reflexividade na constituição de cada um de nós enquanto sujeito são questões completamente actuais. Por isso, o romance de Bernanos resistiu à usura do tempo e ainda tem em si força para prender o leitor. É, por certo, um clássico do século XX francês.

Georges Bernanos (2002). Journal d'un curé de campagne. Paris: Pocket.

Existe tradução portuguesa na Ulisseia e também nos Livros RTP, esgotadíssima, mas que se deverá poder encontrar nas bibliotecas.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Pudor

François Maréchal - Pudor (1993)

Não suporto essa luz. A razão? Perguntas, como se não soubesses. A luz rasga-me a face, entra-me pelos olhos, incendeia-me o cérebro, agora um monte de escombros. Poupa-me as perguntas inúteis. Só a sombra me permite sorrir, só ela torna possível que me olhes. Coleccionas destroços, restos de quem um dia foi inteiro e se quebrou contra os rochedos. Muito bem, mas apaga a luz, desvia-a de mim. Para, imploro-te. Não tenho medo de ti nem dos meus segredos. Segredos femininos, não me faças rir. As mulheres só têm um segredo. Qual? O de não terem qualquer segredo, de serem transparentes, tanto que os homens ficam cegos. Nem segredos nem medo, nada. Apenas pudor.

domingo, 16 de setembro de 2012

Um livro

Edward Hopper - Quarto de Hotel (1931)

Chegou ao fim. A melancolia de um amor que acaba é uma sombra inscrita na alma. Será melhor ser mais prosaica e olhar as letras do livro, enquanto o coração rumina a dor, a súbita humilhação da perda. Amava-o? Não, não. Nunca é disso que se trata. Insuportável ser preterida, ver desfilar a vida, o já não contar no cálculo das horas ou nos projectos de quem partilhou a nossa sombra. Leio? Não, apenas suspiro por esse teu destino fúnebre, pelo prazer que a tua derrota me trará. Contemplo no livro da vida a tormenta que o meu coração espera que sobre ti caia. Um livro é sempre um manual para vinganças tardias.

sábado, 15 de setembro de 2012

Controlar as elites políticas

D. Manuel I

Mas a péssima gestão e os gastos excessivos levaram o país à beira do colapso. D. João II e D. Manuel I, em reinados sem guerra e de abundância extrema, deixaram dívidas. (Teolinda Gersão, A Cidade de Ulisses, p. 49)

No dia em que os portugueses, pela primeira vez desde que o resgate do país pela troika começou, mostraram uma efectiva repulsa pelas políticas adoptadas, seria de questionar o papel das suas elites políticas. A tradição portuguesa - uma longa tradição vinda da monarquia antiga e que, na verdade, nunca foi interrompida - é marcada por dois aspectos essenciais. Por um lado, nos momento onde houve abundância de riqueza, esta foi confiscada por esses elites, confisco que redundou sempre em esbanjamento, segundo o desejo de uma ínfima minoria. Por vezes, caíam algumas migalhas para o resto da população, mas nunca mais do que migalhas e nunca uma política de real desenvolvimento do país e das suas pessoas. Por outro lado, faltando o dinheiro, as elites utilizaram a rapina dos pobres e o pau, por vezes em alternativa, outras vezes em conjunto, para manterem um estatuto que muito raramente mereceram.

Há uma coisa que os portugueses ainda não perceberam, mas que chegou o momento de ser pensada. Não se trata já de substituir um grupo governante por outro, mas de, através da pressão popular e da intervenção cívica, limitar drasticamente o poder das elites políticas. Os movimentos inorgânicos como os de hoje têm um ponto que mereceria atenção: o da rejeição do arbítrio. Em Portugal, a classe política, por culpa dos cidadãos ou do seu desinteresse, tem demasiado poder e teve todas as oportunidades para conduzir o país a onde chegou, para fazer todas as malfeitorias que lhe passou pela cabeça. Chegou a hora de controlar a classe política composta por gente em que a responsabilidade é inversamente proporcional à desmesura do ego. 

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Alucinações



Há em certos sectores a crença de que apenas nos resta voltar aos níveis de vida que tínhamos nos anos oitenta do século passado. Esta ideia de retorno é uma ilusão. Não é possível voltar atrás para uma situação onde nos encontrávamos e, depois ensinados pela experiência da história, fazermos agora tudo direito. Para além do tempo não voltar para trás, três coisas impedem a concretização dessa ilusão.

Esse lugar que existia nos anos oitenta já não existe. O mundo estava dividido entre dois blocos (a queda do Muro de Berlim dá-se em 89), a globalização, tomando o padrão actual, era rudimentar e os governos europeus ainda tinham margem de manobra na gestão das suas moedas e das suas políticas. Os anos oitenta não serão nunca mais recriáveis.  Em segundo lugar, a população portuguesa era mais nova. A crise demográfica já se anunciava, com a queda abrupta da taxa de fecundidade (cai de 2,11 filhos/mulher, em 1979, para 1,42, em 1991), mas ainda não era visível nem socialmente sentida. Também o envelhecimento da população, devido à queda da referida taxa e do aumento da esperança de vida, não era socialmente percepcionado como problemático. Por fim, nos anos oitenta, os portugueses viviam num clima de esperança. Sentiam que a adesão à CEE poderia fazê-los entrar numa Europa civilizada, instruída e rica. E pelo menos ricos os portugueses tinham a esperança de virem a ser. Essa esperança que tinha lugar nos anos oitenta morreu.

Sem o mundo dos anos oitenta, velhos e sem esperança, o que nos resta? Resta-nos um governo que tem a sua ilusão temporal. Não sonha devolver Portugal aos anos oitenta nem ao tempo do marcelismo. O governo sonha com o Portugal dos anos quarenta do século passado, com uma economia de guerra, onde a pobreza de milhões os obrigará à mais pura e acintosa submissão, à aceitação de qualquer coisa por quase nada. Uma economia de guerra? Sim, uma economia que resulta não de um conflito bélico, mas da destruição sistemática do pacto social, da perseguição dos trabalhadores por conta de outrem, da implosão das empresas e do esforço de milhares e milhares de empresários, de um sonho fanático de destruição de tudo o que é vivo. Depois de tudo destruído, haverá então lugar para a construção de um Portugal novo e moderno, em conformidade com o que vai nas pobres cabeças dos governantes.

Não há maior infelicidade para um povo do que ser governado por um grupo de fanáticos que sofre de alucinações. Como retornar aos anos quarenta é uma pura alucinação, o governo está a preparar uma inominável tragédia.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Loff, Ramos e a sombra de Salazar


Continua, no Público de hoje, a polémica entre Manuel Loff e Rui Ramos acerca da interpretação que este último faz, na História de Portugal que coordenou, sobre a natureza do Estado Novo. A minha posição sobre a polémica está aqui. Um post de Mário Moura no The Ressabiator faz um excelente levantamento da forma como Rui Ramos trunca as posições de Manuel Loff, tentando, através da vitimização, aniquilar a polémica. Rui Ramos tem uma vantagem sobre Manuel Loff, mas é uma vantagem não científica: escreve muito melhor que Loff. Por outro lado, há uma coisa em que estou mais próximo de Ramos. Não entendo o Estado Novo como um regime tecnicamente fascista. O regime teve múltiplas máscaras, afivelou mesmo alguns tiques fascistas, por uma questão de conveniência, mas não é confundível nem com o fascismo italiano nem com o nazismo alemão, embora se eles tivessem ganho a guerra, o comportamento de Salazar seria outro. Dito isto, a natureza do regime não se torna mais benigna nem perde um grama da violência institucional a que dava corpo. E aqui estou de acordo com Loff na crítica que ele faz do adoçamento do Estado Novo pela História de Rui Ramos (nunca Loff deu a entender que Rui Ramos era fascista, como este se vitimizou, mas apenas que ele interpreta mal a natureza do regime). Mas não é sobre isto que quero falar, mas sobre Salazar e a sua sombra.

Comecemos pela sombra. A polémica estala, na esfera pública, devido à sombra de Salazar. Tanto a direita como a esquerda têm dificuldade em lidar com o peso dessa sombra. A esquerda porque foi perseguida e derrotada, com violência e manipulação, por Salazar. A direita, ou aquelas pessoas que, tendo um passado oposicionista, hoje clamam por análises serenas (como se a serenidade fosse uma categoria epistemológica) têm ainda mais dificuldade em lidar com essa sombra. Mesmo os hipotéticos liberais que se esganiçam na blogosfera têm o seu coração naqueles tempos (que muitos só conhecem de ouvir falar lá em casa) em que a plebe não podia entregar-se ao luxo de viver em democracia. De facto, para muitos dizer que vivemos acima das nossas possibilidades não significa outra coisa senão isso: vivemos em democracia e a plebe tem direito de voto e liberdade de expressão. Por trás disto, contudo, há um juízo moral sobre o ditador: ele era uma pessoa virtuosa, não um corrupto, nem alguém que esmifrou o Estado português. Salazar nasceu pobre, governou pobre e morreu pobre. É verdade.

O equívoco está todo aqui. A corrupção não exista apenas ao nível económico. Os vícios dos homens não são todos iguais e há pessoas, certamente como Salazar, que não tiram qualquer prazer da riqueza ou a sua vida não se orienta para um acumular ilícito ou lícito de dinheiro. Isto não torna Salazar virtuoso, apenas nos diz que ele não tinha o vício da cupidez. Há, contudo, outros vícios tão ou mais repugnantes moralmente que esbulhar os dinheiros públicos. Salazar esbulhou a liberdade dos portugueses, reduziu-os constantemente à menoridade, tratou-os como crianças. Isto para se manter na glória do mando. A paixão pelo poder é tão viciosa como a paixão pelo dinheiro. Salazar não roubou o dinheiro do Estado, mas roubou a liberdade dos portugueses, roubou a sua iniciativa, roubou a sua dignidade ao tirar-lhes a liberdade. Não é honestidade instituir uma sociedade completamente vigiada por informadores, uma sociedade horrível onde todos tinham medo dos denunciantes e viviam calados. Mais, foi desonesto nas eleições, manipulou-as para se manter no poder. O regime do Estado Novo foi um regime altamente corrupto, pois corrompeu a liberdade dos cidadãos para garantir o prazer máximo do Professor Salazar: o exercício solitário do poder. Isto é imoral.

O poder é uma moeda tão corruptora quanto o dinheiro. É evidente que, como todos os viciados, Salazar tinha que sublimar o seu vício mostrando-o como missão. Mas o que esteve sempre em causa foi o seu vício privado de mandar, o prazer e a glória do poder, a subtracção à concorrência. E para tal valeu tudo, desde os assassinatos até à censura e ao delírio de uma pátria multicontinental e uma guerra colonial sem fim nem sentido. Morreu muita gente por causa do prazer solitário do Professor Salazar. A verdade é que o ditador não é uma figura virtuosa, mas o representante mais acabado dos que são viciados no poder e que não olham a meios para sustentarem o seu vício. Salazar para tal não precisava de enriquecer - julgo que ele desprezava os ricos - mas de submeter um povo ao seu onanismo político. E isto, apesar das aparências, é ainda mais imoral do que o comportamento canalha do politicozeco patifório da nossa democracia que rouba o Estado para enriquecer pessoalmente. Independentemente da denominação semântica do regime, este, mesmo se não foi espectacularmente violento, foi de uma violência preventiva atroz e de uma indignidade moral tão grande como qualquer ditadura. A moral não se limita ao dinheiro nem ao sexo. O respeito pelo outro - o mandamento máximo da moralidade - começa pelo respeito pela sua liberdade. Ora isso nunca foi um apanágio do exercício político do Professor Salazar e o regime político que arquitectou foi sumamente imoral.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O ministério da iniquidade

Giorgio de Chirico - Gladiadores y león (1927)

As graves crises sociais, como aquela que está a afligir os países da Europa do sul, são sempre terreno fértil para a especulação apocalíptica. Racionalistas, educados no espírito das Luzes, porém, sempre encontramos explicações racionais para este tipo de acontecimentos. Seja a avidez dos mercados, seja a incúria dos governantes, seja as pretensões da plebe democrática a viver acima das suas posses, tudo isso são racionalizações que facilmente encontrarão justificações no âmbito das ciências sociais e humanas, ou naquela área da teologia dogmática que tem o nome de economia.

Contudo, nunca deixa de ser para mim um mistério a existência de homens que tenham por função fazer sofrer outros homens. Como é possível que alguém tenha por vida denunciar outros pelas suas crenças políticas ou religiosas? Como é possível que alguém tenha estômago para torturar outro ser humano? Como é possível existir alguém que se proponha governar um país com o fito de destruir não apenas as expectativas dos cidadãos mas até o seu mais elementar modo de existência? 

Sim, aquilo que nós assistimos é a um exercício político do mal, desse mal que se funda na ausência de equidade e de justiça. E esse mal não deixa de ser para mim, por mais explicações científicas que lhe dêem, um mistério, o mistério da iniquidade. Mas mais misterioso que o mistério da iniquidade é o mistério daqueles que aceitam o exercício do mal, que aceitam o ministério da iniquidade. De facto, em tudo isto há qualquer coisa de perversamente teológico.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Yasunari Kawabata, Terra de Neve


Ler um romance implica sempre um transportar-se para o universo romanesco. Não é o mundo, o meu mundo, quotidiano que procuro e encontro, mas um outro desenhado pela narrativa. Ler romances implica, desde logo, uma capacidade de transporte e um exercício de estranhamento. O leitor é um forasteiro que quer compreender as regras de conduta, as normas morais, o sentido do fluxo do trânsito. Se leio um romance português, europeu, americano, encontro, por estranho que possa ser o território colonizado pelo narrador e suas personagens, inúmeras indicações que me são familiares e, passadas algumas páginas, começo a sentir que estou em casa ou numa aldeia vizinha.

Ler Terra de Neve, de Yasunari Kawabata, implica mais do que uma capacidade de transporte e um exercício de estranhamento. O Japão e a sua cultura são radicalmente estranhos. São mais estranhos ainda porque vivemos num tempo onde se tem a falaz ilusão de que tudo está próximo e nada nos é desconhecido. Toda a gente já ouviu falar de geishas, mas saberá efectivamente o que é uma geisha? Saberá distinguir entre uma geisha que vive numa grande cidade como Kyoto ou Tóquio de uma que vive no mundo rural onde se localizam as termas (território desta narrativa)? A questão que se coloca ao leitor ocidental é interessante.

Numa recensão encontrada na Internet, escreve-se: “Por outras palavras, as cenas desdobram-se espontaneamente e nem tudo é explicado. Tem que se pensar. Se alguém acha que pensar é árduo, então também precisa de paciência. Diria, porém, que para ler a obra de Kawabata não é apenas necessário cumprir a prescrição de Coleridge, a de suspender a descrença, aplicável a toda a literatura. É preciso fazer o contrário do que é proposto pela recensão citada. Não é uma questão de paciência e muito menos de pensar. O essencial será suspender mesmo o pensamento e mergulhar naquele território de luz e sombras, não para desfazer analiticamente o mistério mas para participar nele, contemplando-o.

O romance é solidário com a cultura japonesa e com os seus fundamentos espirituais, tão adversos ao raciocínio, que se concretizam no Budismo Zen ou na arte do haicai. A estranheza está aqui: produzir uma obra narrativa sob a influência de uma cultura de suspensão ou minimização do discurso. A história gira em torno de três personagens, o rico e diletante Shimamura (estava a escrever um livro sobre o bailado ocidental sem nunca ter visto um), um citadino de Tóquio, casado, Komako, uma jovem geisha rural, – as duas personagens centrais – e uma segunda jovem, Yoko, provavelmente destinada à profissão de geisha. Os homens casados, segundo o costume, frequentam as termas sem a companhia das respectivas mulheres e é nessa situação que Shimamura conheceu e se sentiu atraído por Komako. O romance começa na viagem de comboio de Shimamura, quando volta às termas para se encontrar com Komako. Nessa viagem, nota a presença de uma bela jovem, Yoko, que acompanha um doente, e que sai na mesma estação.

Kawabata não faz da paisagem, da terra de neve com as suas mutações, um quadro de fundo onde decorre a vida das personagens. Na tradição ocidental, está inscrita uma quase oposição entre o mundo da vida e o espaço natural onde essa vida decorre. Neste romance, porém, há uma simbiose entre a natureza e o homem, que podemos captar, curiosamente, pela ideia de fluxo heraclitiano. O jogo de sentimentos entre Shimamura e Komako ou o nascimento do interesse de Shimamura por Yoko inscrevem-se na paisagem e fluem nela como qualquer outro elemento natural. Nascimento, maturação e morte de um amor não diferem do fluxo das estações, do ritmo da vida, do pulsar do cosmos.

Mesmo a morte de Yoko na cena final, uma morte que de alguma maneira faz lembrar a tragédia grega, ajuda a inscrever o conjunto da vida humana no cosmos: Mas quando [Shimamura] quis avançar para a voz quase delirante [de Komako], os homens que se tinham precipitado para lhe tirarem dos braços Yoko inerte, os homens que se apertavam à volta dela, repeliram-no tão violentamente que perdeu o equilíbrio e cambaleou. Deu um passo para se recompor e, no instante em que se inclinava para trás, a Via Láctea, numa espécie de extraordinário frémito, fundiu-se nele.

A dificuldade que o leitor ocidental pode encontrar reside toda aqui. Deverá entrar no território romanesco, mas não lhe cabe identificar-se com o protagonista da acção – pois a acção nem sequer é uma categoria essencial a esta narrativa – mas pura e simplesmente contemplar a natureza das coisas no seu fluir eterno e efémero. A fusão da eternidade e da efemeridade de uma vida que flui faz toda a beleza da narrativa.

Yasunari Kawabata (2003). Terra de Neve. Lisboa: Dom Quixote. Tradução de Armando da Silva Carvalho.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Magias liberais

René Magritte - El Mago (1952)

Por um passe de mágica, cerca de dois mil milhões de euros anuais passam dos bolsos de quem trabalha por conta de outrem para o bolso dos empregadores. Esta magia tem um nome: Estado. Contrariamente ao que se propala por aí entre os indefectíveis, os liberais sempre gostaram do Estado. E gostam de tal forma dele que o colonizam para, através da escritura da lei, usurparem o trabalho das pessoas. Porque gostam tanto os liberais do Estado? Porque este é o lugar do universal. Não que os liberais queiram leis que sejam moralmente universais. O que os liberais querem é que as suas reivindicações particulares surjam aos olhos das pessoas como tendo valor universal. Portanto, o Estado é um elemento central na política liberal, um  factor de protecção dos imensamente poderosos contra o homem comum. Sejamos claros: o Estado não é em si mesmo moralmente indigno. O que é imoral é a captura do Estado pelos interesses particulares dos poderosos, através de magias liberais como aquela que Passos Coelho executou na passada sexta-feira.

domingo, 9 de setembro de 2012

Da felicidade e da igualdade

Max Klinger - Felicidad

Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.  (Lev Tolstoi, Anna Karénina)

Esta é a frase de abertura do romance de Tolstoi. Talvez ela explique - melhor do que muitos tratados de sociologia, economia ou filosofia - a persistência, na humanidade, de certos anseios, os quais se traduzem em atitudes sociais. A felicidade assemelha, torna igual, enquanto a infelicidade diferencia. Por isso, as utopias sociais, como as derivadas do marxismo, que nasceram no século XIX e se prolongaram no século XX, associaram o estado de felicidade geral da humanidade à igualdade social. Esta ideia não foi uma invenção dos marxistas, mas parece estar inscrita no coração da humanidade. Não apenas a felicidade assemelha, como o assemelhar é uma condição da felicidade.

No entanto, a experiência geral da humanidade é também a dos estados de infelicidade. Ser infeliz não é um estado específico contrário ao ser feliz, mas uma limitação da felicidade, a ausência de certo tipo de coisas. Aquilo que limita a nossa possibilidade de sermos felizes é diferente de família para família ou, num tempo mais egoísta, de indivíduo para indivíduo. Daí o nascimento da diferenciação e da hierarquia social. Assim, o insight de Tolstoi permite perceber, para além das explicações do poder e da dominação, a hierarquia social. Esta resulta da experiência da infelicidade. É a infelicidade que desagrega a comunhão dos seres felizes e os distribui por uma escala sonora, digamos assim, com diferentes comprimentos de onda. 

Perante a limitação humana, a qual nos conduz sempre a uma qualquer forma de ser infeliz, os estamentos sociais, as famílias, os indivíduos diferenciam-se, e aqueles que ocupam os lugares menos infelizes na escala social tornam-se extraordinariamente avaros da sua infelicidade. Partilhá-la seria aumentá-la, pensam. Por isso, defendem tenazmente a desigualdade entre os homens, fundando-a na natureza, no mérito pessoal ou noutra coisa qualquer. Na verdade, tudo se resume ao medo de ser ainda mais infeliz. Isso, porém, não apaga, no coração dos mais infelizes, o sentimento de que a felicidade pressupõe a igualdade. Em linguagem teológica, seria a comunhão dos santos; em linguagem kantiana, o reino dos fins; em linguagem marxista, a sociedade sem classe. Enquanto o homem existir, o conflito entre a aspiração à felicidade geral e o medo do aumento da infelicidade não terá fim.

sábado, 8 de setembro de 2012

A caixa de Pandora foi aberta

Lawrence Alma-Tadema - Pandora (1881)

Ontem foi um dia histórico. Sem disfarce, o governo de Portugal decidiu transferir milhares de milhões de euros dos bolsos dos trabalhadores por conta de outrem para os empregadores. Todos sabíamos de que lado estava o governo, mas a situação catastrófica das finanças públicas permitia disfarçar como universal uma política que apenas serve uma pequeníssima parte dos portugueses. Estes suportaram tudo o que o governo decidiu até agora, ainda na ilusão de que a política era uma política para o todo nacional. Ontem, Passos Coelho rasgou o já muito esfarrapado pacto social que estruturava a vida da nossa comunidade. Disse, sem o menor problema de consciência, de que lado da barricada se encontrava e quem quer ele defender e quem é perseguido, social e economicamente, pelo governo. Fez uma aposta terrível sobre a natureza dos portugueses: eles têm alma de escravos e como tal aceitam tudo. Se Passos Coelho ganhar e os portugueses aceitarem todo o fanatismo ideológico que rege a governação portuguesa, então nós, portugueses, merecemos ser escravos. Mas uma coisa é certa: o primeiro-ministro radicalizou de tal maneira as suas opções que abriu a caixa de Pandora. Todo o mal que sair lá de dentro, mesmo que seja a submissão à escravatura, tem como primeiro responsável Passos Coelho.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Uma questão moral



No mundo em que vivemos deixou, na verdade, de haver margem para grandes alternativas políticas. A experiência portuguesa é sintomática. Governados pelo PS ou pelo PSD-CDS, os portugueses sabem que, para além da retórica e da propaganda, o que podem esperar de quem ocupe o poder é o mesmo. A mesma política, os mesmos objectivos e os mesmos resultados. Os portugueses também sabem outra coisa. Sabem que votar à esquerda do PS, isto é, no PCP e BE, para além do voto de protesto, de pouco servirá. Pressentem, não sem razão, que um governo de esquerda, nas condições específicas em que o país e o mundo vivem, conduziria ao isolamento e a uma situação – mesmo que mais digna moralmente – económica e social ainda mais depressiva.

Na verdade, aquilo que é o sentimento geral não deixa de ter fundamento: não há alternativas pois o nosso destino (e isto não tem a ver apenas com o défice) não está nem estará, nos tempos mais próximos, nas nossas mãos. No entanto, há uma questão moral que merece ser pensada. Eu sei que política e moral não são a mesma coisa. Mas, apesar disso, a questão moral terá sempre de assombrar as práticas políticas da governação.

É provável que Portugal não tenha outra alternativa que não seja seguir o diktat dos representantes dos credores (vulgo a troika). São as consequências desse diktat que é preciso esclarecer. E estas são simples: um empobrecimento radical da maioria dos portugueses, a destruição da frágil classe média nacional, o retorno à emigração, condições de trabalho a roçar a escravatura (piores do que no tempo de Marcello Caetano), desemprego em massa e sem fim à vista, cuidados de saúde drasticamente piores e, como consequência, a morte cada vez mais cedo, serviços de educação cada vez piores e protectores das elites sociais. Estas são as consequências daquilo que a troika exige e que toda gente sabia e conhecia.

Mas uma coisa é fazer o que tem de se fazer por não haver alternativa, outra é fazê-la por gosto e programa ideológico. E este governo – de uma incompetência atroz, como se verifica pelo falhanço no défice – faz esta política por prazer fundado na sua ideologia. É isto o que significa dizer que se quer ir além da troika. Esta expressão é uma confissão da natureza daqueles que nos governam. Ir para além da troika é aumentar sem pudor o conjunto de sofrimentos que caem sobre os portugueses. Não qualifico sequer a qualidade moral de quem nos governa e quer ir além das exigências troika. As pessoas encontrarão por si mesmas os epítetos adequados a esta gente.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A usura da avareza

Christoph Ludwig Agricola - Batalha entre cavaleiros

Veja o meu sobrinho, fale com ele como entender. Lembre-se apenas de que ele é um pateta. E não tenha qualquer consideração pelo nome, título e outras frivolidades. Temo que a sua generosidade dê demasiada atenção a tudo isso. Já não há nobres, meu caro amigo, ponha isso na sua cabeça. Conheci dois ou três, no tempo da minha juventude. Eram personagens ridículas, mas extraordinariamente típicas. Faziam lembrar os pequenos carvalhos de vinte centímetros que os japoneses cultivam em vasinhos. Os vasinhos são os nossos usos, os nossos costumes. Não há família que possa resistir à lenta usura da avareza quando a lei é igual para todos e a opinião, juíza e mestra. O nobres de hoje são burgueses odiosos. (Georges Bernanos, Le Journal d'un Curé de Campagne)

Bernanos publica o romance (Diário de um Páraco de Aldeia, na esgotadíssima tradução portuguesa) em 1935 e 1936. O que se constata nesta passagem de um diálogo entre dois padres é a rasura do mundo. A nobreza tornou-se um exercício frívolo de patetice e os valores dominantes são os da burguesia vitoriosa. O modo de vida burguês assenta num traço caracterial que, desde sempre, roubou legitimidade moral ao regimes liberais. Esse traço está claramente enunciado na citação: a avareza. A visão aristocrática do mundo, na idealização que transportava mais do que na praxis quotidiana, continha-se em si a ideia de liberalidade. Esta é entendida como generosidade. Os valores liberais burgueses assentam não na generosidade mas na avareza do indivíduo. Liberalidade aristocrática e liberalismo burguês estão nos antípodas.

Contrariamente ao que muita gente propala por aí, a desligitimação moral dos governos liberais-burgueses não nasceu na esquerda e nos movimentos operários e populares. Estes apenas aproveitaram uma constatação que tanto a nobreza como o clero católico tinham desde sempre feito. A usura da avareza corrói as famílias aristocráticas, transforma nobres em burgueses odiosos, mas não só. A sua natureza ácida - e esta acidez tem nomes específicos: eficácia, eficiência, a inovação, etc. - corrói continuamente toda a estrutura social, pondo em cada momento em perigo a ordem estabelecida e ameaçando continuamente os mais fracos. E por muito que os ideólogos liberais-burgueses (e Portugal, de um dia para o outro, descobriu-se pejado deles) se esforcem para polir a imagem dos novos senhores, nunca a ilegitimidade moral do mundo burguês triunfante se poderá apagar perante os valores superiores da liberalidade aristocrática, mesmo se estes surgem travestidos na condenação moral que a esquerda, enquanto representante do quarto estado, dirige à presente situação. 

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

A dança do tempo

Wilhelm Gause - Baile da corte em Viena (1900)

Olhar um quadro como este fora do seu contexto epocal é uma vantagem relativamente à visão na altura. Aquilo que se perde da experiência viva é compensado pela revelação que o tempo e a história proporcionam. Isto permite desvendar aquilo que nem o artista nem os figurantes poderiam saber. Para quadro que retrata um baile da corte, este dá pouca atenção, em aparência, à dança em si mesma. Pelo contrário, a generalidade das pessoas conversam, observam, parecem expectantes. O centro do quadro é ocupado pelo imperador austro-húngaro Francisco José I (o bigode e as suíças não enganam) rodeado de damas da corte. O poder está firme e no centro do mundo. Estamos em 1900 e nada parece contestar a solidez do Império. Contudo, há no quadro um elemento dissonante, o par que dança. Há nele todo um desafio à ordem estabelecida. Contrariamente aos outros figurantes, estes não estão parados. Deslizam. E, no seu deslizar, disputam a centralidade do quadro ao Imperador ao mesmo tempo que se afastam dele.

Se para um leigo, como eu, na história austro-húngara foi possível identificar o Imperador, isso já não acontece com o par dançante. Será, por certo, gente muito importante, mas não para mim. Pergunto: quem dança ali? Passado mais de um século, só há uma resposta: o tempo. O par que dança, que parece deslizar e afastar-se do núcleo central da Corte, é a encarnação do tempo. É a presença irreversível do fim do Império e dos bailes da Corte  de Viena. Esse fim ainda vem longe. O Império desaparece em 1918, na sequência da primeira Grande Guerra, e o Imperador morre em 1916. O quadro, que parece retratar o carácter eterno, estático, da situação política figurada no Imperador, traz nele o sinal de que tudo o que se vê no Baile da Corte de Viena está já condenado. O par que dança não tem consciência de que, ao dançar, anuncia o fim daquele mundo. Eis a suprema ironia, o baile que celebrava a solidez daquele tipo de vida é, passados tantos anos, susceptível de simbolizar a sua decadência. O tempo revela a verdade que se escondia naquela hora.  Ele tece e destece o mundo sem nunca ter consciência do que faz. Limita-se a dançar e na sua dança a ordem desordena-se e o caos ganha contorno, figura e torna-se cosmos. Da desagregação do Império austro-húngaro nasceu outro mundo, aquele que veio até aos finais dos anos 80 do século passado. Um mundo que ainda não estava ali, mas para o qual, dançando, a humanidade se precipitava.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Ivan Turguénev, Águas de Primavera


Uma meditação sobre um tema recorrente da tradição ocidental, a oposição entre o amor puro e inocente, o verdadeiro amor, e a paixão erótica, a sombra que conduz o homem à perdição. O romance insere-se numa preocupação de Turguénev com o primeiro amor. Já em 1860 tinha escrito O Primeiro Amor (ver recensão aqui). Fragilidade e ilusão do amante são os temas retratados nas duas obras. Em O Primeiro Amor é explorada a situação frágil e impotente do jovem perante a submissão da amada ao desejo e poder de um homem mais velho, o próprio pai do apaixonado. Na verdade, uma espécie de anunciação do advento da psicanálise. Em Águas da Primavera (1872) o que está em jogo é a fragilidade do amor perante a sedução erótica.

A primeira parte do romance narra o processo de enamoramento, na Alemanha, de um jovem russo, Sánin, por Gemma, uma rapariga italiana, filha dos proprietários de uma pastelaria. O acaso condu-lo ali e através de um conjunto de peripécias – entre as quais estão o ajudar a recobrar a consciência ao irmão da jovem, a entrada para o convívio da família, um passeio pelo campo em companhia não apenas da família italiana mas também do noivo da jovem (um burguês alemão, encarnação das virtudes comerciais germânicas, que se viria a revelar cobarde e, mais tarde, desonesto), um insulto por parte de um militar alemão e um duelo – o jovem russo e a jovem italiana descobrem o amor e traçam planos para o futuro.

Quando procura satisfazer as condições materiais que assegurem esse futuro, Sánin encontra uma mulher, também ela russa e estranhamente casada com um antigo companheiro de escola, que o seduz até à submissão mais completa e à destruição do seu futuro casamento, para o rejeitar e desprezar de seguida, como se o interesse por ele existisse apenas enquanto resistia aos seus jogos de sedução. A verdade, contudo, é que esta experiência de submissão erótica é uma revelação, uma revelação que tem como arquétipo a sedução que Eva exerce sobre Adão e que conduz, na mitologia hebraica, à expulsão da humanidade do paraíso. Neste caso, revela-se a fragilidade ontológica do homem e a natureza facilmente corruptível da inocência. Também no romance de Turguénev há uma revelação: a da fragilidade do primeiro amor, de um amor ainda inocente, que não tem energia suficiente para resistir ao jogo da sedução.

Sánin, depois da experiência arquetípica da degradação da paixão erótica, torna-se pragmático e, durante a vida de adulto não é ao amor que presta culto, mas aos seus negócios, que faz prosperar. A experiência desse amor e da queda para que se deixa arrastar é narrada em forma de rememoração. O que significa esta estratégia narrativa? Significa uma hiper-ficcionalização do acontecido. Amor inocente e a paixão erótica são figuras da imaginação, são ficções e como tal são descritas enquanto ficção de uma ficção. É esta hiper-ficcionalização realizada pelo protagonista que, passados dezenas de anos, lhe permite olhar de forma distanciada e restabelecer contacto com esse primeiro amor, que seguiu também o seu prosaico caminho. É como se a ligação com a realidade fosse impossível na experiência directa e imediata e exigisse o distanciamento que a ficção impõe ao acontecido. Percebe-se, deste modo, que apesar da aparência, o amor inocente e a submissão erótica possuem um raiz comum. Nascem da ilusão propagada pela imaginação que afecta a forma como interpretamos os nosso próprios desejos. As águas da primavera acabam por secar no verão, mas quando chega o outono da existência emergem sublimadas do fundo da memória. É esta que ordena e dá sentido ao heteróclito da vida, às múltiplas tensões a que o desejo é submetido, às inúmeras experiências e expectativas a que cada um é submetido.

Como em todas as verdadeiras obras literárias, em Águas da Primavera existe, subjacente à narrativa, uma assumpção sobre o que é a literatura e, fundamentalmente, a ficção. Só é possível ficcionalizar aquilo que já é uma ficção. Tanto o primeiro e inocente amor como a queda no abismo da submissão erótica não são factos brutos da existência, mas ficções. Ficções devem ser entendidas como fabricações, produções do espírito. Elas são factos apenas no sentido em que são fabricadas, feitas. É a natureza operativa e fabricada - isto é, ficcional - presente nos acontecimentos narrados que permite a sua ficcionalização enquanto literatura.

Ivan Turguénev (2010). Águas da Primavera. Lisboa: Relógio d'Água. Tradução do russo e notas de Nina Guerra e Filipe Guerra.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Rui Ramos, Manuel Loff e as vacas sagradas

Franz Marc - Cow, Yellow, Red, Green (1912)

Parece que, também em Portugal, se vive num lugar de vacas sagradas. O exemplo disso é a reacção aos textos do historiador Manuel Loff e à crítica que este faz de Rui Ramos. Hoje, é João Carlos Espada, no Público, que vem chorar pela sua dama ofendida. Também, no mesmo jornal, António Barreto incensa RR. Já no sábado, Maria Filomena Mónica derramou abundantes lágrimas de comiseração e de indignação por alguém se ter lembrado de confrontar Rui Ramos. Toda a direita intelectual arrepanhou os cabelos e esganiçou. O pior de tudo, porém, foi o próprio Rui Ramos que deslocou a questão do confronto sobre a interpretação do Estado Novo para o domínio puramente pessoal, uma questão de difamação, lamentou-se.

Embora a argumentação de Loff não me pareça particularmente interessante, há dois problemas que ele coloca, logo no primeiro texto, e que, mesmo para não historiadores, merecem ser discutidos. São problemas ligados ao revisionismo histórico. Cito Manuel Loff: Para percebermos o que RR entende por "provocação", e em resposta a quem acha - como eu - que o seu trabalho é puro revisionismo historiográfico política e ideologicamente motivado, ele entende que "toda a História é revisionista" e nela "é necessário afirmar originalidade" (Público, 31.5.2010). Em primeiro lugar, do ponto de vista epistemológico, o que significa e quais são os limites, se é que os há, para a originalidade do historiador? Convém perceber até que ponto a narrativa histórica se confunde ou não com a narrativa ficcional, o romance. Em segundo lugar, e essa é a discussão central neste caso, é o da amplitude do revisionismo histórico presente no texto de Rui Ramos e a sua motivação. Ela é ou não é ideologicamente motivada, ela distorce ou não a compreensão da ditadura de Salazar?

Contrariamente ao que se dá a entender, Manuel Loff, apesar de não ter o prestígio social e académico de Rui Ramos, não é um zé ninguém. Ele é um especialista na história do século XX, que estudou, em contexto internacional, profundamente as ditaduras ibéricas. Noutro país, estaríamos perante um debate sério entre dois historiadores sérios. Em Portugal, tudo de imediato descambou numa questão pessoal e num confronto de bandos de esquerda (em apoio de Loff) e de direita, neste caso mais esganiçada, (em apoio de Ramos). De uma discussão de onde poderiam surgir novas linhas de força para a compreensão do Estado Novo, o que fica é a habitual reverência às vacas sagradas. Repare-se como João Carlos Espada, no Público de hoje, coloca a questão: "A campanha que está a ser ensaiada contra Rui Ramos e a notável História de Portugal por ele coordenada, (...), é um triste exemplo de reacção contra a atitude intelectual de uma sociedade aberta". 

A desfaçatez não tem limites. Os textos (aliás, textos discutíveis)  de Loff não são textos contra a pessoa de Rui Ramos mas contra as suas assumpções no campo da História. Espada não rebate (coisa que apesar de deslocar o enfoque da polémica - Loff não estava a chamar fascista a RR -, Rui Ramos faz no seu texto para mostrar que não é fascista) um único argumento de Loff, limita-se a prestar culto e adoração a Rui Ramos. Se há uma atitude claramente inimiga da sociedade aberta, essa é a de Espada e de todos os que evitam discutir as questões que Loff levanta. Mas, é bom não esquecer, estamos em Portugal. Discutir é ofender as múltiplas vacas consagradas que dominam o espaço público. Isto tanto à direita como à esquerda. O que rege a vida intelectual portuguesa é o princípio de autoridade. Na verdade, os nossos intelectuais, e aquela gente que saliva à sua volta, ainda não saíram da Idade Média. Não admira que estejamos metidos no sarilho onde nos encontramos.

(Texto alterado às 13:33)

P. S. No Público de hoje, 05/09/2012, está um artigo de Fernando Rosas que sublinha duas coisas que me parecem essenciais em toda esta triste estória. Não há nos textos de Loff nada de insultuoso ou de difamatório de Rui Ramos. Os textos visam, bem ou mal, as ideias e não o homem. Em segundo lugar, parece claro que Rui Ramos não compareceu ao debate.