quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Júlio Pomar, O Almoço do Trolha

Júlio Pomar - O Almoço do Trolha (1946-1950)

O Almoço do Trolha é o quadro mais conhecido e mais importante da fase neo-realista de Júlio Pomar. Há nele uma influência proveniente do futurismo de Almada Negreiros e uma decisão de intervenção social marcada. A rudeza das figuras, o cenário onde se manifestam, a forma como vestem são estratégias de intervenção social, a que se alia a tonalidade sombria onde, apesar da materialidade do cenário, parecem pairar.

Este subtil pairar aliado à tensão entre as figuras (onde a relação entre os pais é subtilmente mediada pela criança) remete, inopinadamente, para uma dimensão metafísica que não é expectável num quadro neo-realista. As figuras são rudes mas, se o olhar se demora sobre elas, começam a perder essa rudeza, tornando-se quase etéreas. Se nos perguntarmos de onde emerge essa sensação etérea, depressa descobrimos que ela emana do mediador, da criança. Um leitor neo-realista dirá que ela ainda não foi marcada pela vida, que a sociedade ainda não lhe marcou o rosto com a opressão quotidiana. Todavia, as figuras dos pais são nimbadas pela luz, pela auréola que se desprende do rosto da criança, o que de certa maneira lhes dá, apesar do tom soturno, uma certa tonalidade esperançosa. Estaremos ainda dentro de uma leitura neo-realista, dirá o leitor, pois a criança representa o futuro, a esperança na libertação. Sim, tudo isso pode ser verdade, mas há algo mais.

O que sustenta a leitura metafísica do quadro é a referência, que parece óbvia, à Sagrada Família. Não sei se alguém já fez esta leitura do quadro (não conheço a literatura sobre ele), mas ela parece-me tão óbvia que admito que sim. Este quadro é de facto interessante não por ter uma acentuada faceta de intervenção social, mas porque se inscreve na mais profunda tradição religiosa do ocidente. O que ali vemos é a sacralidade da família, a sacralidade do trabalhador e o papel central da criança. Todas estas temáticas são provenientes do cristianismo e são elas que dão espessura à própria intervenção social. O quadro representa uma refiguração e transfiguração da Sagrada Família, recontextualizando-a no mundo que nasceu da Revolução Industrial, como se o pintor dissesse que Deus, figurado na criança luminosa, também está ali.

2 comentários:

  1. Enquanto "leitor neo-realista" permito-me concluir que a auréola que se desprende do rosto da criança, apenas é possível porque ela não tem ainda consciência de que é filha de Pais que nunca foram meninos.

    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não sei qual era o pensamento do Pomar na altura, mas isso é irrelevante. A cultura funciona assim mesmo, infiltra-se nas pessoas e fá-las fazer coisas motivadas sem saberem muito bem por quê. Julgo, porém, que o Pomar sabia bem que estava a jogar com a ideia de Sagrada Família.

      Abraço

      Eliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.