quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Ratzinger - uma leitura do marxismo

David Lynch - A Bug Dreams of Heaven (1992)

Como o marxismo estava aparentemente alicerçado em métodos estritamente científicos, substituindo a fé pelo saber, e do saber fazendo prática, isso conferia-lhe o seu imenso fascínio. Todas as promessas não cumpridas das religiões pareciam ser resgatadas pela prática política cientificamente fundada. O desmoronar desta esperança tinha de trazer consigo uma enorme desilusão, que ainda está longe de ser ultrapassada. Parece-me perfeitamente concebível que novas formas de construção marxista do mundo se aproximem. Por enquanto ficou a perplexidade. O fracasso do único sistema cientificamente fundado de uma solução dos problemas humanos, só podia justificar o niilismo ou, em todo o caso, o relativismo. (Joseph Ratzinger, A Questão da Verdade e as Religiões (1996)

Não vale a pena sublinhar a generalidade do acerto da leitura efectuada por Ratzinger sobre o marxismo e o seu fim. Uma leitura clara e distinta, que mesmo os marxistas não poderão deixar de aceitar. Os dezassete anos que passaram sobre a apresentação do texto apenas vieram confirmar o seu acerto geral. Há no entanto uma ideia que parece ser contestável em absoluto, a ideia de que novas formas de construção marxista do mundo se podem aproximar. Julgo que esta profecia do então cardeal Ratzinger não se coaduna com as novas realidades instauradas pela desarticulação das sociedades de inspiração marxista e pelo triunfo das sociedades de mercado.

O marxismo não é uma doutrina científica como ele próprio pretende ser, mas uma interpretação crítica do mundo e um programa de acção. Nasceu e desenvolveu-se num determinado contexto social, económico e político, que desapareceu. O capitalismo que originou o marxismo extinguiu-se. As relações de trabalho, a posição relativa da economia e da política, a natureza geopolítica da comunidade internacional, tudo isso se alterou drasticamente. Os laços e os vínculos que existiam e que ligavam as várias classes foram desfeitos e as próprias classes sociais tornaram-se tão fluidas que parece estarmos na presença de correntes de águas ou massas de ar indiferenciadas, embora dirigindo-se para destinos muito diferentes e com forças e potências diferentes. 

São as próprias consequências do desmoronar do marxismo, o niilismo e o relativismo, que impedem novas formas de construção marxista do mundo. O marxismo pôde ser pensado e pôde construir sociedades sobre os alicerces sólidos do mundo burguês, mas essa solidez desapareceu, foi pulverizada pelo triunfo do capitalismo financeiro e da globalização. O velho fetichismo da mercadoria, pensado por Marx, foi substituído por formas mais voláteis e virtuais de fetichismo. Que as mercadorias tenham a aparência de uma vontade independente dos seus produtores é já pouco relevante, pois o trabalho tornou-se ele próprio irrelevante.

O sonho de uma construção científica da sociedade morreu no final dos anos oitenta do século passado e, para esse sonho, apesar da agonia da sua paixão, não haverá uma páscoa da ressurreição. Resta, de facto, o relativismo crescente e, o seu culminar, o niilismo. Isto não significa que não haverá lutas de classes, que não haverá conflitos, que não haverá dor e sofrimento. Haverá tudo isso, haverá, muito provavelmente, em quantidades cada vez maiores, mas não haverá um objectivo a alcançar ou um mundo ou paraíso a conquistar. 

À dor seguir-se-á a dor, por vezes com um breve e ilusório intervalo. A desordem crescerá e o marxismo precisa da velha ordem burguesa para fazer valer a sua. Haverá teorias libertadoras voláteis e efémeras, haverá ideologia que durará uma semana, haverá Grândolas e Ocuppy Wall Street, mas nada disso trará qualquer nova sociedade. Isso mostrará a indignação e tornará claro que há patifes e escroques e que ambos comandam o mundo, mas não haverá mundo onde não haja patifes e escroques no comando. Nos tempos que correm, patifes e escroques multiplicam-se à velocidade da luz, que é a velocidade em que se desloca o dinheiro, coisa que Marx nunca poderia ter pensado. Claramente, Ratzinger é um intelectual brilhante, mas não é um profeta.

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Independentemente da questão religiosa, Ratzinger é um pensador poderoso e estimulante. Tem uma formação filosófica bastante sólida e tem uma perspectiva histórica invejável. As análises que fez da Europa são merecedoras de crédito e de audição. Se se olhar para o panorama europeu daqueles que possuem voz pública, Ratzinger é dos pouco que tem alguma coisa a dizer. Comecei a lê-lo antes dele ser Papa, quando estava marcado pelo ferrete de chefe da Inquisição que mandou calar os teólogos da libertação. Foi uma revelação.

      Abraço e boa estadia por aí...

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