terça-feira, 30 de abril de 2013

Da imaginação e da razão

Caspar David Friedrich - Woman with Candlestick (1825)

Há dias,  numa deambulação por blogues de gente ligada à filosofia, deparei-me com um post que verberava aqueles que na filosofia trocavam o argumento lógico, fundado em conceitos claros, pela metáfora. O autor, orgulhoso do seu entendimento e seguindo uma corrente agora muito em voga em Portugal, reduzia a actividade filosófica ao exercício do cálculo lógico das proposições. Mas será esse o papel do filósofo? Será a filosofia um jogo de troca de argumentos logicamente concatenados e fabricados a partir de conceitos claros e distintos?

Ao olhar para o quadro de Caspar David Friedrich  percebo dois níveis. Num dos níveis, vejo uma realidade iluminada. A luz permite que eu pense e produza um conjunto de teorias sobre aquilo que a luz deixa ver. Mas se fico a olhar longamente o quadro começo a perceber que a outra parte, aquela que permanece na obscuridade, dá muito mais que pensar. Porque é obscura, o pensamento hesita, tem dificuldade em dominá-la. É aqui que intervém a metáfora. Ela é a primeira resposta àquilo que dá que pensar, é uma luz ténue perante a obscuridade, o primeiro sintoma de um desejo de saber. E não é a filosofia, como a etimologia não cessa de recordar, esse desejo de saber?

Desde sempre que a relação entre metáfora e conceito filosófico foi atribulada. Contudo, o que toda esta gente, embevecida com a clareza lógica, não percebe é que os conceitos filosóficos fundamentais, com os quais se fabricam problemas e se organizam teorias, são metáforas, umas vivas e outras mortas. Todo o exercício da razão é feito sobre o fundamento da imaginação. Reivindicam, ufanos, a sua actividade como científica, não percebendo que não passam de maus poetas.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

A gélida lição islandesa

Caspar David Friedrich - The Sea of Ice (1823-25)

A vitória dos partidos de direita, responsáveis pela bancarrota, nas eleições de ontem na Islândia merece meditação. As medidas de austeridade impostas pelos acordos com FMI e a intenção de fazer aderir a Islândia à União Europeia podem ter causado a derrota da coligação de esquerda. Talvez a ameaça de adesão à União Europeia seja, para os islandeses, uma ameça maior do que entregar o país a quem o levou, com políticas de desregulação, à ruína. Tudo isso, todavia, é irrelevante. A Islândia só se tornou importante porque, durante um pequeno lapso de tempo, ela parecia dar corpo a uma possível alternativa às políticas neoliberais ou ordoliberais. Tinha-se tornado mesmo numa espécie de nova Albânia (claro, democrática e livre) para novas peregrinações ideológicas dos que sentem o perigo que a deriva actual do mundo contém em si. A derrota de ontem tornou-se, por isso, um acontecimento terrível. Foi como se os islandeses dissessem ao mundo: percam qualquer esperança. Na verdade, não há nenhum lugar para onde peregrinar em busca de salvação política. Quem quiser tratar da salvação deverá entrar para um convento. Quem quiser fazer política deve olhar para a realidade. Ora a realidade está longe de ser uma coisa bonita de ser ver. Mas é com ela que as pessoas terão de viver. Isto não significa que só haja uma maneira (a liberal) de operar na realidade. Significa apenas que ainda não se encontrou outra consistente para lidar com ela. Significa também que aqueles que querem uma alternativa ao actual estado de coisas estão a procurá-la no lugar errado.

domingo, 28 de abril de 2013

Meditações Taoistas (17)

Vincent Van Gogh - Lírios (1889)

Quem bem sabe fazer o militar não é marcial;
quem bem sabe guerrear não é colérico;
quem bem sabe vencer o inimigo não se faz presente;
quem bem sabe utilizar homens fica abaixo deles.
Lao Tse, Tao Te King, LXVIII

Não há sombra que ofusque a cintilação dos lírios do campo. Como a dos pássaros, a sua glória é maior que a de Salomão. Assim, gloriosos, permanecem naquele instante em que a vida os toca e abrem-se resplandecentes sob a luz solar ou as nuvens negras do horizonte. Não se sabem cintilantes mas cintilam, não se sabem irradiantes mas irradiam, não se sabem luminosos mas iluminam. Também aquele a quem a sabedoria tocou cintila, irradia e ilumina, mas das suas virtudes nada sabe, nem quer do mundo recompensa, reconhecimento ou um simples lugar que possa dizer seu.

Caminha livre pois abandonou a submissão ao desejo de parecer. Basta-lhe aquele saber que tomou conta do corpo e se inscreveu em cada uma das células. Ele já não é ele, mas a sabedoria. Quando era ainda demasiado imaturo, a ira depressa tomava conta de si. O sangue corria-lhe depressa pelas veias e todos podiam ver o espectáculo da sua cólera. Um dia descobriu que se riam. Não era temido nem amado. O exercício colérico era apenas o sinal terrível da sua fraqueza. O fraco que se imaginava forte, o mortal que se tingia de cores divinas, a criança que se fingia homem. Quando, um dia, se perdeu na floresta, descobriu a verdade que era a sua. Toda a sua força era ainda um sinal de impotência, de uma fraqueza desmedida, da fragilidade de todos aqueles que, na arena do mundo, recorrem ao espectáculo do poder para construírem de si uma figura, a imagem que os tranquilizará durante a noite.

Como os lírios no campo, também a floresta estava ali e não sabia. Limitava-se a ser toda naqueles instantes. Luminosa se havia luz, obscura se entardecia, negra se a noite vinha sem a lua. A princípio, perdido e sem saber o caminho de volta, sentiu o medo a arder no peito. Cada ruído sobressaltava-lhe o coração e punha-o alerta, como se um perigo sem nome o rodeasse e estivesse pronto a cair sobre ele. Dias e noites passaram, e ele aprendeu a viver com o medo. Dormia onde calhava e comia o que a natureza lhe oferecia. Mais tarde esqueceu-se do medo e sentiu a floresta como a sua casa. Ter uma casa ainda é lembrar-se de si. O seu tempo não chegara. Continuou preso à casa que o acolhera. Passaram meses e anos até que um dia descobriu que ele era a árvore que via ou o pássaro que escutava. Não, a floresta não era a sua casa, mas ele próprio era floresta. Nesse dia, encontrou o caminho e voltou para a sua terra. Olhavam-no como se o não vissem e falavam para ele como se fala para o mais querido dos amigos. Observou os campos e viu, pela primeira vez, os lírios a cintilar no horizonte. Ele era a cintilação, os lírios, os campos.

sábado, 27 de abril de 2013

Poema 61 - Quatro arqueiros presos na pedra caçam

Anónimo Pré-histórico - Cena de caça

61. Quatro arqueiros presos na pedra caçam

Quatro arqueiros presos na pedra caçam,
abrem com setas de sangue rombos
nos animais suspensos no movimento.
E o galope do tempo cobre a vida,
inscreve-a na escuridão da noite,
traça a angústia nos olhos futuros
abertos para o palco do passado.

Ó tempo furtivo dos caçadores,
deixaste vestígios obscuros pelas paredes,
abriste santuários nas entranhas da terra
e levaste aqueles antepassados,
que um dia saíram para a luz
e, no zumbido da tarde, deixaram 
um rasto mortal nas hostes da vida.

Enigma de névoa sobre o calcário,
corrida desordenada vinda do passado,
eis a verdade do tempo e da vida,
o coração vazio trespassado pela seta,
as mãos silentes presas no arco,
que de tão tenso dispara o arqueiro
sobre os milénios que ardem no olhar.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

25 de Abril?


Quando se deu o 25 de Abril de 1974, o mundo, divido entre duas superpotências, estava em plena Guerra Fria, atravessava a crise petrolífera de 1973 e as consequências que dela nasciam. Se se pretender estabelecer uma linha de continuidade entre os tempos da transição à democracia em Portugal e os dias de hoje, então é preciso ter em conta as alterações radicais que o mundo sofreu, e as quais não eram sequer imagináveis na altura. Três factos alteraram para sempre a paisagem histórica onde a vida se desenvolvia. 

A Queda do Muro de Berlim e a derrocada do Bloco Socialista marcou o fim da Guerra Fria e o início de uma nova reconfiguração geopolítica. A globalização da economia mundial, centrada nos jogos do capital financeiro e na abertura dos paraísos de mão-de-obra quase escrava, introduziu uma nova relação entre capital e trabalho. A criação do Euro, em 2002, trouxe as consequências que estamos a descobrir, nomeadamente o diktat da Alemanha, agora reunificada, e a impotência dos países do Sul da Europa. 

Estes três factos vieram anular a capacidade que os pequenos países possuíam para organizar políticas próprias e fazer coincidir a vontade do eleitorado e a vontade dos governos eleitos. Lentamente, sem quase se dar por isso, tudo mudou. O que está em jogo numas eleições não é a vontade dos eleitores mas o cumprimento daquilo que a nova ordem internacional impõe. Sobre esta, a vontade dos governos nacionais ou as expectativas dos eleitorados não possuem qualquer efeito. Durante algum tempo, após o 25 de Abril, a democracia tinha como finalidade sufragar programas distintos e encontrar caminhos diversos para a comunidade nacional. Hoje em dia, contudo, já não vivemos no mesmo regime. Este é o dado essencial. Houve uma alteração de regime não por via de um golpe de estado nem por uma alteração radical da constituição, mas por imposição das circunstâncias internacionais. 

Já não vivemos na era democrática nascida com o 25 de Abril, mas na era pós-democrática que se foi impondo e para a qual não se encontrou solução. A pós-democracia em que vivemos significa o quê? Significa a existência de eleições e de liberdades públicas, mas apenas puramente formais, pois está eliminada, através da interdependência global, uma alternativa à situação. Qualquer escolha contra a ordem internacional fará pura e simplesmente cair sobre o país um duro castigo. Em 1974, foi deposta uma ditadura. Hoje em dia, nem uma ditadura há para depor, apenas um diktat que transformou a liberdade em destino incontrolável. Do ponto de vista da eficácia política, o 25 de Abril está morto, pois vivemos já noutro regime político.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Paul Auster, Homem na Escuridão


Homem na Escuridão, de Paul Auster, revisita uma vez mais a relação entre ficção e história. Não que haja uma tematização da questão do tempo e do discurso que articula a temporalidade no romance de Auster. O que existe é a fusão, ou a tensão, entre ficção e história contrafactual. O romance é composto por duas narrativas. Aquela que diz respeito a August Brill, um velho crítico literário, recolhido em casa da filha, após um desastre, e rodeado pela infelicidade geral, começando pela dele e acabando na da filha, e passando pela da neta, uma estudante de cinema abalada pela execução do namorado que se oferecera como voluntário para trabalhar numa empresa civil a operar no Iraque. Execução por um grupo terrorista que filmou a decapitação do rapaz e a divulgou em vídeo.

A história contrafactual centra-se no pós-eleições em que George W. Bush foi declarado vencedor apesar de ter tido menos votos populares do que Al Gore. Isto terá gerado uma nova guerra da secessão, onde os estados conflituam entre si, gerando-se duas entidades políticas em confronto. Esta história contrafactual substitui a história real e traumática que inclui o derrube das Twin Towers e a invasão do Iraque pelos EUA (à qual está ligada na economia da narrativa a morte do namorado da neta de Brill). Por outro lado, esta guerra virtual que compõe a segunda narrativa é o produto da própria mente de August Brill, nas horas negras da insónia.

Há duas linhas de leitura, não obrigatoriamente exclusivas, que podem ser tomadas em consideração. Por um lado, compreender a história contrafactual da nova guerra da secessão, com os seus episódios delirantes, como uma compensação, no sentido de um mecanismo de defesa contra a realidade. Contra a realidade efectiva de August Brill e do seu círculo familiar, mas também contra a realidade política americana, onde os protagonistas não deixam de estar inscritos, com a eleição de George W. Bush, os ataques de 11 de Setembro e a ominosa intervenção no Iraque. A segunda linha de leitura liga-se a uma processo de revelação. O que se está a passar nos EUA, com o seu conjunto de valores contraditórios, com a guerra no Iraque, com a eleição de alguém como George W. Bush, é uma verdadeira guerra civil. A segunda narrativa de Brill não seria uma profecia mas um apocalipse, uma narrativa da revelação.

Na primeira linha de leitura, a narrativa da nova guerra de secessão faz parte de um processo terapêutico, inscrevendo-se numa estratégia psicanalítica de ilusão e defesa que antecederá o reconhecimento da realidade do próprio protagonista, da aceitação daquilo que a sua vida tem de traumático, nomeadamente a morte da mulher, a sua ausência ou o tempo em que se afastou dela. A segunda linha, contudo, só indirectamente terá uma função terapêutica. Esta segunda linha inscreve-se numa perspectiva trágica, onde August Brill, o homem preso à insónia e à escuridão, vê aquilo que os outros não vêem. A escuridão da noite funciona como uma metáfora da cegueira, o que coloca Brill na posição de Tirésias, o cego que vê a realidade tal como ela é.

Talvez seja necessário, nos dias que correm, para compreender a realidade, para ver o seu funcionamento, que aquele que vê – o narrador – sofra de uma patologia ou, melhor, que seja já uma personalidade patológica. O sofrimento existencial e a insónia nocturna, enquanto metáfora da cegueira do Tirésias contemporâneo, são as condições de possibilidade de perceber uma realidade, a qual é manipulada de tal forma que aqueles que estão sãos vêem apenas a aparência que se produz pela manipulação. A insanidade e a patologia são os caminhos possíveis para a verdade, uma verdade que se revela na tragédia de um rapaz que é decapitado no Iraque ou de um outro que caiu no mundo da nova guerra de secessão sem saber como. Ora esta insanidade exigirá mais a catarse proporcionada com o desenrolar d a tragédia do que o divã da psicanálise.

Contrariamente ao que defendem algumas leituras desta obra de Auster, não estamos perante um ficção distópica, como acontece em No país das últimas coisas, mas perante uma narrativa de desvelamento do mundo tal como ele existe na variante americana, uma guerra civil larvar, a qual acumula, como se fosse uma ilusão de uma mente delirante, milhões de mortos. Um mundo que, porém, não se suspende, como é referido na citação de um verso, o único merecedor desse nome, de Rose Hawthorne, enquanto o bizarro mundo continua a girar. A fusão da ficção com a história contrafactual não pode ser lida apenas como um exercício de meta-ficção na sequência de Pirandello, Philip Dick e outros, mas como uma aventura gnoseológica, onde a revelação da verdade resulta da tensão das duas ficções.

Paul Auster (2008). Homem na Escuridão. Alfragide: Asa. Tradução de José Vieira de Lima.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Dos nomes e dos pseudónimos

Amadeu de Souza Cardoso - A máscara do olho verde, cabeça (1915)

Nunca compreendi a necessidade de utilização de pseudónimos sentida por escritores e outros artistas. Tome-se por exemplo o autor de As Pupilas do Senhor Reitor. Que diferença faz que ele se chame Júlio Dinis ou Joaquim Guilherme Gomes Coelho? Que diferença faz que o autor de Os Bichos se chame Miguel Torga ou Adolfo Correia da Rocha? Na verdade, assistimos apenas à substituição de uma máscara por outra. Pensamos muitas vezes que o nome, o nosso nome, está ligado e revela a nossa identidade. Mas isso está longe de ser assim. O nome permite a identificação mas não o reconhecimento de uma identidade. A identificação diz respeito à interacção e exige a persona que representa no espaço público. A identidade diz respeito ao que cada um é, e isso está longe de poder ser sequer indicado pelo nome. Como diz um poema dito e cantado pela Maria Bethânia, "eu não sou o meu nome". O nome é já a primeira estratégia em que aprendo a ocultar-me de mim mesmo. A insuportável presença de mim perante mim é evitada pelo acto social de atribuição de um nome. Os pais, ao atribuírem um nome ao seu filho, não cumprem apens um acto socialmente exigido. Eles livram-no da angustiante interrogação sobre a sua identidade, sobre o seu ser. O nome é o primeiro tranquilizante que tomamos, o fundamento sobre qual construímos o conjunto de devaneios com que configuramos a imagem sob a qual se esconde o terrível segredo da esfinge. Na verdade, o nosso nome é já todo ele um pseudónimo.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Poema 60 - Dois arqueiros caminham para a noite

Anónimo Pre-histórico - Arqueiros (Abrigo del Ciervo. Dos Aguas)

60. Dois arqueiros caminham para a noite

Dois arqueiros caminham para a noite,
rasgam na terra sendas de poeira
e pedra, rudimentos dum futuro
que o tempo, seta vil, há-de trazer.

Vão, sagrados, envoltos no mistério
que a vida aos pés lhes lança. Vigorosos,
olham o horizonte e esperam, sóbrios,
a cilada sobre eles estendida.

Meus velhos companheiros solitários,
onde estão as magníficas caçadas
de outrora, onde os gritos de triunfo?

Na pedra amortalhados, sois vestígio
que corre no meu sangue, rudes pais
de filhos sem destino nem memória.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

O cuidado em instruir

Emil Nolde - Family (with Two Children)

Todavia, aqueles a quem não foi dado receber uma boa educação, não devem ter menos cuidado em instruir os seus filhos; mas, por isso mesmo, deveriam empenhar-se mais nestes aspectos. (Quintiliano, Institutio Oratoria, Liv. I, I 7).

Esta linguagem de Quintiliano tornou-se completamente incompreensível nos dias de hoje. O cuidado com a educação dos filhos apresentado como um dever, e como um dever daqueles que não receberam uma boa educação, é algo de absolutamente impensável no actual quadro social e político. Esta linguagem do dever foi substituída por uma certa sociologice desculpabilizante, que justifica as atitudes das crianças e dos jovens fundada numa teoria da reprodução. Não é que, como mostra a sociologia, não haja reprodução dos resultados e das atitudes perante a escola. Mas por isso mesmo, a linguagem política e social deveria acentuar muito claramente a necessidade e o dever dos pais - incluindo, por maioria de razões, os que não tiveram uma boa educação - de darem uma atenção especial à instrução dos seus filhos, o que passa pelo conjunto de regras e de comportamentos que eles devem ter para que não reproduzam o insucesso escolar parental. Este é o principal problema da educação em Portugal. Era este problema que muitos esperavam que o actual ministro da Educação enfrentasse. Esperança vã, pois Nuno Crato está mais preocupado com mega-agrupamentos, despedimento de professores e outras actividades de contabilista.

domingo, 21 de abril de 2013

O homem, um produto obsoleto

Stanislaw Ignacy Witkiewicz - Confusão geral (1920)

Sim, os que já não podem trabalhar já não têm dinheiro para consumir. É uma espécie de auto-abolição do capitalismo. Numa fábrica faz-se uma camisa em cinco minutos quando anteriormente um artesão precisava de uma hora. Isto significa que há menos trabalho investido na camisa. Numa sociedade racional diríamos "vamos fazer a mesma camisa que anteriormente, mas trabalhando apenas cinco minutos". Mas é o contrário que acontece: obriga-se o operário a trabalhar mais, a fazer mais camisas, e depois é preciso vendê-las. Se se produz cada vez mais, é para contrariar o facto de que em cada mercadoria é investido menos trabalho e portanto a mais-valia é mais reduzida. (Anselm Jappe, Entrevista ao Público de hoje)

Toda a entrevista de Anselm Jappe merece ser lida e meditada. Gostaria de salientar, a partir dela, um dos aspectos centrais do sistema capitalista. Não é apenas  facto de ele conter em si contradições que geram, ciclicamente, crises. Nem é o facto de, hipoteticamente, conter no seu seio aquilo que o poderá destruir. O que é central, como se pode perceber pela citação, é que os seres humanos se tornaram, do ponto de vista das empresas produtoras, redundâncias. O elemento humano é aquilo que qualquer empresário, seguindo a lógica do sistema, quer diminuir ou mesmo abolir. Todo o investimento que é feito nas áreas da computação, da robótica e mesmo da inteligência artificial visam tornar obsoleto o homem. Não se trata já da tradicional obsolescência dos produtos criada pela imaginação humana e pela competição no mercado. O mais curioso de tudo isto é que a obsolecência do homem é a consequência directa de uma modernidade que tomou como preocupação central o homem. De facto, o homem tornou-se para si-mesmo um produto obsoleto.

sábado, 20 de abril de 2013

Revisitação do terror

Edvard Munch - The Murderer (1910)

Os recentes acontecimentos em Boston fazem retornar ao palco mundial o problema do terrorismo. A captura dos presumíveis autores dos atentados tranquiliza a população mas está longe de poder sossegar o espírito daqueles que acompanham o devir da política mundial. O terrorismo de natureza político-religiosa é o pior que poderia ter acontecido ao ocidente. O terrorismo meramente político, além de ter um prazo para além do qual cansa os próprios militantes do terror, tem ainda uma possibilidade última de ser resolvido politicamente. A introdução do elemento religioso altera drasticamente o que está em jogo. 

A justificação do terrorismo político é sempre relativa e finita, mas o terrorismo religioso possui uma justificação absoluta e sem fim para os seus crimes. Poder-se-á pensar que o terror de inspiração islâmica também tem objectivos políticos marcados pela razoabilidade. Terá, mas esta razoabilidade será sempre estratégica, será sempre um momento para novas conquistas, para novas imposições pela força, se tal lhe for permitido. Do ponto de vista da ideologia do terror, só a completa conversão do mundo ao Islão trará paz. Até lá, é legítimo matar os infiéis, ainda por cima depravados pela liberdade. Um projecto absoluto, visando a submissão absoluta, legitimado na crença que o Absoluto ordena tal projecto é um problema irresolúvel e sintoma de que nunca no mundo haverá paz.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Uma deusa terrível e vindicativa


As novas gerações de políticos europeus parecem não ser muito diferentes entre si. Não me estou a referir ao malfadado caso de um político da virtuosa Holanda fascinado com uma habilitação académica que não possuía, ou a história de certa ministra da não menos virtuosa Alemanha acusada de plágio na tese de doutoramento. Coisas parecidas também são conhecidas por cá. Na verdade, não é daí que vem o pior dos males. Verdadeiramente trágica é a abolição do conhecimento profundo da história nacional e mundial do currículo formativo dos políticos. Durante muito tempo, a racionalidade política via a história como o laboratório onde, juntamente com a filosofia política, se aprendia a arte da governação. 

Isto vem a propósito do conflito em torno das reparações de guerra que os alemães parecem não ter pago aos gregos. Contrariamente ao que se pode pensar, o essencial da reivindicação grega não reside no dinheiro, mas na recordação da culpabilidade dos agora virtuosos alemães. A chegada ao poder, na Alemanha, das gerações nascidas depois da guerra está a ter um efeito de amnésia histórica, e os gregos, desesperados pelas imposições do calendário eleitoral e pelo oportunismo económico alemães (financiamento com taxas de juro negativas à custa do desespero do sul da Europa), foram obrigados pela opinião pública a trazer a história para dentro do debate das políticas europeias. 

A substituição da história e, em certa medida, da filosofia política pela economia, uma economia que também ela evacuou a história, tornou a governação num exercício sem memória e sem capacidade para reflectir sobre as consequências das decisões tomadas. Não é que a história e a filosofia política tornem os políticos de direita em políticos de esquerda ou vice-versa. O que acontece é que um profundo conhecimento da história e uma atenção à filosofia política introduz elementos de moderação e de ponderação das consequências das políticas adoptadas. Ao substituir todo esse velho programa formador das elites governativas pela atenção exacerbada à economia política, substituiu-se a experiência de séculos pelo experimentalismo ideológico travestido de ciência económica. As consequências disto estão à vista por toda a Europa, onde milhões desesperam, a economia se retrai, a legitimidade democrática é abalada todos os dias e a malfada história, com o seu cortejo de culpas e horrores, que se expulsou pela porta principal retorna pela porta de serviço, depois de viajar incógnita no monta-cargas. A história é uma deusa terrível e vindicativa.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Poema 59 - Velho arqueiro perdido na corrida

Anónimo pré-histórico - Arqueiro correndo (Abrigo del Garroso. Alacón)

59. Velho arqueiro perdido na corrida

Velho arqueiro perdido na corrida,
a presa resguardou-se na floresta
e olha-te escondida entre a giesta,
espera a morte pálida e ferida.

Cruel arqueiro que sabes tu da dor
que tão certeira seta derramou?
Sussurra-me a canção que ela entoou
ao entregar a vida sem fulgor.

Do que foste não resta já memória,
apenas velhos traços na parede,
uma súbita sombra que rasteja.

E apenas nisso está toda a tua glória,
frémito que da vida mostra a sede,
destino que assim faz que em ti me veja.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Cavaco e os tempos de cólera

Bartholomeus Spranger - Alegoría de la Justicia

As pessoas protestam sempre muito pelos longos silêncios do Presidente da República. Lastimam a sua tendência para a mudez e para a gestão discreta dos assuntos. Fazem, porém, muito mal. Quando Cavaco fala, logo se reconhece que seria melhor que estivesse calado. Vejamos o seguinte dito pronunciado perante os juízes colombianos e inspirado na leitura de Maria Cavaco Silva do livro de García Marquez Amor em tempos de cólera: “Em última instância, a ela (justiça) compete evitar que os ‘tempos de crise’ se convertam em ‘tempos de cólera’. Os tribunais são, pois, um pilar fundamental de qualquer processo de pacificação”.

Isto parece uma banalidade, mas não o é. Estamos perante uma afirmação que retrata toda uma actuação e um pensamento. Por certo que Cavaco Silva não poderia deixar de ter a situação portuguesa como pano de fundo a inspirar as suas palavras. Ora a responsabilidade primeira e última de, em tempos de crise, evitar tempos de cólera não é da justiça mas da acção política. Uma política sábia, equilibrada e que vise o bem comum encontrará, mesmo nos tempos de crise, o caminho para evitar que a cólera chegue. Quando a cólera chega aos tribunais, então já estamos no domínio da repressão da violência. Esta afirmação é todo um programa de impotência política e de desresponsabilização dos governantes. Para que serve um Presidente da República que diz coisas destas? Mais valia que estivesse calado como a Rainha de Inglaterra

terça-feira, 16 de abril de 2013

O difícil caso da Venezuela

Diego Rivera - La constante renovación de la lucha revolucionaria (1926-27)

A situação na Venezuela está a tornar-se perigosa. O chavismo sem Chávez tem pela frente dias muito difíceis, com um país completamente polarizado e retóricas incendiárias de parte a parte. Há no chavismo qualquer coisa de profundamente anacrónico. Toda a retórica revolucionária parece deslocada, quando o necessário seria políticas de consolidação da iniciativa das pessoas, de fortalecimento dos mais frágeis. O Brasil, por exemplo, soube muito bem evitar o escolho da inflamação revolucionária, construindo de facto um conjunto de políticas que trouxeram para as classes médias largas camadas da população mais pobre. A vitória tangencial de Maduro parece o prenúncio do fim dos sonhos revolucionários do chavismo. Por outro lado, o Presidente agora eleito não parece ter qualquer preparação nem para o cargo nem para enfrentar a complexa situação em que o país se encontra. Na verdade, Lula da Silva, o lectricista que chegou a Presidente, é excepção e não a regra. Veremos se a Venezuela, apesar de todo o charivari bolivarino, não vai ser o lugar onde uma nova onda de liberalismo puro e duro vai emergir para tornar a sufocar a América Latina.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Leituras poéticas - José Bento, Sítios, "Jardins I"

Vincente Van Gogh - The Poet's Garden (1888)

Jardim erguido inteiro ao ser minado
pela agonia do único antes vivo,
que abandonos e despedidas assolaram:
nele corolas assumem rostos idos,
contra um vento que veste olor de adágio
e entoa variações de cores perdidas,
entre sombras que exalam claridade
e restituem ferido o pleno outrora.

Fecham-se os olhos
para lhe serem refúgio derradeiro,
em seu vazio lhe conceder morada.

                                                (José Bento, Sítios, "Jardins I")
 
A palavra inicial do poema remete, de imediato, para uma dos topos fundamentais da cultura ocidental, o éden ou o jardim do paraíso, o qual fomos obrigados, segundo o mito de Adão e Eva, a abandonar. É de abandono e despedidas que fala o poema e fá-lo através da metáfora do jardim. Se nela ecoa o símbolo fundador da nossa cultura, também ressoa a referência à vida vivida. É a vida que se apreende no discurso poético, vida na sua multiplicidade, mas também na sua finitude.A multiplicidade e riqueza da vida são captadas num jogo onde sentidos e sentimentos se cruzam. A visão de "corolas" que "assumem rostos idos", a audição que capta "adágio" e "variações" entoadas, os quais - adágio e variações - se abrem para outras experiências sensoriais que mobilizam o odor (olor de adágio) e a visão (variações de cores perdidas). É deste jogo sinestésico que apreendemos a rica multiplicidade da existência.

Na economia do poema, os jogos sensoriais que nos abrem para a vida estão intercalados por um jogo afectivo onde se combina a dor e o abandono. A agonia do que é vivo mina a vida inteira (Jardim erguido inteiro), uma vida assolada por despedidas e abandonos. É o tema da derrelicção que se torna central na agonia da vida. Não é tanto o processo biológico que nos expulsa do Jardim (do éden), mas o abandono a que estamos sujeitos, por aqueles que se despedem, por aqueles que nos abandonam. Surge uma segunda função dos jogos sinestésicos referidos. Não nos dão apenas a multiplicidade e riqueza da existência, mas abrem-nos a dimensão da memória, pois "restituem ferido o pleno outrora". Todo o mistério que o poema desenha está nesta estranha restituição de uma plenitude que não é plenitude, pois está ferida. Ferida pelo abandono, pelas despedidas, pela expulsão do paraíso.

Se o jardim é a metáfora da vida, os olhos surgem como a metáfora da memória. O vazio gerado pelo fechamento dos olhos torna-se a casa onde a vida já vivida encontra refúgio. Essa vida plena que agonizou e ficou ferida é agora memorável. A sua condição ontológica transformou-se: de existência plena tornou-se em nada, mas um nada que ainda posso ver, pois habita a moradia da memória, tornando-se reminiscência. Aqui encontramos uma segunda referência fundamental à nossa cultura, a reminiscência platónica, a qual despertava o homem para verdadeira vida, aquela que tinha tido no mundo das ideias, o mundo mais real do que este onde existimos. Esse vazio criado pelo fechar dos olhos, através deste jogo referencial à reminiscência, ilumina-se como esse nada que é, recuperando a plenitude ontológica daquilo que ficou ferido e agonizou. O outrora é agora eterno.

domingo, 14 de abril de 2013

O fim das ilusões

Edvard Munch - Workers Returning Home (1913-15)

Ocorreu no nosso país, em especial durante o período de maior desafogo económico - entre as décadas de 1980 e 1990 -, uma espécie de movimento subterrâneo, enraizado na esfera socioeconómica mas revestido de uma subjectividade e de um efeito de status, uma aura de sedução, que induziu amplos sectores sociais oriundos dos estratos baixos do funcionalismo ou do operariado manual a projectarem-se num horizonte ilusório de possibilidades de ascensão, ao ponto de acreditarem que, com a inserção num estilo de vida urbano, o acesso a um trabalho «limpo», a um emprego estável e seguro e a uma (imaginada) possibilidade de carreira profissional, já estavam instalados no campo da classe média. (Elísio Estanque, A Classe Média: Ascensão e Declínio, p. 101/2)

Perguntamo-nos muitas vezes a origem dos sarilhos em que estamos metidos. É uma pergunta inevitável perante o desmoronar de um modo de vida recente mas que se pensava eterno. Ora a questão central está respondida na longa citação feita do livro do sociólogo de Coimbra, Elísio Estanque: a emergência, nos sectores sociais oriundos dos estratos baixos, de uma subjectividade ilusória, marcada como diz o autor, por um efeito de status e uma aura de sedução. O efeito dessa nova subjectivização foi, na época, muito bem captado, embora de forma apolegética, por Pacheco Pereira ao explicar as razões porque parte importante do eleitorado do PCP, na margem esquerda, transferira o seu voto para o prof. Cavaco Silva. No fundo, era a busca do status e o efeito da aura de sedução.

Na segunda parte dos anos 80 e nos anos 90, nos consulados de Cavaco Silva e de António Gueterres, com maior incidência no primeiro, foi criada nas pessoas, por motivação eleitoral, uma ilusão sobre a sua real situação. Essa ilusão, é preciso não esquecer, foi alimentada com os dinheiros vindos de Bruxelas. O dinheiro parecia fácil e quem torcia o nariz ou chamava a atenção para o logro que se estava a construir era apelidado de Velho do Restelo e olhado com desprezo. Os sectores produtivos, já de si frágeis, foram desmantelados, criando-se enormes bolhas de comércio e serviços, as quais, pela sua natureza urbana (trabalho "limpo", como salienta Elísio Estanque), davam um toque de glamour paroquial e bacoco à pobreza que, na verdade, se ocultava no baço brilho de uma vida social vazia e deprimente.

Isto não significa que a narrativa, para usar uma velha expressão que o público descobriu agora na boca do engenheiro Sócrates, do actual governo e da sua corte sobre o termos vivido acima das nossas possibilidades seja exacta. As elites políticas, nomeadamente o cavaquismo, e a sua influência até no PS, bem como a banca, fundamentalmente no início deste século, geraram um clima que ocultava à generalidade das pessoas a real situação do país, a sua fragilidade económica e os riscos enormes que as pessoas corriam. Os anos oitenta, noventa e a década passada até à crise de 2008 foram tempos de liquefacção da economia e da vida social. O desaparecimento do trabalho "sujo" (trabalho produtivo) trazia consigo, sem que as pessoas o suspeitassem, o fim das antigas relações laborais e, apesar da conflitualidade existente, do compromisso interclassista que dominava uma sociedade semi-rural e semi-fordista.

José Gil diagnosticou, em livro célebre e celebrado (Portugal, Hoje - O Medo de Existir), o problema português como o da não inscrição, o da incapacidade de inscrever na realidade os nossos desígnios. A questão, contudo, é mais complexa. O problema começa numa relação ilusória com a realidade, ilusão essa que é transversal à sociedade portuguesa. E é essa ilusão que não tem permitido aos portugueses compreender o mundo onde estamos inseridos e escolher caminhos sólidos para a sua sociedade. É preciso encarar a realidade de frente e encontrar uma relação sólida com o mundo e a vida. Esta nova solidez não significa, contudo, um retorno aos tempos da sociedade fordista. 

Significa antes, a necessidade de fazer frente às grandes clivagens sociais que se desenham já de forma bastante nítida, relembrando a rígida estruturação social ainda existente no Estado Novo, e encontrar um consenso social e político sobre o nosso futuro, onde tudo deve estar em discussão, nomeadamente a presença no Euro, mas também os problemas demográficos, as baixas qualificações dos portugueses, a fragilidade das nossas empresas e a própria atitude perante a realidade. Estamos a viver intensamente a dor como se não houvesse futuro, mas o rasgar do futuro tem de ser feito agora e nas circunstâncias efectivas em que vivemos. O pior que nos pode acontecer, porém, é continuarmos a linha actual de rompimento do que ainda resta do equilíbrio social e criarmos duas sociedades numa só. Somos demasiado poucos e demasiado velhos para podermos dar-nos ao luxo de vivermos numa espécie de guerra civil, ainda que virtual e sem sangue nas ruas. Agora que já perdemos as ilusões, nada pode ou deve ser tabu.

sábado, 13 de abril de 2013

Poema 58 - Chega o entardecer envolto nas sombras


Adolphe-William Bouguereau - Entardecer
 
58. Chega o entardecer envolto nas sombras

Chega o entardecer envolto nas sombras,
e o que resta de luz escorre-te entre os dedos,
promessa silenciosa de um novo ardor,
armadilha que a noite estende ao viajante.

Ao declinar do sol, as tuas palavras fecham-se,
silenciosos sedimentos e terra de aluvião,
pequenas preces que te dançam nos lábios
e escorrem lentamente no murmúrio da alma.

Eis o teu corpo que se veste de crepúsculos
e deixa na minha boca o rasto de um animal,
a razão trémula e presa na névoa,
a tarde que te envolve e descai pelos ombros.

O mar adormece entre ondas e gaivotas
e no sussuro escarpado das rochas 
sonho o leito onde a tua solidão repousa,
presa na vibração das asas com que te desejo.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

O amante da pobreza

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

O Papa Francisco ama os pobres mas parece não gostar da pobreza, acha que os poderes do mundo deveriam eliminá-la. Francisco, porém, é um jesuíta, e há que desconfiar dos jesuítas. Intelectuais, muitas leituras, cursos superiores em demasia. Saber filosofia e teologia dá a volta ao miolo das pessoas. Em Portugal, nós temos um homem muito mais radical do que Francisco. Claro que esse homem é pouco mais que inculto, apesar de ter um curso superior.  Ele não só ama os pobres como adora a pobreza. Gosta tanto dos pobres que não quer que eles diminuam. Pelo contrário, faz tudo o que está ao seu alcance para aumentar o número dos que têm oportunidade para ser pobres.

Desde que chegou à governação, Passos Coelho tem-se batido com denodo e valentia para que a pobreza alastre no país. Desse ponto de vista, é um excelente governante, ainda melhor que o anterior, o retornado Sócrates. Sócrates fazia crescer os pobres mas tinha má consciência. Passos Coelho, não. Adora o que faz. Imagine o leitor que Passos Coelho tinha feito um orçamento do Estado inconstitucional. Toda a gente gritava que era inconstitucional, mas Passos Coelho fingia que não ouvia e persistia no caminho. Um homem teimoso e com pouca cultura jurídica, dirá o leitor. Talvez, mas fundamentalmente Passos Coelho apresentou aquele orçamento para que fosse chumbado. Não foi por maldade, mas por amor aos pobres e à miséria.

Estou a exagerar? O normal seria, perante o chumbo das normas inconstitucionais, que um primeiro-ministro que não gostasse de pobreza dissesse que iria pensar como resolver o problema encontrando respostas equilibradas que distribuíssem o mal – mal que ele causara com um orçamento deficiente – por todas as freguesias, pagando as mais ricas um pouco mais que as outras. Contudo, Passos Coelho ama os pobres e a pobreza e viu no chumbo do orçamento uma janela de oportunidade, que ele próprio criara com a sábia inclusão de normas inconstitucionais. Veio no domingo à televisão e disse que já ordenara cortes na saúde, educação, segurança social e empresas públicas. Estas medidas significam o quê? Um acto de amor aos pobres. Com elas, Passos Coelho vai concretizar o seu sonho de amante da pobreza. Torna os actuais pobres ainda mais desvalidos e cria mais umas centenas de milhares de novos pobres. O chumbo do Constitucional veio mesmo a calhar. Passos Coelho já acendeu uma vela de agradecimento na capela do palácio Ratton. Não vai faltar em Portugal pobres e miséria para que Passos Coelho possa derramar o seu virtuoso amor à pobreza. Pobreza dos outros, claro.