segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A minha queda de Contantinopla

The Siege of Constantinople (1499)

Ontem, a Ivone, parafraseando Álvaro Mutis, escrevia que o último acontecimento político a comovê-la tinha sido a queda de Constantinopla, em 1453. Não é que a queda de Constantinopla não me comova ainda hoje. Comove e acho que foi uma safadeza do destino o bizantino fim do Império Romano do Oriente. O texto da Ivone, porém, está a ser citado não por causa do destino do cristianismo ortodoxo, mas porque me confrontou, sem que ela o suspeitasse, com o interesse que eu dedico aos acontecimentos políticos, os quais, na verdade, não me comovem nem me movem. Mas interessam-me. É este interesse que é para mim motivo de espanto. Umas páginas de Maquiavel e a essência da coisa fica detalhadamente explicada. Páginas essas que os políticos até hoje se encarregaram de nunca desmentir. Não há novidade política que mova a curiosidade nem acontecimento que introduza uma revolução na teoria. Tudo é muito repetitivo e, na verdade, cansativo.

O que me interessa na política é aquilo que me aborrece nela. Não consigo imaginar-me exultante pelo partido do senhor Seguro ter ganho 150 câmaras, ou pelo desconforto do senhor Passos Coelho ao ver a deserção dos votantes, ou pela reconquista das câmaras de Évora e de Beja pela CDU, ou pela miserável votação nacional do BE ou do CDS. Daqui a quatro anos tudo será ao contrário, mais coisa menos coisa. A questão é mesmo outra. Eu estou descansado em casa. Oiço música, leio uns livros, escrevo no blogue. Vou à escola, dou aulas, tento fingir que a moral kantiana é a coisa que mais interessa a crianças de 15 anos e que a vexata quaestio do conhecimento começar pelos sentidos ou pela razão deixa - imagine-se - os adolescentes de 16 anos completamente siderados. Depois,  reúno-me com os meus colegas para, debalde, salvar a educação, e volto a casa. Enfim, trato da vidinha como qualquer outra pessoa. O que me aborrece na política é que ela vem ter comigo e tira-me do sossego privado, faz-me patifarias, abate-se sobre mim como um acidente de automóvel ou um desastre natural. Interfere na minha vidinha, sem me pedir autorização, e mostra-me aquilo que eu sou. E aquilo que eu sou, segundo a política que cai sobre mim, é nada. Talvez o que me interessa na política seja a minha própria impotência perante os acontecimentos que ela move, e a forma como ela me remove de onde estou. Há quem pense que dela, da política, pode vir a salvação. Não pode. Ou, pelo menos, eu não acredito. O meu interesse pela política é a de um olhar fascinado pela própria perdição. Na verdade, é como se eu visse retratada na minha queda a queda de Constantinopla.

domingo, 29 de setembro de 2013

Boicotes eleitorais

Jules Adler - The Weary (1897)

Estes boicotes às eleições (ver aqui, aqui e aqui), como outros que têm acontecido desde que transitámos para um regime democrático, são sempre muito instrutivos e reveladores políticos importantes. A importância não deriva do conteúdo dos protestos e muito menos do número de ocorrências, por norma irrelevantes. A importância deles reside naquilo que manifestam sobre a nossa cultura política. Os boicotes exprimem - a nível minoritário - aquilo que me parece ser uma atitude generalizada da população portuguesa. Quando uma população boicota uma eleição pensa que está a castigar os políticos. Não pensa que está a abdicar de um poder. E não compreende que está a abdicar de um poder porque não se pensa como soberana, a quem os políticos eleitos devem obediência e serviço, segundo a lei. A mansuetude com que as pessoas têm suportado os desvarios do poder e estas episódicas explosões de raiva, apesar das aparências, têm a mesma significação: a soberania não reside no povo mas nas elites políticas, a quem as pessoas devem cega obediência. Não admira que quase tudo seja permitido a quem for eleito.

sábado, 28 de setembro de 2013

Fim da anestesia

Gerardo Rueda - Espera III (1975)

Dias como o de hoje dão-me sono. Esta espera, alimentada ainda por um calor vagamente outonal, inclina-me a vontade para o chão e a boca para o bocejo. Chegamos a um tempo em que desapareceu qualquer ligação entre a espera e a esperança. Não se imagine que a espera de que falo seja a espera pelos resultados eleitorais de amanhã. Não é. Para as eleições de amanhã estou no meu dia de reflexão. 

[Interlúdio] Tenho meditado muito sobre as eleições. Descobri que a lei está mal feita. Está invertida a relação entre o período de campanha e dia de reflexão. Dava-se um dia para os candidatos exporem os seus pontos de vista, fazerem arruadas, comícios, cortejos, colarem cartazes, distribuírem panfletos, programas, isqueiros e caixas de fósforos. Seriam permitidas até procissões, mesmo, ou fundamentalmente, as de carácter dionisíaco. À meia-noite do dia único - por ser o único dia - terminava a campanha eleitoral. A massa dos eleitores entrava então em, por exemplo, dez dias de meditação transcendental, reflexão metafísica e análise crítica das propostas. Ao fim de dez dias, votava-se. [Fim do interlúdio]

Mas, como dizia, a espera que desespera não é a que visa o dia de amanhã. É, como muito bem salientou José Pacheco Pereira, no Público de hoje, a espera por depois de amanhã, depois dos votos contados, dos eleitos sentados nos lugares, e dos cartazes descolados. As aleivosias que se preparam, sorrateiramente, entre palavras mansas e gestos dúbios. A anestesia a que fomos sujeitos nos últimos tempos perde o efeito depois de domingo à noite. Esta é a espera pelo que está para vir, é a espera sem esperança. Os sacerdotes de depois da amanhã são maus e os profetas não auguram nada de bom. E o que está para vir, quando a anestesia passar, é bem pior do que aquilo que já veio.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Os poderes locais


Domingo vamos escolher quem governará o poder local, aquele que, pela sua natureza, está mais perto dos cidadãos. Há, na tradição intelectual do século XIX português e com ramificações que chegam até hoje, uma enorme simpatia pelo municipalismo e pelo que representa de liberdade e de afrontamento dos poderes centrais. Devemos perguntar, considerando a experiência que decorre desde 1976, se esta proximidade do poder aos cidadãos reforça a visão virtuosa do municipalismo ou se essa proximidade significa menos liberdade individual, menos sociedade civil, menos espírito crítico.

Podemos detectar duas grandes tendências cujas fronteiras são difusas. Genericamente, os primeiros mandatos dos municípios representavam um claro espaço de liberdade e de cooperação entre os detentores do poder e as populações. Independentemente dos partidos vencedores, havia uma genuína entrega ao serviço público para fazer frente ao enorme atraso material em que se vivia. Havia conflito político – próprio da democracia – mas também cooperação. O essencial nesses tempos, porém, é que o poder autárquico ainda não se tinha compreendido enquanto poder e dominação. Ainda, embriagados pela descoberta da liberdade, os poderes autárquicos eram sentidos e vividos apenas como serviço.

A partir de determinada altura, os poderes autárquicos começam a tomar consciência do enorme poder que têm entre mãos e, sem se fazer rogados, abandonam a visão amadora e prestadora de serviços aos cidadãos e populações, para se entenderem como fonte de poder e de controlo da vida municipal. A liberdade formal, que não depende dos poderes locais, manteve-se. Agora, porém, os poderes instalados perdem a ingenuidade inicial e tomam consciência de que o essencial da política é a conquista e a manutenção do poder. E a partir daí não olham a meios. O fundamental em qualquer município é a sujeição da sociedade ao poder municipal, porque isso evitará surpresas desagradáveis na contagem dos votos.

O poder local, que foi sentido como libertador num primeiro momento, tornou-se uma fonte de sujeição e de empobrecimento da sociedade civil, da cidadania, do espírito de iniciativa, da capacidade crítica. Contribui, com uma quota pesada, para o estado de desânimo que atinge o país. Vamos votar no domingo, mas o que o país precisa, para além dos votos, é de reflectir sobre o municipalismo e encontrar formas de limitar os poderes locais para libertar as respectivas sociedades civis, tornando-as autónomas e críticas.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Meditações dialécticas (19) A maior das tentações

Gerard Ter Borch - Officer Writing a Letter (segunda metade do séc. XVII)

Na sua própria essência, a escrita é normativa. É «prescritiva», para recorrermos a uma palavra que, pela riqueza, das suas conotações e do seu desvelamento, solicita uma atenção estreita. «Prescrever» é ordenar, antecipar e circunscrever (outra palavra eloquente) um domínio de comportamento, de interpretação, de consenso intelectual ou social. «Inscrição», «script», «escriba», bem como o feixe semântico de alta energia a que se associam, vinculam intimamente, inevitavelmente, o acto de escrever a formas de exercício de governo. (George Steiner, Os Logocratas, p. 71)

Será a escrita, de uma forma irremediável, o lugar onde o que escreve pretende governar os outros (prescrever-lhes normas) e limitá-los na sua liberdade (circunscrevê-los), como pretende George Steiner? Se isso for assim, se a escrita for um lugar de poder e de dominação, ou, pelo menos, um lugar de desejo desse poder, isso fica a dever-se à própria história da emergência da escrita, ao facto dela ter nascido para fins políticos e de ordenação do poder, de ter nascido como instrumento de poder, ou a alguma característica intrínseca da própria escrita?

Logicamente, nada impede que aquilo que nasceu como instrumento de poder se separe desse poder, liberalizando-se, digamos assim, nos usos não políticos da escrita, abandonando a tentação de prescrever e de normalizar. Mas se olharmos para a escrita nela mesmo, descobrimos que ela contém em si uma disposição normativa e prescritiva. A ortografia, a norma gramatical, a correcção semântico-lexical, para não falar dos preceitos do estilo, fazem da escrita um lugar de ordenação, prescrição e normalização. Mas, perguntar-se-á, isso não se passa também com a linguagem oral. Apenas em parte. Devido à evanescência da linguagem oral (o acto de fala é momentâneo, desaparece ao ser realizado) e o recurso ao esclarecimento mútuo dos falantes sobre aquilo que dizem, a oralidade é mais permissiva do que a escrita. A escrita ao fixar as mensagens, ao desligar-se dos actos de fala, ganha, como salientou Ricoeur, uma autonomia própria, a qual exige uma verdadeira ortodoxia (da grafia, da gramática, do uso do léxico e da significação). Foi esta natureza da escrita que a tornou apta a ser instrumentalizada pelo poder. Mas se historicamente a escrita com a sua ortodoxia é posterior ao poder, ela é ontologicamente anterior.

Este, porém, está longe de ser o problema mais interessante. A questão mais pertinente é a seguinte: apesar da escrita, pela sua natureza intrínseca, ter uma vocação normativa e prescritiva, a qual permitiu que ela fosse usada como instrumento de poder e de imposição de normas, regras, leis, etc., não traz nela um potencial insurreccional? Não tem em si uma inclinação para a desnormalização? É na linguagem poética que se manifesta esse potencial e essa inclinação. Na poesia, a correcção léxico-semântica é abalada pela metaforização, a norma gramatical é, muitas vezes, suspensa e a própria ortografia pode (por exemplo, por necessidades métricas) ser posta em causa. Desse modo, a poesia (e talvez em menor grau a ficção) representa um ataque ao coração normativo da própria escrita. Isto significará, então, que George Steiner não tem razão? Que existe pelo menos um domínio da escrita em que esta se subtrai ao exercício do poder e da dominação dos outros?

Sou bastante pessimista sobre essa possibilidade. Mesmo que o poeta seja um franco-atirador, mesmo que pretenda ser apenas, com o seu uso anormal da linguagem escrita, um destruidor de normas, que seja só um revolucionário ocasional, isso não me tranquiliza quanto ao potencial ordenador, normativos e prescritivo da escrita. Não há destruição de normas gramaticais, lexicais, ortográficas e semânticas que não dê lugar a uma nova ordem, com novas regras, normas e prescrições. A poesia pode ser uma revolução na linguagem, mas como todas as revoluções ela apenas substitui uma ordem pela outra, um poder normativo por outro. Por isso, devemos sempre interrogar as nossas pulsões para a escrita. Não haverá em todo aquele que escreve - mesmo que seja por diversão ou com a intenção de fazer obra poética - uma vontade de poder, um desejo de impor normas e de prescrever comportamentos? Não será a escrita a maior das tentações?

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A transfiguração da pátria (9) O profeta outonal

Pierre Bonnard - L'Automne. Les Vendanges (1912)

Um profeta enlouquecido colhe o Outono
e deixa-o arder no lume do esquecimento.
Escorrem da lareira resinas, óleos raros,
o vinho irisado que trazias na mão,
um copo sequioso, quase vazio...
E tudo declina tocado pelo uivo das horas.

Configuro as fronteiras da pátria,
a urze cinzelada pelos ventos silenciosos,
um rasto de espuma e saliva, o canto da boca.
Roubo-te os séculos e a lepra dos homens.
Risco-te o fio das traições e o sono da morte.
Rasgo-te a carne e a alma perdida.

Ó sublime demência que desce em mim.
As ruas vazias, olhos estropiados,
o odor da naftalina na casa ao lado.
O Outono é uma rua de cinza e pedra azul,
a praça desfolhada pelo cansaço do Verão,
a irrevogável fronteira que em ti se fecha.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Falhar uma grande carreira

Ernst Barlach - Prophet Writing (1919)

Por motivos que não vêm para o caso, fui aconselhado, e muito vivamente, a estudar economia. Eram bons aqueles tempos para quem se decidisse por tal caminho. Mas com o pouco sentido das coisas que me caracteriza, dispensei o conselho e, dando vazão aos meus instintos mais primitivos e contraditórios, decidi estudar filosofia, porque - veja-se a incoerência - me interessava a literatura (meu Deus, o que se pode esperar de alguém que se interessa por literatura e filosofia?). Quando vejo, porém, coisas como estas (o economistas-chefe da OCDE dizer que não é tempo de complacências) quase me arrependo por não seguido o vivo - e aliás desinteressado - conselho. Porque ser economista é muito mais do que ser economista. 

O economista é uma entidade metafísica (um espírito? um espectro? um fantasma?) que exerce, sem precisar de consentimento superior, a actividade profética. Profetiza números e taxas, caminhos a seguir e a evitar. Ora, se tivesse estudado economia, faria parte do coro dos profetas e arengaria por jornais e televisões. Nas minhas palavras haveria conselhos e ameaças, muita moral para que o futuro nos chegasse sorridente e para evitar castigos maiores pelas imoralidades presentes. E se as minhas profecias falhassem, como têm tendência a falhar as dos economistas? Não seria isso um verdadeiro descalabro para a hipotética reputação? Por Toutatis, não sou assim tão ingénuo. Como qualquer economista, falaria em linguagem cifrada e nunca esqueceria de referir o carácter conjectural da realidade. Pois quando as profecias de um economista falham, não é o profeta que se engana, mas a realidade que está errada. Acho que falhei uma grande carreira.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Leituras poéticas - António Ramos Rosa - "Para que uma só coisa"

Francisco Soto Mesa - "6.98.1" (1998)

Para que uma só coisa 
vibre
na sua presença nua
para além da conjunção dos possíveis

é preciso que o silêncio a dispa
e o seu nome seja o seu próprio pudor

                                                                   (António Ramos Rosa, A Intacta Ferida, 1991)

Perante um poema como este, a maior tentação do leitor é abandonar o sentido e deixar-se levar - vibrando - pelo som. Se a poesia é ritmo e harmonia, se ela é som, não é menos verdade que, através dela, a língua se reinventa e se descativa do uso quotidiano, que lhe rouba a sua originária natureza vibrátil, a qual remeteria para uma experiência de significação essencial da realidade das coisas, como se ela fosse a própria linguagem do mundo. Ao reinventar-se através da poesia, a linguagem retoma essa sua capacidade de significação originária, como se o mundo falasse através do poema. Por tudo isto, não devemos cair na tentação de abandonar sentido e mergulhar, autistas, na vibração rítmica do som do poema. Som e sentido são as duas faces que vibram na palavra poética.

Que coisa é essa que deve vibrar? Antes de entrarmos na coisa mesma, não será despiciendo demorarmos algum tempo perto do segundo verso constituído por uma única palavra: vibre. O que entender por vibrar? O seu amplo campo semântico vai daquilo que é mais exterior (um objecto que produz um conjunto de movimentos rápidos e repetitivos, vibrações) até ao que é mais íntimo e toca no que há de mais fundo no ser humano (o entusiasmo que nos faz vibrar, a felicidade que faz vibrar todo o ser), passando por aqui que estabelece comunicação entre seres (o fazer soar, o fazer ouvir, etc.). Nada no poema nos diz explicitamente a que ordem de vibração o uso do verbo vibrar se refere. O poema apenas nos fala do modo de vibrar e nas condições necessárias para que essa vibração, segundo o modo definido, se dê.

O modo de vibrar é dado pela singularidade, pela natureza única, daquilo que vibra: Para que uma só coisa / vibre. A singularidade da coisa que vibra não é o seu único modo de ser. Ela vibrará na sua presença nua. Essa coisa não é uma representação de qualquer outra coisa, mas uma verdadeira presença, algo que está aí e tem realidade (diria mesmo, tem um excesso de realidade). Uma presença nua. Na nudez dessa presença está o facto dela ser pura, não contaminada, de ser a presença mesma, em si e para si, aquilo que se dá ao leitor. Como é que eu, leitor deste enigmático poema, sei que essa coisa, essa pura presença, é uma realidade e não uma representação? O quarto verso esclarece: para além da conjunção dos possíveis. Para além do possível, daquilo que é meramente possível ou da conjunção de todos os possíveis, está aquilo que é, está o que possui realidade e não é uma mera possibilidade. Aquela singularidade que vibra é uma presença efectiva, uma realidade que está para além até da conjunção de todas as possibilidades.

Para que este modo de vibrar da coisa singular se dê, é necessário o quê? A última estrofe, constituída por um dístico, torna claro essas condições. Para que essa coisa singular e verdadeiramente real vibre, é preciso que o silêncio a dispa. O silêncio é o momento ascético que reduz essa enigmática coisa à sua nudez, à sua pureza. O silêncio é o caminho que leva à vibração da coisa. Mas não basta a ascese do silêncio. É necessário mais alguma coisa que o último verso enuncia assim: e o seu nome seja o seu próprio pudor. O pudor não significa que essa coisa que se despiu seja agora recoberta com novas vestes. Quem não sabe como o estar vestido pode ser infinitamente mais impudico que a pura nudez? O nome da coisa não é algo que a revista mas a sua própria natureza, dada na sua reserva e na sua modéstia. Para que essa coisa singular e real vibre - e faça vibrar - é necessário a ascese do silêncio e o recato do nome. Estamos quase na casa da religião, nesse lugar de modéstia e de esforço de purificação. Estamos quase, mas não é propriamente isso que está em causa, pelo menos à primeira vista.

Essa coisa singular e real que nos faz vibrar não é outra coisa senão a poesia, a palavra poética. Na palavra poética nós encontramos a tripla vibração: a vibração do mundo, a vibração do homem e a vibração que toda a comunicação entre homem e mundo exige. A poesia não representa nada. Ela não é um delegado ou um deputado que represente alguém ou alguma coisa. Ela é a pura presença do homem no mundo e do mundo no homem, ela é a comunicação misteriosa entre ambos. Nela, o sentido originário que a fala humana quotidiana escondeu torna-se vivo e presente. É disto, da poesia e da sua natureza, que nos fala este poema e nos falou até hoje, dia da sua morte, o poeta António Ramos Rosa.

domingo, 22 de setembro de 2013

Deutschland über alles

Joerg Immendorff - Cafe Deutschland I (1977-78)

Hoje as elites políticas da Europa do Sul vão estar de joelhos perante os resultados das eleições alemãs. É o sintoma da dependência em relação à economia mais forte da União Europeia. É ainda símbolo de uma outra coisa: o da irresponsabilidade dessas elites perante os seus povos e a condução dos respectivos Estados. Durante muitos anos deixaram acumular os sinais de perigo sem que lhes tivessem prestado qualquer atenção. A megalomonia e a corrupção foram crescendo a par até que se chegou ao sarilho onde estamos. Agora acendem velas a santos pouco dados a milagres.

sábado, 21 de setembro de 2013

O vício da improvisação

Wassily Kandinsky - Improvisação (1909)

Espanta-me sempre o louvor que se faz à capacidade de improvisação dos portugueses. Não é que a capacidade de improvisar não seja virtuosa. No entanto, o improviso só tem sentido quando está fundado numa sólida disciplina e num cuidado planeamento. Neste caso, improvisar é a capacidade de adaptar criativamente os nossos planos às exigências da realidade. A improvisação portuguesa - que toma o curioso e popular nome de desenrascanço - é o contrário de tudo isto. É um sinal de incompetência, falta de trabalho intelectual sobre os problemas e de planeamento. É mais do que isso. É uma manobra de ocultação da forma viciosa como dirigimos a vida privada e os negócios públicos. No louvor da nossa improvisação o que é cantado não é a criatividade mas, pura e simplesmente, a incompetência e a falta de vergonha. A improvisação em Portugal é uma maldição que também está na raiz de muito do que nos está a acontecer.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Presenças fantasmáticas


A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Há dias lembrei-me do filme Império da Paixão (1978), do realizador japonês Nagisa Oshima. A película trata do amor de um homem e de uma mulher, mas um amor assediado pela presença do fantasma do velho marido dela, que eles, para consumarem livremente a sua paixão, tinham assassinado. A recordação deste filme foi desencadeada por dois cartazes da campanha eleitoral para a Câmara de Torres Novas. Em cada um dos cartazes vê-se o candidato a Presidente – Pedro Ferreira (PS), num, Henrique Reis (PSD), no outro – ao lado, na verdade ligeiramente à frente, de uma outra personagem, António Rodrigues e Arnaldo Santos, respectivamente.

Dirá o leitor, e não sem razão, que essas personagens são os candidatos dos respectivos partidos à Assembleia Municipal, e por isso se justifica a sua presença nos cartazes. Dir-me-á também, se conhecer a concelho e tiver uma percepção dos partidos locais, que António Rodrigues e Arnaldo Santos são pessoas com muito peso na sociedade torrejana e, desta maneira, são importantes apoios para os candidatos respectivos. É verdade, mas o problema está todo aí.

Não é que Pedro Ferreira e Henrique Reis, talvez mais o primeiro do que o segundo, não tenham, no concelho, um peso político próprio. Têm, mas… António Rodrigues e Arnaldo Santos foram os últimos presidentes da Câmara e o seu peso político e influência na sociedade local ultrapassa o peso e a influência dos actuais candidatos. Os dois cartazes, aparentemente banais, quando interpretados no contexto do sociedade torrejana ganham conotações absolutamente perversas.

O eleitor atento não vê apenas neles a promoção de uma equipa que se candidata a dois cargos, ou o apoio explícito de alguém que já desempenhou o cargo de Presidente do Município ao seu candidato. De imediato, lhe vem ao pensamento a ideia de tutoria. Pelo seu peso político esmagador, António Rodrigues e Arnaldo Santos surgem como os tutores dos candidatos dos seus partidos. O que fragiliza, ipso facto, as próprias candidaturas de Pedro Ferreira e Henrique Reis.

O perigo maior advém, todavia, do facto de António Rodrigues e Arnaldo Santos se terem tornado fantasmas. No filme de Oshima, o marido assassinado não pode amar a mulher mas aparece aos amantes com dedo acusador, e essa sua presença fantasmática leva-os ao desespero e à perdição. Também António Rodrigues e Arnaldo Santos não poderão exercer o poder municipal, mesmo que o seu partido vença, mas a sua presença fantasmática será mais real do que a presença de qualquer vereador eleito. Terrível é ir viver para uma casa assombrada.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

A transfiguração da pátria (8) O caçador cansado

Oscar Dominguez - El cazador (1933)

O pobre caçador rosna sentado no chão,
enquanto a chuva tirita nas vidraças
e o fogo alumia a lareira de crepúsculos,
promessas vazias vindas de longe,
o desejo despedaçado entreaberto no coração.

Noite, o sopro das tuas mãos sibila em mim.
Em cada passo farejo a presa e oiço,
silencioso e mudo, o troar dos cascos:
Vestida de branco, vem a estrela da morte,
um cortejo de crisântemos e anémonas.

O pássaro de cristal voa sob a água da noite
e o caçador prepara a espingarda.
Cidades suspensas, casas vazias, ruas em sangue.
Deslizo pelo sino da meia-noite
e espero exausto a melancolia da manhã.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Não aprendemos nada

David Lynch - A Bug Dreams of Heaven (1992)

Deixemos, por momentos, a troika de lado. Ela não é causa, mas consequência. Há dias em que apetece desistir completamente. É tão visceral em nós uma cultura de falta de exigência, de facilidade, de ausência de rigor, de reivindicação de patamares cada vez mais baixos, que qualquer esperança de um país decente se torna ridícula. Foi essa falta de exigência connosco que nos tornou complacentes com as elites políticas que fomos escolhendo e que nos conduziram ao sarilho onde estamos. Mas não aprendemos nada. A complacência com o folclore instalado na sociedade e nas instituições cresce. Cada vez mais odiamos o que é difícil, exigente, rigoroso. Não me admira que, chegadas as próximas eleições, as seitas que nos governam sejam reeleitas.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O riso do algoz

(Imagem do Público)

Parece que o FMI anda em cruzada de arrependimento. Chegou à conclusão de que muitas das suas políticas estavam erradas. Parece ser um louvável acto de contrição. Parece, mas não é. Em primeiro lugar porque houve muita gente - entre essa gente contavam-se economistas de primeira linha - que mostraram que as políticas estavam erradas e que teriam efeitos catastróficos. Os economistas do FMI foram avisados, mas, surdos e cegos pela ideologia, fizeram orelhas moucas e vista grossa. Isto, todavia, não é o mais grave. O mais grave está no lado das vítimas das políticas do FMI. Está nas pessoas que morreram, arruinaram a saúde, perderam o emprego, viram as suas empresas ir à falência, tiveram que emigrar, viram os filhos impedidos de estudar, etc., etc. etc., devido às políticas impostas pela organização. Ninguém responde por isso? Numa organização sempre tão disposta para a avaliação e aplicação de penas e castigos, não se aplica a ela e aos seus técnicos aquilo que se impõe aos outros? Este acto de contrição, visto do lado das vítimas, parece ser o eco do riso do algoz. 

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Meditações dialécticas (18) Certidão de óbito

Jaime Burguillos - Ocaso (1976)

Dos tempos em que frequentei assiduamente Hegel ficou-me a convicção de que a filosofia, o pensamento, chega sempre demasiado tarde. A célebre frase a ave de minerva levanta voo ao entardecer é uma imagem sobre o papel da filosofia. Ela confere um sentido ao que já foi. Pensar é uma atitude crepuscular e nesta natureza do pensamento está toda a sua impotência. Ele não anuncia novos mundos nem dá regras de construção aos que crescem. Quando um mundo se pensa e encontra significado é porque está morto. Todo o pensar, assim considerado, é uma certidão de óbito.

domingo, 15 de setembro de 2013

A direita e o cristianismo

Harmennsz van Rijn Rembrandt - El regreso del hijo pródigo (1668-69)

O pai respondeu-lhe: "Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e revivei; estava perdido e foi encontrado. (Lucas 15: 31-32)

A parábola do filho pródigo vem recordar-nos que a actual direita política, com a sua ideologia ultra liberal, cortou qualquer amarra - a não ser para efeitos de guerrilha política e de propaganda - com o cristianismo. Por muito que os seus membros batam com a mão no peito, frequentem a confissão e não faltem à missa, a sua orientação política é radicalmente anti-cristã. É Michel Foucault que sublinha, na compreensão política do Ocidente, a importância do poder pastoral. O soberano é visto como um pastor, e o pastor tem de dar conta de todas as suas ovelhas. Não pode perder nenhuma. É no âmbito desta compreensão do poder, que se deve interpretar aquilo a que chamamos o Estado Social, uma criação em que participou, não por acaso, a antiga Democracia-Cristã. A parábola do filho pródigo é um texto central para a compreensão do poder pastoral. Como o pai da parábola narrada por Lucas, também o soberano quer o todo nacional reunido. Para tal age em conformidade. E a conformidade com esse desígnio é-nos dada pelo Estado Social.

A aposta na destruição desse Estado Social levada a cabo pela direita liberal é a prova clara de que o cristianismo há muito deixou de a interessar. E quando o usa é apenas de uma forma instrumental, para enganar os cidadãos eleitores ainda crentes. O processo de destruição dos sistemas de saúde, educação e protecção social a que estamos a assistir na Europa é o sinal do corte radical que as elites europeias estão a fazer com um dos pilares da cultura e tradição ocidentais, o cristianismo. Hoje não há lugar para os filhos pródigos. Mas os filhos pródigos não são aqueles que dissipam os bens, que vivem acima das suas possibilidades? Sim. Mas para a ideologia triunfante, com excepção dos muito ricos, qualquer um vive, por miserável que seja, acima das suas possibilidades. Qualquer um é um filho pródigo e não há pai algum que o deva receber. Que emigre, que desapareça, que vá morrer longe. Para que é necessário um Estado Social?

sábado, 14 de setembro de 2013

A transfiguração da pátria (7) O nome que te espera



Arde sobre a terra o silêncio da noite,
o véu com que a dor se cobre,
e cresce pelos desvalidos campos:
erva seca, puro abandono, uivo de ferro.

Vai chegar o anunciador de invernos, o cego tirésias,
e não há nas montanhas em redor
profeta que cante a luz
e das lágrimas faça rio, clamor,

o brado de quem se perdeu nas trevas
e sente no ventre revolvido uma ânsia de futuro,
um desejo de vida, o galope do destino
que de longe harpeja e chama por ti.

Estranhos são estes dias cobertos de noite.
Estranhos são estes ritos sem fé nem Deus.
Estranhos são estes homens calados na tarde.
Estranhos são estes anjos perdidos na terra.

Olho a floresta rasgada no horizonte:
cinza, árvores raquíticas, arbustos cansados.
Seco, um rio desenha fronteiras, destinos,
o nome esquecido que te espera na morte.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O cheque-ensino


Como se destrói o ensino público? Facilmente. Basta o cheque-ensino aprovado pelo governo. Aparentemente ele serve para aumentar a liberdade de escolha das famílias, ao permitir que elas optem entre escolas públicas e privadas. Na prática, visa financiar os generosos lucros das empresas privadas de educação e acabar com grande parte das escolas públicas. Mas, se as escolas públicas forem boas, por que razão hão-de as famílias escolher colégios privados?

Quem conhece a educação sabe perfeitamente que a percepção das pessoas é muitas vezes distorcida. Quem não conhece casos de escolas com resultados idênticos ou melhores que outras, com menos problemas disciplinares e menos comportamentos desviantes, e que são percepcionadas de uma forma mais negativa? A formação da imagem das instituições é um processo social complexo e que muitas vezes, por motivos de moda, de propaganda, de campanhas negativas, etc., é completamente distorcido.

Ora nós temos assistido, ao longo da última década, a uma campanha sistemática que tende a mostrar que as escolas privadas são melhores que as públicas, devido aos resultados dos exames. Essas campanhas, muito bem orquestradas, escondem sempre duas coisas essenciais: a origem social e cultural dos alunos e aquilo que se passa, depois, nas universidades. Alguém, há tempos, escrevia que os super-alunos dos super-colégios quando chegam ao ensino superior perdem os super-poderes. Isto porque um estudo da Universidade do Porto mostrou que, apesar de terem notas inferiores nos exames do secundário, os alunos do ensino público vão melhor preparados e obtêm, no ensino superior, melhores resultados. Mas qual é a percepção que as pessoas têm? O privado é melhor.

Imaginemos o concelho de Torres Novas. Se o cheque ensino for para a frente e cobrir para substancial das propinas, facilmente se compreende que investir em educação, pagando miseravelmente a professores, é um excelente negócio. Em breve teremos dois ou três colégios privados que disputarão entre si os alunos existentes, a começar pelos melhores. Por meritório que seja o trabalho das escolas públicas concelhias – e, na verdade, é-o – elas não terão qualquer capacidade para reter os alunos, mesmo que o ensino oferecido pelos novos colégios seja pior e menos capaz de preparar os alunos para o ensino superior. A ilusão do estatuto – que bom, tenho o filho no colégio privado – e o trabalho de propaganda farão o serviço. Em meia dúzia de anos, Nuno Crato conseguirá destruir aquilo que foi o trabalho de muitas e muitas gerações de portugueses de todas as classes sociais.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Risco, qual risco?

Pablo Picasso - Pareja de pobres (1903)

Eis um título enganador: Portugal tem beneficiado "elites económicas" e arrisca-se a ser um dos países mais desiguais. O engano está no termo "arrisca-se". Quando se fala de risco estamos a referir que alguém, tendo intenção de fazer uma coisa, corre o risco de fazer acontecer outra. O que se passa em Portugal não é isso. Os portugueses escolheram um governo cuja política tinha e tem como objectivo central empobrecer a população e aumentar drasticamente as desigualdades. Este empobrecimento não é um dano colateral. A austeridade não pretende diminuir o défice público, conforme pensam algumas almas ingénuas que dão ouvidos ao governo, mas tornar-nos irremediavelmente mais pobres e mais desiguais. O governo está a ter um tremendo sucesso.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O jesuíta franciscano

Lucien Freud - Hotel bedroom (1954)

Estará a Igreja, pelo menos as elites sociais que dela fazem parte, preparada para este Papa? Num mundo como o nosso, onde o dinheiro e o lucro são o objectivo central da vida social e individual, não será uma provocação ao Zeitgeist a proposta de Francisco para transformar os conventos vazios em centros de refugiados e não em hotéis de luxo para ganhar dinheiro? Francisco está a ser fiel à ideia de contradição com que nasceu o cristianismo. Isso, por certo, terá peso no coração do homem comum, mas não haverá já quem, dentro da Igreja, esteja preocupado com esta propensão para os pobres, os fracos e os desvalidos? Na verdade, ser autenticamente cristão, ser fiel ao espírito que nega os poderes mundanos, é o mais terrível insulto que se pode fazer às ideias triunfantes. Até quando estas suportarão este Papa jesuíta de inclinação franciscana?

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Andar no escuro

Paul Klee - La muerte por la idea (1915)

Houve um tempo em que amei as ideias e, acima de todas, a Ideia. Olhava de viés para quem não tinha ideias, e muita gente não as tinha. Que estranho prazer o de conter o pulsar das coisas numa gaveta do entendimento. A vida, porém, é feita de decepções e de cansaços. Cansei-me das ideias e a Ideia decepcionou-me. Não consigo perceber quem se bate por ideias e ainda menos quem mata ou morre pela Ideia. Na verdade, não consigo perceber-me a mim mesmo quando amava as ideias e esperava da Ideia a revelação definitiva.  Era um idealista, agora nem sei o que sou. Um cego, talvez. Resta-me aprender a andar no escuro. 

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A grande ave predadora

Pablo Picasso - Guernica (1937)

Temos correntemente a ilusão de que podemos estar sentados na vida a contemplar a história, como se esta fosse um filme produzido para nosso entretenimento. Esta fantasia deve-se à impotência em dobrar os caminhos do mundo ao que mais desejamos. Mais cedo ou mais tarde, porém, a história vem ter connosco, e então percebemos que ela é uma grande ave predadora que se vai alimentar da nossa vida e rir-se da nossa ilusão.

domingo, 8 de setembro de 2013

A transfiguração da pátria (6) A decomposição da cal

Georgia O'keeffe - Black Place III (1946)

Oiço o negro salmodiar das ruas,
o anúncio de um outro, o pestífero calvário.
As paredes garatujadas e sujas, restos de
caliça, sombras conjuradas pela noite.
Um destino de erva seca espera-nos
e se uma porta se abre, o vazio chega.

Que fazer dos caminhos do homem, se tudo arde?
A breve decomposição das pétalas anuncia
a longa degeneração da estirpe,
os ossos fragmentados, a pele seca,
o corpo arrastado pelo estremecimento da vida.

Mães peregrinam, os joelhos na terra, o coração
rasgado em cada filho que não nasce.
O salmista desce do cavalo e abre as mãos,
anjo impuro escondido numa caverna,
e traça um círculo de sombra púrpura
na poeira metálica que da pátria se desprende.

sábado, 7 de setembro de 2013

A inquietante estranheza

Luis Brihuega - Los rostros del ser humano (série - 1975/80)

Sou homem, nada do que é humano me é estranho, escreveu Publio Terêncio Afro. Terêncio terá morrido relativamente jovem. Não teve tempo para substituir a presunçosa proposição pela humilde interrogação: Sou homem, por que razão tudo o que é humano se me está a tornar tão estranho.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A infalibilidade do Tribunal Constitucional


Perante mais um chumbo do Tribunal Constitucional (TC), uma das linhas de argumentação pró-governamental diz que o problema não está na Constituição mas nas interpretações que dela são feitas pelos juízes do TC. Por outro lado, como reforço do argumento, membros do governo e apoiantes afirmam que as decisões do TC não estão acima da crítica. Nos dois casos está a lançar-se poeira para os olhos dos cidadãos para esconder aquilo que é evidente: o governo quer governar contra a Constituição e as regras constitucionais.

Comecemos pela primeira questão. A Constituição é um texto escrito e como todos os textos escritos está sujeito ao conflito das interpretações. Não há uma interpretação da Constituição que seja a verdadeira e autêntica interpretação, que todos nós reconheceríamos como válida e, facilmente, descobriríamos se uma lei seria ou não constitucional. Se existisse essa tal interpretação, o TC seria uma redundância e, por certo, nunca teria chegado à existência. Como não existe, a única solução é a existência de um TC que, segundo a consciência dos seus membros, determina o que está ou não de acordo com a Constituição.

Mas as decisões desse TC estão acima da crítica? Claro que não. Numa sociedade democrática, onde existe liberdade de expressão, todas as decisões são discutíveis e criticáveis. Este facto, porém, não invalida um outro. Para efeitos práticos, as decisões do TC são infalíveis. Isto quer dizer que os juízes do TC são assistido pelo Espírito Santo e possuem a tal interpretação válida da Constituição que ninguém tem? Não, significa apenas que não há recurso das suas decisões. Elas são para cumprir e, do ponto de vista prático, discuti-las ou não tem o mesmo efeito. São as regras do jogo numa sociedade pluralista.

O incómodo do governo e dos seus apoiantes está no facto de conviverem mal com as regras democráticas, entre elas a submissão da acção política à lei, quando a lei lhes desagrada. A nossa Constituição é uma força de bloqueio a este governo? É. A este e a qualquer outro. As constituições existem para bloquear os apetites de quem está no governo, para limitar a sua acção, para obrigar o governante a conter-se em determinadas linhas que são amplamente maioritárias dentro da comunidade. O TC, na sua infalibilidade, regula o carácter constitucional ou não das leis produzidas pelos governos. Se não se aceita isto, se não há força para mudar a Constituição, o que se pretende? Condicionar a justiça? Empurrar o país para a guerra civil para impor uma Constituição ao gosto do tempo?

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Leituras poéticas - Jacqueline Risset - "Le Toucher"

Émile-René Ménard - A banhista (1913)

Tu ne m’as pas touchée encore

l’amour passe par les yeux
et descend dans le cœur
l’amour de loin nous exerce
et nous perfectionne

mais qui

pourrait me toucher à presént
sinon toi?

Je circule dans l’air
dans ce bois sacré
couloir de givre

dans cette auréole
                                                 (Jacqueline Risset (1988) "Le Toucher" in L’amour de loin)

Tu não me tocaste ainda

o amor passa pelos olhos
e desce no coração
o amor de longe exercita-nos
e aperfeiçoa-nos

mas quem

poderia tocar-me agora
senão tu?

Eu circulo no ar
neste bosque sagrado
caminho de geada
nesta auréola
                                                 (Jacqueline Risset (1988) "Le Toucher" in L’amour de loin. Tradução minha)

Que melhor maneira de estragar um poema do que submetê-lo a um esquartejamento analítico? O belíssimo poema de Jacqueline Risset pode ser dividido em três partes. A primeira é composta pelos versos: Tu não me tocaste ainda // (…) // mas quem // poderia tocar-me agora / senão tu? Só ela bastava para ser um poema completo no seu poder encantatório. Uma segunda parte tem por tema o amor: o amor passa pelos olhos / e desce no coração / o amor de longe exercita-nos / e aperfeiçoa-nos. A terceira descreve o estado em que se encontra e para onde se dirige o sujeito poético, o eu: Eu circulo no ar / neste bosque sagrado / caminho de geada / nesta auréola.

A primeira parte – que tem intercalada em si a segunda – parece composta por uma frase declarativa e uma construção interrogativa. A construção interrogativa, na verdade, é uma declaração: “agora, só tu me podes tocar”. O jogo centra-se em quem detém a possibilidade de tocar o sujeito poético, o eu. Apesar de não o ter feito até agora (ainda…), só esse tu tem a possibilidade de o fazer, só ele pode tornar o tocar uma realidade efectiva. O que habilita esse tu a ter a possibilidade, o poder, de tocar o eu?

A resposta está no que classificámos como segunda parte do poema, não por acaso intercalada na primeira, como se essa posição no texto simbolizasse aquilo que concede o poder de tocar. O agente habilitador do poder de tocar é o amor. Isto, porém, diz-nos pouco. A estrofe começa por nos descrever o trânsito do amor e contradiz a ideia de que o amor nasce no coração. Não, o amor é uma transcendência, está fora de nós. Entra em nós ao passar pelos olhos. Só depois, desce no coração. O amor vem de fora, entra pelos sentidos, e convoca-nos, impõe-se-nos e toma conta do coração. Este carácter invasivo do amor – da posição desse tu que desce no coração de um eu, através dos olhos – tem uma contrapartida. É invasivo mas mantém a distância, está presente mas não está presente, ainda não tocou mas já tocou. A razão sucumbe na contradição. A estrofe continua: o amor de longe exercita-nos / aperfeiçoa-nos. Esta invasão na distância, esta presença ausente, sublinha a natureza ascética do amor. O amor, mediado pela distância, é exercício e caminho de perfeição.

É esse exercício e aperfeiçoamento a que o amor na distância induz que cria a condição para que só esse tu possa tocar o eu. Mas qual será o preço? Deste eu pouco sabemos, mas o poema descreve-nos o seu estado. A última estrofe mostra-nos o resultado da ascese amorosa: o abandono da vida corrente e a entrada no domínio do sagrado (no bosque sagrado), a levitação (circulo no ar), o estado de glória (nesta auréola). Quem pode tocar esse eu? Aquele que, enquanto amor, através do olhar o invade e lhe desce no coração, fazendo-o levitar, entrar na pura glória, consagrando-o. 

É na consagração pelo amor, todavia, que se joga a equivocidade e o fascínio do poema. O eu levitante e glorioso é também, pela sua consagração, a vítima, a hóstia (em latim, significa precisamente vítima) consagrada, aquela que sente o frio da morte (caminho de geada) trazido pelo amor. O amor não confirma o ego. Sacrifica-o. Como toda a verdadeira vítima sacrificial, o eu prepara-se para o sacrifício pelo exercício e pelo aperfeiçoamento que o amor de longe induz. Quando o eu se entregar em pura oblação ao tu, já não será um eu, um ego centrado em si, mas pura abertura, fenda, vazio que o tocar vai preencher e, desse modo, salvar.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Póquer na Síria

Felix Vallotton - Poker (1902)

O senador norte-americano John McCain, antigo candidato republicano à Presidência, foi apanhado a jogar póquer no telemóvel,  enquanto os representantes do governo de Barack Obama explicavam ao Senado as razões para um ataque à Síria. McCain é favorável à intervenção militar. Poder-se-ia dizer que a vida e a morte de milhares de pessoas está na mão de dirigentes políticos que, quando se discutem problemas tão graves como os da guerra, se entretêm com o seu iPhone. E acrescentar-se-ia, não sem fundamento, que a vida dos outros pouco incomoda os políticos. Isso, porém, seria ler mal o acto de McCain. Na verdade, o póquer, enquanto jogo de azar, simboliza bem a aventura em que Obama e os norte-americanos se querem meter. O póquer de Mccain não é um acto de distracção pessoal, mas o símbolo do que os americanos se preparam para fazer na Síria, como o fizerem em muitos outros lados de má memória. A criação de uma nova e terrível mesa de póquer. 

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Meditações dialécticas (17) Análise poética

André Breton - Cadavre exquis (1930)

Pegamos num poema, lemos, relemos. Ela toca-nos. Por que razão tem ele esse poder? Interrogamo-lo e ele, como todos os textos, repete o que disse, numa iteração sem fim. Essa iteração tem uma dupla consequência. Por um lado, possui um efeito encantatório, aumenta o charme do texto no coração do leitor. Por outro, ao intensificar o seu mistério, o poema irrita a razão, mostra-lhe os limites, sublinha-lhe a derrota. Não exigiu Sócrates que, para o aceitar como discípulo, Platão queimasse os seus versos? Perante o encantamento produzido pelo poema, podemos sempre usar a análise. É preciso, contudo, ter consciência que a análise é um processo da razão, de uma razão derrotada, impotente, irritada. E isso enviesa a análise – qualquer que ela seja – de um texto poético. Talvez ela nos devolva, no lugar da solução do mistério encantatório do poema, um cadáver. Um cadavre exquis? Não, apenas um cadáver esquartejado.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A ficção filosófica

Egon Schiele - A verdade desvelada (1913)

Ainda se os vê (aos jovens hegelianos), indo de uma lado para o outro, murmurando na sua gíria, louvando o mestre e com a séria convicção de que frases como «a natureza é a ideia na sua alteridade» querem dizer alguma coisa. Desorganizar dessa maneira um cérebro jovem e fresco é realmente um pecado que não merece nem perdão nem comiseração alguma. Esta foi, pois, a famosa influência  de Hegel nos seus contemporâneos e que, por desgraça, se estendeu e difundiu até muito longe.  (Arthuer Schopenhauer, Sobre a filosofia universitária)

Este violento ataque de Schopenhauer a Hegel funda-se na convicção de que a filosofia tem alguma coisa a dizer sobre a realidade. O que é interessante na filosofia é, contudo, o seu carácter ficcional. Por exemplo, a Ideia platónica ou a Substância aristotélica são invenções notáveis. Os filósofos inventam conceitos e regras para os usar. Esse uso regulado dos conceitos são as teorias, isto é, as ficções que os filósofos produzem. Por norma, as regras usadas são de carácter lógico e visam evitar a contradição (é sempre muito aborrecido uma pessoa que se contradiz) e as falácias. Aquilo que distingue Hegel de muitos outros filósofos é que a suas ficções dão um relevo essencial à contradição, para além de uma linguagem que parece inventar-se a cada instante. 

Porém, tudo isto não terá importância alguma. Se as teorias filosóficas forem encaradas como construções poéticas ou romanescas, mesmo a existência de contradições e de falácias se torna irrelevante. É evidente que os filósofos - porventura, com a excepção dos cépticos - se dizem orientados pela busca da verdade, pretendendo, nessa caminhada, validar os seus argumentos. O leitor de filosofia deve, no entanto, desconfiar de tamanha pretensão. O essencial é o prazer que pode obter na leitura de uma obra, a contemplação, depois de um árduo investimento, da mestria do autor para compor a sua ficção, a capacidade para inventar conceitos fátuos e teorias ardilosas. Ao ler filosofia, o leitor deve ser guiado pela busca do prazer e não da verdade. Se a verdade o interessa, o melhor será bater a outra porta. Mas qual a porta humana que, ao abrir-se, nos levará à verdade? 

domingo, 1 de setembro de 2013

A rebelião contra a Constituição

Botticelli - Rebelião contra a lei de Moisés (1481-82)

Todo o alarido que vai pela direita com o novo chumbo do Tribunal Constitucional a uma medida do governo tem a sua razão de ser. Na verdade, a nossa Constituição não se integra no Zeitgeist. Não é que tenhamos uma Constituição socialista como por aí, nomeadamente nos blogues amigos do governo ou de tendência "liberal", é proclamado. A lei fundamental portuguesa, apesar de algum palavreado inócuo de tonalidade mais marxizante, o que permite é uma sociedade capitalista - fundada no mercado e na livre iniciativa -, mas uma sociedade onde as pessoas que trabalham por conta de outrem não são vistas a partir do prisma de mão-de-obra que está no mercado, mas como pessoas e como cidadãos, e daí possuírem direitos sociais que lhes permitam exercer essas prerrogativas.

Na nossa Constituição - e é isso que a torna aos olhos dos seus inimigos obsoleta - o trabalho não é uma mercadoria e as pessoas que trabalham não são meras coisas. O que o governo exige, bem como os nossos "liberais", é a transformação dos trabalhadores em coisa descartável e a rápida eliminação dos chamados direitos sociais. A nossa Constituição está obsoleta pois não permite facilmente constituir uma sociedade segundo o modelo asiático que tanto empolga os amigos do governo. A rebelião que se ouve é o ruído daqueles que querem fazer de Portugal - ainda mais do que é - um paraíso para um grupo restrito e um inferno para imensa plebe, a quem a democracia e a entrada na CEE deram a ilusão de que não existia inferno ou que fora extinto por algum decreto papal. Enquanto a nossa Constituição não permitir esse inferno, haverá sempre quem declare a sua obsolescência e proclame a necessidade de uma rebelião. Se os pobres e as classes médias - sempre prontas para se iludirem sobre o seu estatuto - sonhassem quão revolucionárias e tumultuosas são as elites económicas, talvez alguma coisa mudasse em Portugal e no mundo.