terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Sobre furacões e cismas

Francis Bacon - Study of Red Pope (1962)

Todos gostam dele e o ouvem com interesse e prazer, às vezes com avidez. Mas existem duas maneiras diferentes de confrontar a sua pessoa. O consenso à sua volta sofre de um cisma fundamental, ainda oculto.

Existem aqueles que o seguem como Papa e os que o usam como Papa; os que aprendem com ele e os que concordam com ele; os que aceitam as suas palavras como aviso e os que as vêem como argumento. (João César das Neves, O furacão Bergoglio, DN de 2013-12-30)

Já aqui falámos de como as palavras e os actos do Papa Francisco estão a provocar um estado de dissonância cognitiva entre muitos membros da Igreja Católica que são, ao mesmo tempo, adeptos do rumo seguido pela economia mundial e das políticas que promovem esse rumo. Do ponto de vista económico e político, mas também religioso, o Papa diz rigorosamente o contrário daquilo que eles defendem. Como esta dissonância é desconfortável, muito desconfortável, já se iniciaram as manobras de consonância, de modo a tentar tornar compatível aquilo que é incompatível. O artigo de João César das Neves (JCN), citado em epígrafe, faz parte desse processo de tentativa de diminuir o desconforto que as palavras do Papa têm semeado nos católicos neoliberais.

Só a hermenêutica do título do artigo - O furacão Bergoglio - daria um belo ensaio de matiz psicanalítico. Os títulos, devido à sua concisão, são sempre mais transparentes do que os textos, onde há mais espaço para a opacidade, para enfeitar e disfarçar os argumentos que são passados subliminarmente. A metáfora do furacão remete de imediato para dois campos semânticos fundamentais. Por um lado, o furacão é associado à destruição; por outro, é algo que, pela velocidade do fenómeno, passa rapidamente. Mais interessante ainda é o facto do título omitir o nome papal e usar o nome civil. Não é o Papa que é um furacão, mas o cidadão argentino Bergoglio. Como ler aquele título? Aquele Bergoglio (quase apetece ler: aquele usurpador) representa a destruição, mas haja a esperança de que, como todos os furacões, passe depressa. Francisco não é uma bênção, não é sequer uma surpresa. É apenas Bergoglio e este é um furacão.

Há um momento no texto de JCN, aquele que é citado, que mostra muito claramente o desconforto que é sentido por certos sectores da Igreja Católica. Não é apenas a crítica à injustiça social e à orientação político-económica do mundo que têm granjeado ao papa Francisco a enorme admiração que lhe é tributada. É a sua pouca propensão para as divisões, para a condenação dos outros, para alimentar cismas e sectarismos. Fala para os católicos, mas não esquece os não-católicos, os agnósticos e os ateus. Apela para a união de todos os homens de boa vontade, estende-lhes as mãos para que, em conjunto, o mundo seja um sítio menos deplorável. Mas o que descobre JCN? Descobre que o "consenso à sua volta sofre de um cisma fundamental, ainda oculto." Onde Francisco, o furacão Bergoglio, quer lançar pontes para unir, JCN descobre cismas ocultos. Cisma entre os que aprendem com o Papa e os que concordam com ele, os que aceitam as suas palavras como aviso e os que as vêem como argumento. Percebe-se que a dissonância cognitiva faça sofrer. Se o Papa não julgasse que as suas palavras são argumentos razoáveis, e que devem ser usados, tê-las-ia escrito e proferido? Será o jesuíta Bergoglio um idiota que não sabe como funciona o mundo?

As palavras finais do artigo de JCN são, também elas, claros sintomas do estado de alma que o artigo representa: A sua (do Papa) missão é converter o mundo, não ser aceite por ele. Há uma clara preocupação pelo facto de Francisco ter uma grande aceitação nos maus lugares. Parece que os pobres gostam dele, parece que as vítimas da economia mundial gostam dele, parece que muitos agnósticos e ateus gostam dele, parece mesmo que muita gente de esquerda começa a prestar-lhe atenção. Contrariamente ao que parece pensar JCN, toda essa gente espera uma verdadeira conversão do mundo, espera que os valores da equidade, da justiça social, da dignidade do homem, tenham uma papel preponderante nas comunidades humanas. Se o Papa reconhece e afirma em voz alta tudo isso, talvez alguma coisa esteja a voltar ao seu lugar, talvez o cristianismo, tal como nasceu, ganhe novo sentido, talvez a cidade terrestre seja o ponto de partida para a cidade celeste. O que JCN parece não saber é que a visão económica e política que defende está muito mais próxima, pois é filha dele, do ateísmo iluminista do século XVIII do que do cristianismo. Parece que Francisco compreendeu isso radicalmente. 

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A destruição do pacto social

Luis Brihuega - O medo (1968)

Que significado político pode ser conferido aos cerca de sessenta tiros disparados esta madrugada sobre a residência do embaixador alemão em Atenas? Uma leitura imediata diz-nos que é uma espécie de retaliação que visa começar a disseminar o terror entre os responsáveis pelas actuais políticas europeias. Esta resposta, porém, encobre o problema essencial. As políticas europeias estão a conduzir à destruição do pacto social que, apesar de não eliminar as diferenças sociais, permitia um amplo consenso entre os membros de uma comunidade política. Era este acordo que retirava espaço de manobra ao exercício do terror político e parecia tê-lo transformado numa relíquia dos museus europeus da violência política. Os acontecimentos desta madrugada em Atenas são mais um sinal, um perigoso sinal, de que a Europa esqueceu que a pacificação das sociedades repousa no equilíbrio e na distribuição adequada dos bens provenientes da cooperação social. Mostram também que o terror é sempre a outra face do desespero do presente e do medo do futuro.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Metamorfoses 9 - O ritmo das mãos sob a luz da tarde

Edgar Degas - Bather Stretched out on Floor (1886-88)

9. O ritmo das mãos sob a luz da tarde

O ritmo das mãos sob a luz da tarde,
a ideia do inverno a germinar no peito,
o silêncio simples dos dias de sombra.

Trazes em ti a respiração do vento,
as promessas azuis que o outono deixou,
um resto de luar cerzido pela noite.

Retiro-me para o declínio das estrelas
e traço na areia figuras de seda e musgo,
o teu corpo aceso no fulgor deste olhar.

sábado, 28 de dezembro de 2013

Joel & Ethan Coen - A Propósito de Llewyn Davis


O filme dos irmãos Coen centra-se numa semana da vida de Llewin Davis, um aspirante ao sucesso no panorama da música folk de Greenwich Village, Nova Iorque. Estamos em 1961, no momento que antecede o surgimento de Bob Dylan. Com a figura de Llewyn Davis, os irmãos Coen dão-nos mais uma vez uma imagem da sociedade norte-americana, olhando para aquilo que se esconde por detrás do denominado American Dream. Duas notas sobre o filme. Uma sobre a relação entre o sonho e o poder pessoal, a segundo sobre as redes de solidariedade que interanimam a vida social americana.

Llewyn Davis transporta consigo um sonho, o de se tornar numa estrela do universo folk. Por isso, abandona a carreira, nada glamorosa, na marinha mercante e entre no universo errático daqueles que procuram a oportunidade que lhes abra a porta à concretização do desejo de reconhecimento. Quando se trata de realizar um sonho ou um desejo, aquilo que está em jogo é sempre o poder. Não o poder colectivo - este pode surgir como obstáculo -, mas o poder pessoal, a capacidade de dobrar as circunstâncias à sua vontade e impor o triunfo de si mesmo a um universo sempre desconfiado e renitente. Os Coen mostram, com a personagem de Llewyn Davis, como o fracasso se pode produzir. A falta de talento, um desejo que não é servido pela firmeza da vontade e, talvez o mais importante do ponto de vista simbólico, a errância por um universo caótico, projecção do caos interior da própria personagem.

Se se pensar nos heróis americanos, da literatura ao cinema, eles têm uma característica comum. Subtraem-se à consideração aristotélica de que o homem é um animal social. Fora deste laço comunitário, segundo o filósofo grego, ficam os animais e os deuses. Os heróis americanos acalentam todos eles, devido ao individualismo que os anima, a aspiração ao estatuto de deuses. Também Llewyn Davis aspira à sua divinização, ao estrelato musical. Tem, contudo, uma natureza demasiado condescendente consigo mesmo para que se consiga dobrar e, a partir das suas próprias forças concentradas e em tensão, submeter o mundo ao seu desejo. Não tem poder suficiente para solidificar o ego e torná-lo glorioso. Está condenado devido à limitação do seu poder pessoal.

Em sociedades puramente concorrenciais, a ausência de poder pessoal é o pior que pode acontecer, pois deixa a pessoa perdida num universo onde as redes sociais têm uma existência precária e pouca capacidade de auxiliar efectivamente aquele que, em busca da glória, se condena à perdição. Llewin Davis possui a sua rede de amigos, mas esta apenas o tolera. Também ela não tem qualquer poder para lhe fornecer, para além de alguns dólares, uma ou outra refeição e algumas dormidas num sofá, uma estrutura que o ajude a ultrapassar o que o limita. É uma rede frágil, pontual, impotente, sem capacidade para estreitar os laços e tornar-se um ponto de partida seguro para a realização de si mesmo.

Aquilo que vemos, em A Propósito de Llewyn Davis, é um retrato da América, mas de uma América que se tornou a imagem ideal que orienta as decisões e opções dos próprios europeus e de parte do mundo contemporâneo. Um mundo dividido entre fracassados e vencedores, um mundo onde a comunidade se resume a redes frágeis e inconsistentes, um mundo onde o ego com facilidade se extravia tornando-se num fantasma saído dos seus próprios sonhos. Dito de outra maneira, o que nós vemos é o pesadelo que se esconde na sombra do sonho americano e da ideologia do herói solitário que, pelo seu poder pessoal, obriga o mundo ao reconhecimento. 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

O fim de uma ilusão?


Talvez Portugal não seja mais que uma ilusão. Uma ilusão persistente, certamente, mas ainda assim uma ilusão. Nasceu, no século XII, pela ambição e voluntarismo da elite política luso-galaica, a qual criou um Estado e cuidou de inventar um povo inexistente, o povo português. Durante os nove séculos de existência, o Estado, nas suas diferentes encarnações, tratou, para além dos pequenos e grandes negócios das elites, de cultivar e dar substância a essa ilusão que se chama Portugal.

Os séculos XIX, XX e XXI (já lá vão treze anos deste) foram tempos de modernização de Portugal, com múltiplos avanços e múltiplos recuos para criar uma sociedade livre e, ao mesmo tempo, com um módico de decência e de equidade social. São 200 anos de tentativas de aproximar as elites e as gentes miúdas, são 200 anos de esforços para quebrar a fatalidade de um destino marcado por enormes diferenças sociais, são 200 anos de ensaios para tornar o mérito e a mobilidade social factores dinâmicos na nossa sociedade.

Como já escrevi nesta coluna, nos últimos decénios houve dois momentos onde pareceu possível realizar o sonho de uma sociedade livre e socialmente justa. O primeiro nasceu com o 25 de Abril e foi morrendo entre utopias, equívocos, golpes de força e tensões que lá se foram gerindo com alguma sensatez. O segundo, mais adequado à nossa situação europeia e à nossa cultura ocidental, emergiu com a adesão à Europa, a Europa da CEE, para morrer na crise que foi iniciada em 2008 pelas trafulhices da economia financeira internacional e que desabou, sobre os portugueses, como crise de dívida soberana, aquela que está a tornar evidente o quão frágil são as nossas instituições e a nossa sociedade civil.

Enquanto português – português que gosta da ilusão da viabilidade política de Portugal – há dois dados que me deixam, ao entrar no ano em que a transição à democracia perfaz 40 anos, muito preocupado. Em primeiro lugar, é o retorno em força da emigração, mas agora de uma emigração de gente com formação, de gente já diferenciada, de pessoas que não sonham voltar para Portugal, fazer a sua casa na aldeia e enviar para cá as suas poupanças. Querem o mundo cosmopolita que os recebeu e é aí que sonham viver e educar os filhos. Em segundo lugar, a queda incontrolável da natalidade. Não apenas os portugueses saem, como os que ficam não parecem interessados que a comunidade – aquela a que chamamos Portugal – tenha um futuro. Teremos força para inverter este destino ou aproximamo-nos do fim de uma ilusão?

P.S. Para todos os leitores, um feliz Ano Novo.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Pôr de lado o medo, banir a lamentação

J.S. Bach - Christmas Oratorio BWV 248

Set aside fear, banish lamentation... (do Oratório de Natal, de J. S. Bach)

Não farão de novo pleno sentido estas palavras? Não chegou o tempo de os homens tornarem a pôr de lado o medo (o texto alemão diz a hesitação), de banir a lamentação? Não é na noite mais escura que mais viva brilhará a luz? Sim, o Natal também traz consigo a ideia de libertação, a ideia de emancipação. Fundamentalmente, traz a ideia de que é possível libertarmo-nos das ilusões que nos amarram à insignificância e ao medo. Muitas vezes, presos às leituras eruditas da história, pensamos que a ideia de emancipação nasce com o Iluminismo e a sua vertente irreligiosa. Mas o que é a figura de Cristo senão a imagem do homem emancipado das suas ilusões e da prisão a que, voluntariamente, se sujeita? Um bom Natal.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Trégua invernal

Manuel Narváez Patiño - Inverno (1993)

Há expressões que se utilizam sem se pensar no sentido profundo que nelas se oculta. A semântica das palavras e das frases não se divide apenas entre o denotativo e o conotativo, entre o sentido corrente e o sentido figurado. Há uma carga histórica que, a maioria das vezes, o utilizador da língua não tem em consideração. Essa historicidade tem o poder de fazer vacilar as fronteiras entre denotação e conotação, tem o poder de dar figura ao que é já sentido corrente. Tudo isto vem a propósito da "trégua invernal" aprovada pelo governo da Catalunha. Essa "trégua invernal" propõe que nos meses de Novembro a Março não seja cortada a luz, água e gás às famílias em pobreza económica, podendo elas regularizar a dívida entre Abril e Outubro.

Ora a pergunta que se coloca é se a expressão "trégua invernal"  é denotativa ou conotativa. Em aparência estaremos perante uma expressão metafórica, mas a historicidade que se esconde na expressão faz vacilar a fronteira entre a conotação e a denotação. O que significa isto? Significa que, para haver uma trégua no Inverno, é porque há uma guerra em curso. Por conveniência das partes, a guerra foi suspensa. A expressão "trégua invernal" deixa ver, como se fosse um negativo fotográfico,  a guerra que grassa pelos países em situação difícil e que ameaça alastrar a toda a Europa. Ela configura - dá figura - a essa guerra que, em Abril, voltará em todo o seu esplendor, e seguirá, por certo, com todo o vigor o seu cortejo de violências.

domingo, 22 de dezembro de 2013

Da felicidade

Eugène Carrière - Meditação (1900)

Nos tempos de Verão, a floresta arde, assustando homens e animais. No Inverno, as chuvas engrossam os rios, e estes, caudalosos e descuidados, saltam margens e desfazem fronteiras. A Primavera traz a vida e o Outono, colheitas. Durante muito tempo meditei na felicidade que a natureza oferecia. Há horas em que se exulta com os dons da Terra. Noutras, o luto e o perigo rondam casas e famílias. Assim descobri a ordem do mundo. A natureza dá e tira com justiça e equidade. Fora disto, não há como ser feliz.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Albert Camus, A Queda


Acontece muitas vezes que, ao retornarmos a um livro que nos entusiasmou há muitos, muitos anos, nos decepcionamos e nos perguntamos sobre quem éramos, naqueles dias, para que aquela obra nos tivesse tocado. Isto não se passou com A Queda, de Albert Camus, obra lida, pela primeira vez, quase há quarenta anos. Pelo contrário, A Queda ainda continua a prender o leitor e a dar que pensar.

Consta que Camus terá escrito o livro, publicado em 1956, para satirizar os membros do Partido Comunista que, apesar da sua adesão a uma concepção do mundo ateia, continuavam a olhar o mundo e a acção a partir da mentalidade religiosa em que foram educados. No centro dessa mentalidade está a culpa, não tanto do próprio, mas a culpa de todos os outros, nomeadamente daqueles que, pela sua origem de classe, são vistos, pelos marxistas, como socialmente culpados. Isto não está explícito na obra e, devido à natureza das obras literárias, A Queda desprendeu-se, há muito, da situação em que foi produzida e das intenções que o autor teve – ou que se supõe que teria tido – quando a produziu.

Esta autonomia da obra relativamente às suas condições de produção permite-nos pensá-la de uma forma menos circunstancial. Sendo assim, podemos desligá-la da suposta sátira aos comunistas franceses do pós-guerra e tomá-la em si mesma, libertando a possibilidade de reconfigurar novas referências. A leitura que proponho prende-se com os meus interesses, embora julgue que ela esteja sustentada pelo conteúdo da obra. O que está em jogo em A Queda é a detecção de dois mecanismos essenciais na reconfiguração e salvação do eu (ego, em Latim, e não do ipse): a confissão e a penitência.

O universo de A Queda inscreve-se todo ele na ambiência temática do cristianismo. Queda, culpa, confissão, julgamento, exílio e penitência. Jean-Baptiste Clamence era um advogado bem-sucedido, não apenas na profissão, mas também na vida social, no desporto e nos jogos amorosos. O sucesso alimentava um eu glorioso e condescendente. A queda dá-se quando, numa noite, ouve um riso que o atinge em pleno, trazendo-lhe à memória um episódio passado anos antes, o suposto suicídio de uma jovem. Jean-Baptiste passa por ela, e quando já estava afastado umas dezenas de metros ouve o barulho de um corpo a cair nas águas do Sena e um grito. Ele, o exemplo de homem activo, sente-se incapaz de socorrer a suicida. Sartre diria que Clamence agiu de má-fé, que decidiu pela não decisão. Qual é a chave para compreender a queda do eu glorioso do homem moderno e o princípio que origina a sua culpabilidade? A má-fé, a decisão pela não decisão, a substituição da liberdade, que nos obriga à responsabilidade, pela necessidade que preside aos acontecimentos na sua dimensão física.

Quando o leitor conhece Jean-Baptiste Clamence – este nome exigiria uma hermenêutica que não cabe num post – já é o eu decaído e culpado que tem perante si. O romance é a longa confissão feita a um desconhecido da transformação de Jean-Baptiste em juiz-penitente, ele que, enquanto brilhante advogado, odiava os juízes. Uma confissão feita no exílio auto-imposto, um exílio numa obscura zona de Amsterdão. A nova função que o protagonista se atribui a si mesmo é a chave da estratégia de salvação do eu. A penitência está no exílio, no abandono voluntário do ambiente de sucesso em que vivia em Paris, está, inclusive, na confissão a um estranho da sua própria degradação. Esta confissão, porém, não visa um perdão e, através dele, a salvação pela humilhação de si, mas a reciprocidade. Clamence confessa-se para obter, em troca, a confissão do outro e, dessa forma, o poder julgar moralmente. Por isso, se afirma juiz-penitente.

A salvação do eu, do eu empírico e iludido acerca da sua própria glória, do eu que nega a responsabilidade que a liberdade traz consigo, reside na sua transformação num eu judicativo, num eu que passa a ter funções normativas e prescritivas sobre os outros. Podemos acompanhar todo o processo de formação da moral do homem moderno. A amoralidade originária, a do eu glorioso, é destruída pela descoberta da sua má-fé e da falsidade das suas pretensões. A culpa é já sintoma de que o jogo do bem e do mal, do moral e do imoral, opera na consciência do sujeito. Mas como recuperar o prestígio desse eu decaído? A penitência e a confissão são estratégias de recuperação do prestígio do eu, elevando-o ao mais terrível lugar de poder, o poder julgar. De certa maneira, isto descreve a estrutura moral que se pode atribuir a muitos comunistas, mas nesse caso eles não são mais do que exemplos particulares do homem moderno. É por isso, porque capta um aspecto universal da modernidade, que A Queda, passados 57 anos da sua publicação, continua a dar que pensar.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O meu liberalismo


Será o liberalismo um conjunto de ideias negativas, das quais devemos fugir como o diabo foge da cruz? Em teoria, o liberalismo é uma ideia moralmente aceitável. Não é injusto pensar que a distribuição de encargos e de recompensas sociais deva ser regulada por contratos que seres humanos livres, racionais e iguais estabelecem entre si. Identifico-me completamente com esta ideia. Em teoria, sou um liberal. Por que motivo me oponho com tanta veemência às políticas governamentais e ao actual rumo liberalizante de Portugal? Por dois motivos.

Para começar, o problema está em que, mesmo numa sociedade livre, nem todos possuem o mesmo grau de liberdade, incluindo de liberdade negativa, a de não se ser coagido por terceiros. Por outro lado, o grau de racionalidade dos seres humanos também é diferenciado, havendo seres humanos, ainda que dentro dos limites da legalidade, tiram vantagens imorais do uso estratégico e instrumental da sua razão, condenando outros, racionalmente mais débeis, a situações desfavoráveis. Por fim, os contratos estão, muitas vezes, longe de ser um acordo estabelecido entre pessoas livres e iguais. São, antes, o resultado de um conflito dissimulado em que o mais forte impõe as suas condições ao mais fraco.

O segundo motivo, derivado do primeiro, liga-se à natureza da sociedade portuguesa. Basta ver um telejornal para perceber a fragilidade de parte substancial dos portugueses. Sem competências para actividades complexas, desprovidos de capital simbólico, habitando num mundo que já acabou, presos a uma enorme fragilidade social e individual, muitos e muitos portugueses estão longe de encarnar a racionalidade livre que o liberalismo pressupõe. Como poderiam eles, em todos os campos da sua existência, enfrentar uma sociedade plenamente liberal? Não poderiam. E essa impotência condená-los-ia à pura exclusão social, à sua transformação em párias.

Se não somos, à partida, todos iguais e se a nossa sociedade é muito frágil, o liberalismo apenas pode ser um ideal regulador da acção da comunidade. As novas gerações devem ser educadas para a racionalidade, para que cada um tenha poder suficiente para viver livre e racionalmente. Isso, porém, exige a solidariedade da comunidade. Ora essa comunidade tem os seus instrumentos de decisão, aos quais damos o nome de Estado. O Estado não é apenas um dispositivo para manter a ordem e a segurança. Deve ser também um mecanismo que assegure a solidariedade que visa a liberdade de todos e de cada um.

P.S. Talvez o Natal também exista para que não transformemos grande parte das nossas sociedades em guetos de párias e de excluídos. Um bom Natal.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Metamorfoses 8 - O grito irado duma profetisa enlouquecida

Charles Émile August Duran - Danaë (1900)

8. O grito irado duma profetisa enlouquecida

O grito irado duma profetisa enlouquecida,
a voz grave da camélia desfolhada,
o som de dezembro ao anoitecer.

Trazes esse mundo por entre o fulgor dos cedros,
e eu olho-te e vejo-te na obsessão do amor,
na inquieta certeza do crepúsculo.

Estendo a mão vazia para a rua sonâmbula
e espero que a escuridão se desvaneça
se a tua sombra se desenha no umbral.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O anjo do passado

Carmen Parra - Agar e o anjo no poço (1997)

Vivemos numa sociedade em que o desprezo pelo conhecimento histórico se tornou numa verdadeira pandemia. Não se trata apenas de um desconhecimento popular do passado e dos feitos dos antigos. Até há relativamente pouco tempo, a história era o território onde os políticos aprendiam. Era uma espécie de laboratório, para onde se olhava e se descobria a prudência e a sensatez na acção. A história é o maior dissolvente conhecido das tentações utópicas, pois nela descobre-se a que lugares negros nos podem conduzir os desvarios da imaginação. Por outro lado, aquilo que parece ser coisa recente, a história mostra-o na profundidade do tempo. Veja-se o caso do conflito entre israelitas e árabes. Claro que a criação do Estado de Israel levou ao ódio e ao conflito entre as partes, mas esse ódio já lá estava desde o tempo de Abraão e da expulsão de Agar e de Ismael. Este velho exemplo mostra-nos que o passado não dorme, mesmo se está silencioso. É isso que as actuais elites políticas, alucinadas por uma economia matematizada e desistoricizada, desconhecem, na sua abrangente ignorância da história. Preparam assim o terreno para que o anjo do passado traga todos os pesadelos que teimamos em ignorar.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Metamorfoses 7 - Por vezes, as metáforas ficavam a baloiçar

Ramón Casas Carbó - Au bain (1895)

7. Por vezes, as metáforas ficavam a baloiçar

Por vezes, as metáforas ficavam a baloiçar,
à procura de um ritmo, de uma voz,
da fria mão que as libertasse.

Tudo se conjurava para que viesse o poema.
Lento, temente das palavras, desatinado:
sombra tracejada no silêncio.

Assim chegavam naqueles dias os sonhos,
as sílabas cantadas que te saíam dos lábios,
o rumor do corpo no solstício de inverno.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O caso Mário Soares

Francisco de Goya - Velho baloiçando-se (1824-1828)

Os representantes da imprensa estrangeira em Portugal escolheram o dr. Mário Soares para figura do ano. Isto diz-nos muito do estado em que está o país e, fundamentalmente, o estado em que está a oposição. Mas deixemos de lado essas contas e voltemo-nos para a figura do premiado. O dr. Soares tem o condão de ser detestado à esquerda e de ser execrado à direita. A esquerda, nomeadamente aquela que se organiza em torno do Partido Comunista, não lhe perdoa a opção, em 1975, pela democracia burguesa. A direita, que muito lhe deve, não lhe perdoa a sua oposição ao antigo regime e, fundamentalmente, o seu ar de príncipe e a sua altivez. 

Se olharmos para o que é essencial no percurso de Mário Soares, se não ficarmos presos pelo seu comportamento táctico e nos detivermos naquilo que constituiu o seu horizonte político, descobrimos nele uma coerência que em nada se conforma com a visão que dele é passada pelos seus detractores, nomeadamente os que vêm da direita. O aparente anti-comunismo de 1975 ou o ainda mais aparente radicalismo "esquerdista" de 2013, não diferem, em objectivos, do horizonte que o conduziu a pedir auxílio, por duas vezes, ao FMI, enquanto primeiro-ministro, ou ao que inspirou os seus mandatos presidenciais. Em todos os seus gestos políticos se sublinhou sempre uma sociedade democrática - uma democracia burguesa, na linguagem dos anos setenta -, um certo equilíbrio de forças sociais, uma economia de mercado matizada pela força do estado, uma sociedade onde a igualdade de oportunidades fizesse sentido. Dito de outra maneira, Mário Soares foi sempre um social-democrata no efectivo sentido da palavra. Todo o seu trajecto político é coerente com este desígnio.

A oposição que tem feito ao actual governo vem muito claramente nessa linha. Soares não se tornou um comunista. Resiste à degradação do pacto social-democrata que animou a Europa e do qual ele foi um dos protagonistas essenciais em Portugal. A direita tentou tornar a sua oposição risível, ora lançando calúnias, ora falando com condescendência das suas tomadas de posição. Para azar dessa direita, as posições de Soares correspondiam, sem ainda se saber, às posições do actual Papa. O prémio da imprensa estrangeira agora concedido representa um segundo azar para essa direita pró-governamental (há outra), e veio mostrar duas coisas. Por um lado, Mário Soares ainda é uma figura internacional, apesar da idade. Provavelmente, é a figura política portuguesa ainda com maior peso internacional. Por outro, veio mostrar que o seu actual combate político, por muito que desagrade ao governo e às hostes que o apoiam, tem sentido e é muito mais do que uma tontice de um velho caduco. 

sábado, 14 de dezembro de 2013

A pura essência da política

Jordi Pallarés - Delírio (1989)

Pensar o que se passa na Coreia do Norte (por exemplo, a execução do tio do dirigente máximo) como uma manifestação do delírio do presidente morte-coreano é falhar completamente o alvo. Na Coreia do Norte está-se perante a política no seu estado puro. A dominação é acompanhada pelo arbítrio total. Quem estiver despojado do poder - do poder supremo, note-se - é vítima potencial, pois, como aconteceu na Revolução Francesa, o fio que separa uma conduta agradável aos olhos do príncipe e a conduta suspeita é muito ténue. O terror é a essência da acção política e é isso que a Coreia do Norte, mas não só, teima em recordar ao mundo.

Quem pensar, por outro lado, que os políticos democráticos são, por natureza, diferentes de gente como Kim Jong-un está enganado. O que difere é a consciência cívica dos povos, a sua capacidade em limitar o poder através da lei e, em última análise, da própria força popular. Dir-se-á que esta visão do fenómeno político é de um pessimismo radical. É verdade. Retorno mais uma vez à intuição do filósofo francês Paul Ricoeur. O poder, seja ele qual for, é o lugar do mal; o poder absoluto é o lugar do mal absoluto. E é por isso mesmo - e não pela ilusão de que a política pode ser libertadora - que ela nunca deixa de exercer um fascínio sobre mim.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Dissonância cognitiva


Este estranho termo, dissonância cognitiva, refere-se ao conflito interior provocado pela existência de duas crenças inconciliáveis. Lembrei-me deste conceito devido à Exortação Apostólica, Evangelii Gaudium, do Papa Francisco. A dissonância cognitiva atinge, neste momento, um apreciável número de pessoas que, sendo católicas, apoiam as políticas do actual governo, bem como a orientação da economia mundial. Será possível a um católico suportar e aplicar estas políticas? Vejamos o que diz o Papa.

Podemos começar pela questão da relação entre economia e violência: "Mas, enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários povos será impossível desarreigar a violência. Acusam-se da violência os pobres e as populações mais pobres, mas, sem igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há-de provocar a explosão (§ 59)." Isto é, as actuais políticas geram violência e guerra, pois fomentam a exclusão. A sua avaliação da economia global, aquela que nos arrastou para a presente situação, é demolidora: ”Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. (§ 57)”. Ou então: "Os mecanismos da economia actual promovem uma exacerbação do consumo, mas sabe-se que o consumismo desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente daninho para o tecido social" (§ 60).

Mas a afirmação mais decisiva surge no § 53: "Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia mata." O Papa diz, taxativamente, que a actual orientação da economia e das políticas que a suportam mata, e ao matar infringe o mandamento divino "não matarás!". Dito de outra maneira, o prosseguimento deste tipo de políticas é, do ponto de vista religioso, um grave pecado mortal.

Percebo o drama dos católicos apoiantes da actual governação. Como poderão conciliar os seus interesses e visões ideológicas ultra-liberais com uma religião que sempre professaram e cuja autoridade máxima veio agora dizer o que disse? Como poderão aceitar que as suas opções políticas e económicas são não apenas imorais, mas homicidas, violando gravemente a tábua dos dez mandamentos?

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

A metáfora do bordel

Nadir Afonso - Bordel

No dia da morte de Nadir Afonso não escolho, para acompanhar o post, nenhum daqueles quadros onde o espaço - fundamentalmente, o espaço urbano - é reinventado, e dos quais muito gosto. Prefiro este, um quadro que posso ler como uma metáfora social. Não apenas porque o carácter das pessoas é corroído e prostituído pela vida social, mas porque no bordel encontro a essência da sociedade de mercado. Desde que haja dinheiro, a liberdade de escolha das mercadorias parece ser ilimitada. Na metáfora do bordel, descobrimos aquilo que os nossos dias entendem por liberdade. E é esta liberdade que é o motor central que faz girar o mundo actual.
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Nota: para quem quiser aceder a algumas reproduções da obra de Nadir Afonso, deixo o link para o seu blogue Espacillimité. Vale a pena.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Economia do conhecimento

Anónimo chinês - Escola e educação

Os educadores [naquela região, Xangai] compreenderam que a economia mundial vai recompensar a excelência e já não valoriza as pessoas pelo que elas sabem mas pelo que conseguem fazer com o que sabem (Andreas Schleicher).

Os resultados obtidos pelos alunos da região chinesa de Xangai no PISA deixaram muita gente perplexa, nomeadamente os norte-americanos. Argumentou-se que alguma coisa estaria errada e que, naturalmente, os alunos chineses conseguiriam bons resultados apenas nas tarefas rotineiras, aquelas que podem ser treinadas nas escolas. No entanto, a realidade parece ser radicalmente diferente. Por exemplo, as tarefas matemáticas mais exigentes, que testam a capacidade dos alunos para conceptualizar, investigar e aplicar conhecimentos a novos contextos, são realizadas apenas por 2% dos alunos americanos e 3% dos europeus. Contudo, a percentagem de alunos de Xangai que consegue realizar essas tarefas complexas é de 30%. Três notas sobre esta tragédia ocidental.

Em primeiro lugar, toda a retórica sobre a economia do conhecimento, a importância das aprendizagens, o valor do saber, retórica que infestou os sistemas de ensino ocidentais, com destaque para o português, levou-nos a esta situação. O experimentalismo político, a deficiente formação de professores e a indisciplina dos alunos, bem como uma cultura de desprezo pela esforço, rigor e exigência, muito enraizada nos alunos e, em Portugal, nas famílias, só pode produzir resultados destes.

Em segundo lugar, estes resultados sinalizam claramente para onde se está a deslocar o poder mundial. Os povos asiáticos levaram a sério a questão da economia do conhecimento e perceberam, contrariamente aos ocidentais, onde a sobrevivência e o poder se vão jogar nos próximos decénios. Em vez de jogos florais, trataram de levar muito a sério os sistemas de ensino e os resultados na educação. Acima de tudo, não destruíram a cultura de esforço e de disciplina necessária às aprendizagens mais complexas, às aprendizagens que exigem a aliança entre conhecimento e criatividade.

A terceira nota serve para sublinhar, a partir da citação em epígrafe, o fim de uma cultura da erudição. O que está em jogo não é aquilo que as pessoas sabem, mas aquilo que fazem com o saber que dispõem. A derrota da erudição, porém, não significa uma vitória dos aspectos práticos da existência sobre a produção teórica. Pelo contrário, significa a exigência de elevada capacidade de teorização e, ao mesmo tempo, de estabelecimento de conexões com o mundo da vida, para que teoria e praxis se inter-animem num jogo sem fim. Tudo coisas que o sistema educativo português está longe de conseguir fazer.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Metamorfoses 6 - Profundo, o teu corpo tocado por mim

Frantisek Kupka - Nu deitado, Gabrielle (1898)

6. Profundo, o teu corpo tocado por mim

Profundo, o teu corpo tocado por mim,
abismo de seda, oceano de sangue,
a íngreme planície que me espera.

E eu, o velho caçador perdido no bosque,
aquele que escuta o rumor da terra
e se inclina perante o segredo que te habita.

Se a noite ruge no pavor da escuridão
ou se um grifo te atormenta os sonhos,
eu sou o silêncio que vela e canta em ti.

domingo, 8 de dezembro de 2013

O homem que perdeu a pátria

Max Klinger - Na pátria

Já não tenho pátria, acabou-se. Não sei se a venderam ou se fui eu que, por descuido, a perdi. Oiço as palavras que me saem da boca e não reconheço a língua que me é devolvida. Tudo o que um dia me foi familiar tornou-se estranho. Casas, ruas, cidades, o rio da minha aldeia. O Tejo que era maior que o rio da minha aldeia já não está onde estava. Ou então foi o sítio por onde o Tejo passava que desapareceu, deixando as águas do rio suspensas do nada. Olho à minha volta e não vejo a sombra, aquela que me pertenceria. Perdi a sombra. Sou um estrangeiro em casa, na rua, onde quer que vá.

sábado, 7 de dezembro de 2013

O inferno da abstracção

Frantisek Kupka - Abstracção (1931-35)

Esta historia protagonizada por um secretário de Estado, Bruno Maçães, revela, para além do enviesamento ideológico que é próprio do governo, uma outra coisa, aliás ligada, desde sempre, à ideologia. Trata-se de considerar a realidade social portuguesa de uma forma abstracta. Não se olha para as pessoas que somos, para a economia que temos - ou que não temos -, para as grandes clivagens sociais e como elas são um factor de atraso do país. Quando se elimina essa coisa obsoleta que são os homens concretos - neste caso, os portugueses reais - tudo se torna fácil e as mais infelizes utopias parecem realizáveis. Este pobre secretário de Estado, um rapaz até com alguns estudos, acha que Portugal não se deve entender com os outros países do sul da Europa para encontrar caminhos diferentes do actual, caminho este imposto pela Alemanha. No mundo das abstracções tudo é possível, inclusive imaginar que Portugal é a Alemanha e que, de um momento para o outro, seremos ainda mas eficientes que os alemães. Gente como esta, gente que vive presa em abstracções ideológicas, acredita mesmo que do actual processo de destruição da sociedade e de empobrecimento das pessoas nascerá uma sociedade liberal composta por agentes racionais que perseguem o seu bem através de contratos racionalmente estabelecidos. Não compreendem que a abstracção é o inferno e que é para lá que nos estão a encaminhar.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Política zen

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Durante muito tempo, julguei que António José Seguro tinha o perfil de um antigo sacristão de uma paróquia de província. Precipitação minha. Seguro não é um mero ajudante de sacristia, mas um capo inovador. O secretário-geral do PS inaugurou, em Portugal, uma nova forma de fazer política. Podemos chamar-lhe política zen. Seguro não age e quase não fala. Espera, silencioso e em quieta contemplação, que o poder venha até ele. O PS de Seguro não se compromete com a direita, pelo menos sem eleições, e muito menos se compromete com a esquerda. Se o leitor, porém, pensa que Seguro é equidistante tanto das actuais malfeitorias da direita como das divagações utópicas da esquerda, então está equivocado. Equidistante significaria que Seguro ainda estaria num determinado lugar político. Não está.

Ao optar por uma política zen, Seguro entregou-se à meditação transcendental, exercício silencioso que o conduziu à levitação. Seguro levita, paira acima do espaço onde o jogo político se desenrola, enquanto os portugueses sofrem os resultados das políticas da troika de credores, dos seus agentes governativos nacionais e do efeito conjugado de dezenas de anos de irresponsabilidade – para ser simpático – da troika nacional, PS, PSD e CDS. Por vezes, António José Seguro articula uns sons. Prestamos atenção e parecem palavras. Não são. São balbucios inócuos, talvez a repetição de um mantra, que ele usa para acalmar a mente, combater as paixões e tranquilizar o coração.


É assim, com um ar seráfico e translúcido, que António José Seguro espera que o poder suba até ele. Enquanto paira nos ares olhando com fastio a realidade nacional, sonha com os milhões de votos que lhe hão-de dar a maioria absoluta. Para quê? Aqui nem o silêncio nem a placidez de Seguro conseguem ocultar o programa que germina nas suas meditações. Quando o actual governo se derrotar a si mesmo, António José Seguro deixará o transe e entrará em acção. Substituirá, decidido e sem piedade, o pessoal do PSD/CDS por gente do PS e, com um ar compungido, continuará, sem um arrepio na consciência, a obra de destruição em curso. A essência da política zen é o compromisso com o não compromisso, para mais livremente obedecer a quem efectivamente manda no mundo e na Europa. Imagina quem? Resta saber se os portugueses serão compreensivos com a subtileza estratégica da política zen e estarão dispostos, outra vez, a entregar novo cheque em branco a mais um desbiografado que, disfarçado de monge, sonha ser rei.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Um caminho insuspeitado

José Gutiérrez Solana - Cantina dos pobres (1932-33)

SZ - Acima de tudo, a reflexão sobre os bens comuns, que estava na origem do pensamento de Marx. Hoje, a fronteira é ainda maior: desemprego, protecção da natureza, desigualdades sociais, manipulações genéticas. Não é por acaso que o Papa Francisco aborda essas questões cada vez mais frequentemente. Você sabe a quais conclusões a CIA chegou quando começou a estudar seriamente a América Latina?

Não, me diga.

SZ - Esqueçam Marx, disseram. Quem vai dar voz aos pobres é a Igreja. (Da entrevista a Slavoj Zizek)

Este extracto da entrevista do filósofo esloveno Slavoj Zizek, um filósofo que se define ideologicamente como comunista, permite salientar dois acontecimentos que, apesar da sua aparente distância original, poderão continuar a aproximar-se num mundo como aquele em que vivemos. Em primeiro lugar, talvez seja precipitado pensar que a derrota dos países comunistas tenha sido o fim do comunismo enquanto ideia reguladora da acção política. É provável que a queda do muro de Berlim tenha sido, também, uma libertação do próprio comunismo de um modelo burocrático, inimigo da liberdade dos indivíduos e de efectiva natureza totalitária.

Em segundo lugar, as preocupações que o actual Papa Francisco manifesta relativamente à vida social, económica e política não são novidade na Igreja Católica. Estavam já presentes em papas anteriores, inclusive no conservador João Paulo II e, muito claramente, em Bento XVI. Com a Igreja Católica está a passar-se algo de muito semelhante com aquilo que se passa com a ideia comunista. Também a Igreja se está a libertar da relação com o poder económico e político, uma relação de muito séculos, iniciada no final do Império Romano, voltando-se para os pobres, mas de uma forma que ultrapassa em muito um assistencialismo caritativo legitimador de uma ordem social iníqua.

Em terceiro lugar, o ateísmo e a irreligiosidade não são sequer dados constitutivos do ideal comunista. Poder-se-á mesmo dizer que Marx herda o ateísmo do pensamento burguês iluminista e, fascinado pelo triunfo da ciência moderna, trata de tornar "científico" e de cariz irreligioso aquilo - a ideia comunista - que quase sempre foi sustentado por um sentimento religioso.

Estes movimentos parecem abrir um caminho insuspeitado ainda há uns anos atrás. Esse caminho será o da confluência entre uma esquerda que se emancipou da tutela do comunismo burocrático e totalitário, mas que não se rendeu ao dinheiro e ao liberalismo, e uma Igreja Católica que está a interiorizar quanto o liberalismo, nesta sua versão maximalista, lhe é radicalmente adverso. Isto não significa que se prepare ou se deseje, com a cumplicidade dos católicos, o advento de sociedades comunistas, mas antes que se pode ter a esperança de ver crescer um movimento de defesa das comunidades humanas, que estão a ser destruídas por uma economia que se libertou de qualquer tutela. Não se trata de restaurar, em novos moldes e com outros cúmplices, a utopia da sociedade perfeita e sem classes, mas de reconstruir comunidades onde, em liberdade, os laços humanos possam resistir à voracidade dos mercados e ao desígnio de tornar o homem numa mercadoria, ainda por cima obsoleta.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Metamorfoses 5 - Os silêncios crescem neste jardim

Claude Monet - Gladíolos (1876)

5. Os silêncios crescem neste jardim

Os silêncios crescem neste jardim,
traçam alamedas de cinza e musgo,
o rumor de pétalas cobertas de outono.

Um pássaro espreita entre ramos,
espera um raio de sol,
a luz que o traga ao azul do céu.

Vultos, folhas caídas, um murmúrio...
Sento-me e oiço as tuas palavras,
sangue e sombra que se abrem para mim.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Um ministro levitante

Egon Schiele - Levitação (1915)

Parece que a prova de avaliação a que todos os professores contratados iriam ser submetidos só se aplica aos que têm menos de cinco anos de serviço. Este é mais um caso que manifesta o caos que se esconde na mente do actual incumbente do Ministério da Educação. Apesar de ter concordado com muito do que Nuno Crato escreveu e disse antes de ser ministro, mal foi conhecida a sua nomeação, e contrariamente a muitos professores, afirmei que iria ser uma das grandes desilusões do governo. Não me referia sequer à sua tendência para olhar para a realidade educacional através de pesados - e quase opacos - óculos ideológicos. Aquilo que me pareceu sempre muito problemático - como aconteceu já com muitos outros ministros da Educação - é o seu completo desconhecimento da realidade escolar, da relação de forças que existe dentro das escolas, da natureza das famílias, alunos e professores que ali se cruzam. Nuno Crato escrevia e dizia coisas acertadas, mas eram sempre coisa genéricas, coisas que, com algum bom senso, todos aceitamos. O seu mandato, para além da deriva liberal que visa destruir a escola pública, é marcado por decisões e contra-decisões, como parece ser o caso da célebre prova de avaliação, que mostram bem o quão ignorante o ministro é da realidade escolar. Como antes de ser ministro, também agora Nuno Crato levita sobre os universos concretos que são as escolas. Quando vier  o tempo da queda, quando a gravidade retomar os seus direitos sobre o corpo do ministro, o grande problema não será o seu trambolhão, mas os estragos, talvez irreparáveis nos próximos decénios, que os seus delírios levitantes terão feito no sistema educativo português.