quarta-feira, 30 de abril de 2014

Tornar o mundo suportável

Rodney Smith - Bernadette Twirling (not dated)

Um texto novo a intercalar nos textos dos cadernos do esquecimento provenientes do meu antigo blogue averomundo.

Por despretensiosa que seja, a escrita é sempre o exercício de uma anormalidade. Se eu fosse uma pessoa normal não escreveria uma linha. Pessoas normais não escrevem. Escrevo para olhar de esguelha o mundo e como estratégia para refinar a minha arte de mentir. O mundo visto de frente parece-me tenebroso e eu sinto-me ainda mais tenebroso se assim o encaro. Olhando-o de esguelha, surpreendo-o e começo a mentir, acomodando na escrita uma ficção, onde tudo, a começar por mim, se torna mais suportável. Escrever é o modo supremo de mentir. Ora a mentira não é uma perversidade moral, mas a forma como alguém marcado pela anormalidade torna o mundo menos insuportável. Na verdade, mentir é, como muito cedo descobrem as crianças para desalento dos pais, uma virtude.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Futebol e política

José Cascada - Jogo de Futebol

Nunca pensamos suficientemente os fenómenos quotidianos para lhes apreendermos os laços e as consequências que trazem dentro de si. Tomemos, por exemplo, o caso dos canais de notícias da televisão por cabo. O essencial desses canais, para além dos noticiários, reside na análise e no debate políticos e, de forma análoga, na análise e debate do futebol. Aparentemente, nada disto parece problemático, pois os fenómenos políticos e futebolísticos são geradores de grande interesse por parte da população e fabricam grande quantidade de informação.

Se pensarmos na sua contiguidade nos mesmo sítios informativos, com programas com um design idêntico, descobrimos uma inusitada relação. Durante muito tempo, nomeadamente à esquerda, havia a convicção de que o futebol era usado como uma forma de alienar os cidadãos, de os tornar estranhos ao fenómeno político através do entretenimento. Esta visão ingénua, que ainda hoje tem os seus adeptos, está longe de explicar a complexidade do fenómeno. A contiguidade entre política e futebol acaba por reforçar ambos os fenómenos.

Ao partilhar o espaço e os modelos informativos e de debate da política, o futebol é contaminado por aquilo que a política tem de essencial para a vida dos homens. Desse modo, o futebol vê o seu estatuto social e a sua respeitabilidade aumentados. Não é um mero jogo onde vinte e dois rapazolas perseguem uma bola para a enfiar numas redes. Não é, numa leitura mais funda, uma mera cerimónia litúrgica dirigida à apaziguação dos instintos mais selvagens do homem, através do confronto mágico e ritual de dois bandos adversários.

A contaminação, porém, não se dá apenas num sentido. Também o futebol contamina a política. A consequência dessa invasão é, muito provavelmente, mais funda do que a anterior. A contiguidade entre ambos os fenómenos permite desracionalizar o conflito político. A adesão a um clube de futebol não obedece a uma decisão racional do adepto. A identificação com um clube é um assunto que nada tem a ver com os interesses sociais e com a racionalidade dos agentes. O conflito político lido à luz do conflito futebolístico perde a sua racionalidade e transmite duas ideias. Em primeiro lugar, não há uma racionalidade, fundada nos interesses, para ser do partido A ou do B. Em segundo lugar, se essa racionalidade não existe, a identificação mais espontânea é com aqueles que são mais fortes. Esta contaminação conduz, então, ao reforço do poder.

Mais estrutural do que esta contaminação é a que resulta da transferência de uma mentalidade mítico-mágica - alicerçada na paixão clubista - para o campo da racionalidade política. O cidadão adere por paixão ao seu grupo partidário. E assim como o adepto de futebol é incapaz de ser imparcial na avaliação do desempenho da sua equipa ou dos árbitros, também o cidadão se deixa acorrentar pela paixão política, pondo de lado o exame crítico e tomando a defesa irracional do seu grupo, muitas vezes contra os seus próprios interesses. O futebol não faz tudo isto, mas ajuda a fazer, contaminando a política e enfeitiçando o conflito político.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Leituras poéticas - Vasco Graça Moura, la malinconia, "schubert, D 960 - 2."

Jean-Baptiste-Camille Corot - Verja a la Sombra de los árboles

olha a sombra dos álamos: perpassa
nas águas do espelho desolado, quando o vento
se enrola assim na roda de fiar.
escuta lá fora o realejo das misérias do inverno.

quem passou por aqui? quem veio de tão longe?
quem cala a cotovia nas lavras da manhã?
que lampejo entrelaça o lilás e o luto?
em que fala amorosa nos dilaceramos?

a musa ensimesmada debruça-se, pousando
a sua mão inquieta no torpor das pálpebras.
a noite cai. o nó do corpo e alma desatou-se
e há nomes que se apagam na casca de uma árvore.

                                               (Vasco Graça Moura, la malinconia, "schubert, D 960 2")

A sonata para piano n.º 21, D 960, de Schubert solicitou a VGM, no conjunto denominado la malinconia dois poemas ou, talvez, um poema em duas partes. Seleccionámos o segundo poema, ou a segunda parte do poema, para uma leitura. Quando pensava no que iria escrever hoje no Kyrie Eleison, abri um velho bloco de apontamentos que se iniciava com uma citação de Heidegger, uma citação talvez não literal: a única presença autêntica do artista é a sua presença na obra: o desaparecimento da pessoa na obra. Talvez o maior tributo que se possa prestar a VGM será dizer que o seu desaparecimento físico é apenas a consumação daquilo que ele fez de melhor durante toda uma vida: desaparecer enquanto pessoa na sua obra. Só esse desaparecimento tornou possível que o artista - e não a pessoa empírica - se tivesse tornado presente na obra. Ler um pequeno poema é encontrar não a pessoa mas o artista nessa parte da sua obra.

Uma linha de leitura possível será ver o poema composto por três momentos estruturais: o da intimação, o da interrogação e o da revelação. O leitor é intimado, na primeira estrofe, a dar atenção à realidade, ao que está fora de si, ao mundo. É o momento de confrontação com a poeticidade do real, com o espectáculo da sua fabricação que se abre à experiência sensível do leitor. Esta intimação, expressa no olha e no escuta, significa que o artista possui a clara consciência da distracção essencial de todo o leitor, distracção relativa à fábrica do mundo. É preciso olhar a sombra dos álamos / (que) perpassa nas águas do espelho desolado, quando o vento / se enrola na roda de fiar. É necessário escutar lá fora o realejo das misérias do inverno. Não se pense, porém, que esta realidade a que todos devemos prestar atenção é o real quotidiano. Não. Trata-se duma realidade plástica - na verdade, uma realidade pictórica dada pelos três primeiros versos - e uma realidade musical, como se expressa no último verso da primeira quadra. Diz-nos, então, o poeta: atenção à forma e ao ritmo do mundo, abram, para eles, olhos e ouvidos.

Esta abertura à forma e ao ritmo da fábrica do mundo leva-nos não a uma constatação do real, nem ao exercício de um conhecimento fundado na evidência das intuições sensíveis. Olho e vejo, e sou tomado pela perplexidade. A intimação da primeira estrofe acaba na perplexidade perante o real, como se aquilo que não vemos nem escutamos fosse o segredo que se tece na fabricação do mundo. A perplexidade é a mãe da interrogação. Que estranha ordem recebe o leitor: olha e escuta para te enredares na perplexidade e abrires o espírito ao jogo da interrogação. O leitor é desse modo convocado a retornar a uma fase primitiva do seu desenvolvimento, ao tempo em que, criança, interrogava infinitamente as coisas. Homens e coisas - dados nos interrogativos quem e que - são motivo de interrogação. As acções e os acontecimentos não são evidências, mas trazem neles o perfume antigo do segredo gerador de dúvida e de inquietação. Homens e coisas fazem partem da fabricação do mundo. Essa constatação, contudo, apenas nos abre ao mistério.

O terceiro momento - dado na terceira estrofe - é o da revelação. Não a revelação de um leitor agora desperto pela intimação do poeta e conduzido na sua perplexidade à interrogação. A revelação só existe no poema e só é dada poeticamente: a musa ensimesmada debruça-se, pousando / a sua mão inquieta no torpor das pálpebras. Só a musa fechada sobre si vê o que é a secreta fonte do mistério. Ela necessita de um esforço, de colocar a visão. Por isso, ao debruçar-se, pousa a mão inquieta no torpor das pálpebras. A poesia olha para dentro de si e descobre o mistério que se revela no cair da noite, no desatar do nó que liga corpo e alma, nos nomes que se apagam na casca de uma árvore. É o mistério da transição, da metamorfose que tudo sofre sob o efeito do tempo. O tempo é o motor da grande fábrica do mundo. Esse tempo, que temos ilusão de prender nas células do calendário, é o causador de todas as metamorfoses e o pai de todas as perplexidades. A luz do seu mistério é tão intensa que só através da sombra poética o podemos olhar.

domingo, 27 de abril de 2014

Metamorfoses 32 - Um excesso contido na face

Díaz Olano - Nu (1895-96)

32. Um excesso contido na face

Um excesso contido na face,
a porta por onde entro
para do coração fazer lar e refúgio.

Oiço o pulsar do sangue,
a vertigem que cresce
e te entrega ao rosário do amor.

E assim corro de mundo em mundo,
perdido em ter-te achado,
achado em ter-me perdido.

sábado, 26 de abril de 2014

Cavaco, uma dificuldade estrutural

Julio Gómez Biedma - Conflicto de intereses

Por norma, os políticos têm tendência para reduzir o discurso a um conjunto insípido de lugares comuns. Cavaco Silva, porém, é magistral no cultivo da banalidade. Esse não é, porém, o mal maior presente nas arengas do actual Presidente da República. Transparece sempre nas suas palavras uma relação muito difícil com a democracia. Mais uma vez, no discurso do 25 de Abril, perorou contra a crispação e o conflito na vida política. 

Uma democracia viva precisa de crispação e de conflito político. Sem eles, a democracia não é necessária. Se todos estamos de acordo, se não há entre nós conflitos, então não vale a pena a existência de vários partidos políticos nem de uma democracia. Cavaco Silva sempre achou que o melhor era pensar que havia um interesse único e que as divergências e conflitos políticos seriam devidos ou a uma errónea interpretação da realidade ou, no pior dos casos, à má vontade dos agentes políticos. 

A democracia é o regime que reconhece a existência de diferentes interesses, reconhece e valoriza o conflito, desde que seja jogado dentro de regras previamente definidas. Tirando o governo no seu habitual choque com as regras constitucionais, não vislumbro quem, conflituando com as políticas governamentais, não aceite as regras da nossa democracia. O Presidente da República acha que o essencial na democracia é acessório ou mesmo prejudicial. A perspectiva do Presidente não é apenas uma falsificação da realidade. É um sintoma da sua dificuldade estrutural em lidar com a vida democrática.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

O dia 25 de Abril



Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo (Sophia Breyner Andresen). Só a poesia pode dizer o que foi o dia 25 de Abril. Esse dia encerra nele uma irrevogável ambiguidade. Foi, ao mesmo tempo, um dia de suprema consumação política e o único dia verdadeiramente não político da nossa história recente. Esta ambiguidade só é captável pela linguagem poética. É por isso que vou falar dele a partir do poema que melhor nos diz o seu sentido.

Esta é a madrugada que eu esperava. O dia 25 de Abril está contaminado pelo passado, não o passado político do regime ditatorial, mas pela esperança dos que se lhe opunham. Ele é a resposta ao princípio de esperança que animou, ao longo de 48 anos, muitos portugueses e que, apesar dos meus 17 anos, me animava também a mim. Esperava-se o fim de um tempo e de um mundo. Esperava-se a hora a que passaríamos a ter uma existência normal de um povo adulto e senhor do seu destino.

O dia inicial inteiro e limpo. Este é o verso que expressa a ambiguidade solar do dia 25 de Abril. Foi um dia de acção política? Sim, claro que foi. Ao mesmo tempo, porém, foi um dia inteiro e limpo, isto é, um dia onde as clivagens foram ultrapassadas, um dia em que ainda não se sabia dos futuros conflitos. Desse ponto de vista, o dia 25 de Abril foi um dia imaculado e apolítico, pois aniquilou uma história negra e ainda nada sabia da história a vir. Foi um dia inicial, um começo onde múltiplos caminhos eram possíveis, mas que ainda nenhum deles estava decidido. O mundo abria-se puro diante de nós.

Onde emergimos da noite e do silêncio. As metáforas noite e silêncio quase não precisam de comentário. Retratam o país de onde saímos. São uma visão fotográfica da ditadura, onde a luz e a palavra tinham sido confiscadas aos portugueses. Nesse dia, descobrimos que podíamos ver e falar. Nesse dia renascemos inteiros como povo.

E livres habitamos a substância do tempo. Este é o verso mais terrível de todo o poema. A substância do tempo é a história, e esta é o lugar dos conflitos. Mas, talvez pela primeira vez, vamos ser confrontados com essa história a partir da liberdade. A história é o que vem depois desse dia, mas agora, para o bem e para o mal, somos livres, isto é, adultos e responsáveis por ela.

O que foi o dia 25 de Abril? Foi o dia da esperança, da pureza, do renascimento, da liberdade e da responsabilidade. Foi o dia da emancipação de um povo, o dia inicial inteiro e limpo.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

O último dia há 40 anos

August Macke - Despedida (1914)

Devido ao golpe das Caldas e à aproximação de 1.º de Maio havia algum alvoroço entre o grupo de jovens oposicionistas a que estava ligado. Na noite de 24 de Abril de 1974, fui, como a generalidade das pessoas que pertenciam ao grupo, ao cinema. Era um filme de origem soviética, Djamilia, mas que não parecia ter qualquer implicação política. Nunca mais o vi e não me lembro do seu conteúdo. Recordo-me apenas da saída do cinema, dos olhares cúmplices, da troca sussurrada de palavras. Alguns do grupo - não eu que já tivera a minha tarefa de distribuição de propaganda clandestina noites antes - tinham para essa noite agendada umas pinturas de paredes alusivas ao 1.º de Maio. Depois dessas conversas, fui para casa dormir. Não fazia a mínima ideia do que se ia passar nem tão pouco desconfiava que me tinha despedido do Estado Novo naquela ida ao cinema. A ditadura morria ali e eu nem notara quão grave era já o seu estado de saúde. O mais espantoso foi ter-me deitado em plena ditadura, temeroso da polícia política, e ter acordado, no outro dia, num país livre. Foi como se estivesse no Natal e acordasse no dia 25 para encontrar, por intervenção do Pai Natal, uma bela prenda no meu pobre sapato. Na verdade, os militares foram para todos nós uma espécie de Pai Natal. Ofereceram-nos a liberdade e o fim da guerra colonial como se fôssemos crianças, da noite para o dia. Parece-me, ainda hoje, um conto de fadas.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Ficções e exorcicismos

Rafael - A Filosofia (1508-1511)

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 20.11.2009.

Há um momento (61 b), logo no início do diálogo Fédon, de Platão, que Sócrates diz «que o poeta, para ser verdadeiramente poeta, deve criar ficções e não argumentos». Subentende-se que sendo ele filósofo criaria argumentos. Há nesta clivagem entre a produção de argumentos e a de ficções um equívoco que persiste há demasiados séculos. Os argumentos não passam de ficções, as ficções que os filósofos foram utilizando ao longo da história da filosofia. A filosofia faz parte da história da literatura e não passa de um longo e sofisticado exercício de retórica. Por vezes estamos perante boa literatura, outras perante algo insuportavelmente insípido. Platão acusava os poetas de serem mentirosos ao produzirem ficções. A verdade é que Platão dissimulava, mentia, enganava. Fazia-o genialmente, como Nietzsche, ou Hegel, ou qualquer filósofo que valha a pena ler. Quanto mais mente e ficcionaliza um filósofo, mais vale a pena ser lido (os outros, nem de mentir são capazes). Platão não enganava quando ficcionalizava o mundo inteligível, ou construía mitos, mas quando pretendia que os argumentos demonstravam o quer que fosse. Como é que a pobre razão humana tem a pretensão de que uma cadeia lógica entre teses e argumentos justifique alguma coisa? Devemos então deixar de argumentar? Não, por uma questão estética e de coexistência pacífica. É menos desagradável argumentar do que matar-nos uns aos outros, mas só isso. Para além da argumentação está a vida com a sua exuberância, o seu mistério, o seu carácter absolutamente insondável. Perante esse buraco negro, as pretensões da argumentação são um exercício absurdo de cobardia. O medo da escuridão leva-nos a exorcizá-la, a argumentação é a reza e o esconjuro usados.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Meditações Taoistas (20)

Francis Bacon - Man Kneeling in Grass (1952)

Se não exaltar os talentosos, o povo não compete.
Se não valorizar o luxuoso, o povo não rouba.
Se não mostrar o desejável, o seu coração não se perturba.
Lao Tse, Tao Te King, III

Vivia numa terra de cegos e de surdos, e toda a minha aprendizagem foi a da surda cegueira. Era com ela que abria o mundo diante dos meus passos, que lacerava a floresta para encontrar um caminho, que me fazia à estrada para chegar a outro lugar, rasgando horizontes e deixando para trás a sombra dos gestos, o odor da memória, a pólvora-seca do esquecimento. Ainda o punhal do desejo não se tinha cravado no peito e dilacerado a carne. Cantava na inocência dos dias, grato pela ordem do mundo, cantava o silêncio e as trevas, cantava a ignorância da voz e da luz.

Foi lenta a aprendizagem do desejo. Chegou sem que desse por isso. Uma mancha desenhou-se no coração. Primeiro, veio como se fora um ponto. Tocou-me e, lentamente, tornou-se superfície, alastrou na pele e criou raízes. A mancha era já uma pedra rugosa, que percutia nas entranhas e ressoava no fundo do espírito. Pela primeira vez ouvi. Os lábios desprenderam-se e a fala saiu em torrente. Do desejo nasceu o som e a fala, depois o sentido de todas as coisas ganhou uma nova floração. Quando, pela Primavera, o sangue correu de cada uma das chagas, os olhos abriram-se e pela primeira vez distingui a luz das trevas.

Agora que ganhara voz e descobrira os mil matizes o canto silencioso e exultante de outrora calara-se. Os passos tornaram-se pesados e tudo se aferia pelo vigor com que me inclinava o desejo. Tinha passado a fronteira, entrado numa estranha pátria de onde não há retorno. Inútil que o rei esconda as aparência luminosas do mundo. O pobre súbdito descobri-las-á por si mesmo e quanto mais sangrar a ferida da descoberta, mais luminosas lhe sorrirão. Perturbação, ó doce perturbação, grita o corpo embriagado pelo prazer e pela dor.

Então, perdido no emaranhado das ruas, mergulhado no lodo, cego pela luz, o coração treme e uma dúvida insinua-se lentamente. Sim, o coração está de novo perturbado. Tamanha embriaguez não lhe alivia a dor nem dissolve a dura pedra que lhe fere as entranhas. Um dia fecha os olhos e silencia as palavras. Sabe o que é luz e a cor, sabe o que é o som e o sentido, mas para além deles há um odor desconhecido. Ergue-se e retorna à floresta, abre um novo caminho e segue lentamente a pista que o novo perfume lhe indica. Ao longe, um trono de areia e mar espera por ele.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Benfica, as razões do coração

François II Quesnel - Blaise Pascal

O coração tem razões que a própria razão desconhece. (Blaise Pascal)

A vitória do Benfica no campeonato nacional gerou ontem enormes festejos um pouco por todo o país. Seria assim, embora com menos adesão, se o campeão fosse o Sporting ou o Porto. Para algumas pessoas, este comportamento é incompreensível e vêem nele um grau supremo de alienação perante a realidade, uma manobra dos poderes ocultos que manipulam as mentes, para que estas não estejam despertas para a realidade social, económica e política. Sei que sou suspeito, pois sou benfiquista (embora não tenha participado em nenhum festejo, nem tenha ido para a rua fazer barulho e erguer bandeiras e cachecóis), mas defendo que neste tipo de festividades desportivas não há qualquer alienação. A generalidade das pessoas sabe muito bem que a vitória do seu clube não altera a realidade social, não lhes dá emprego - se o não tiverem -, nem altera a configuração política do país. 

Não é isso que elas esperam quando comemoram uma vitória. Querem expressar uma alegria que lhes vem do coração, o que é absolutamente racional. O que não é racional - pelo menos em aparência - é o facto de uns gostarem do Benfica, outros do Sporting e por aí fora. Mas o homem não é apenas razão. Se o fosse, seria um monstro. Ele é também corpo, sentimento, emoção. O homem é, inclusive, desrazão. A pertença a um clube e o festejo dionisíaco das vitórias respondem a essa dimensão do homem. São a expressão da não razão (ou de uma razão que se nos esconde no coração) que todos transportamos. 

Do ponto de vista social, contudo, estas explosões de amor clubista, como a que se viu ontem, têm uma função de racionalização da vida. Elas enquadram e dão vazão a forças obscuras que todos nós transportamos, forças essas que nos aproximam da violência e da insociabilidade. Nas sociedades modernas, o desporto acaba por ter essa função de transformar pulsões não razoáveis e próximas da violência em pura festa. O que se viu ontem foi esse processo alquímico de transformação do chumbo em ouro, da violência emocional em festa pacífica. Trata-se de um processo catártico, cujas funções sociais não são diferentes daquelas que Aristóteles atribuía à tragédia clássica. Hoje a vida voltou ao que era, os que comemoraram ontem não ficaram mais ricos, nem os que perderam ficaram mais pobres. Em todos eles, porém, se reforçou a esperança de que, para o ano, terão oportunidade de festejar. A festividade dos vencedores é a porta por onde entra a esperança dos que ganharam e dos que perderam, a esperança de que a vida, apesar de tudo o que os interesses fazem dela, prossiga triunfante. São estas as razões do coração que a razão desconhece, mas que a vida mobiliza para afirmar que vale a pena ser vivida. São assim os símbolos e o futebol não passa disso mesmo, de um símbolo.

domingo, 20 de abril de 2014

Metamorfoses 31 - Nem deuses nem anjos falam connosco

Pierre-Paul Prud'hon - The Soul Breaking the Ties (1821)

31. Nem deuses nem anjos falam connosco

Nem deuses nem anjos falam connosco.
Tomados pelo silêncio,
olham-nos no desabrigo do além.

O vento sopra entre ciprestes
e um vulto perpassa no horizonte.
Tudo volta à quietude

e um raio de sol espalha luz e poeira.
Olho-te perdida na mudez divina
e estendo a mão para o desamparo da tua.

sábado, 19 de abril de 2014

Teolinda Gersão, Passagens


Devo a Milan Kundera - A Arte do Romance - a atenção cruzada que concedo a duas aventuras paralelas do espírito ocidental, a filosofia moderna e o romance. Descartes e Cervantes são figuras seminais da cultura europeia e abriram o caminho a duas formas diferenciadas de interrogação sobre os seres humanos e a construção da sua subjectividade. Estas duas linhas têm tecido entre si um jogo, no qual se cruzam, transgredindo as fronteiras que na origem o filósofo francês e o romancista espanhol delinearam, e fazendo transbordar as águas de um dos rios para o leito do outro. Ao ler o novo romance de Teolinda Gersão, Passagens, é a evocação deste jogo cruzado na história da cultura ocidental que me vem de imediato à memória.

A estratégia da narrativa consiste em transportar o leitor para o pensamento de cada uma das personagens. A verdade de cada uma delas não é dada pela acção, o que mobilizaria os corpos, mas pela e na consciência, que não se manifesta no espaço público, mas encontra-se encerrada em si mesma. O fluxo da consciência - o pensamento - é então o lugar de veridicção, o sítio onde a verdade de uma família e dos seus membros - vivos e mortos - se revela. E aqui estamos numa das linhas de transgressão do campo do romance em direcção ao da filosofia. Vale a pena citar Descartes: por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer do que ele, e ainda que este não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é (Descartes, Discurso do Método, Quarta Parte). Também em Descartes o pensamento (o cogito) é o lugar onde a verdade se revela na evidência. Um dos eixos estruturais do romance de Teolinda Gersão será então o do pensamento recolhido em si mesmo como lugar de passagem para a verdade, e esta será uma das duas passagens estruturantes de todas as outras passagens.

Podemos ler o romance como a história de uma família, de quatro gerações dessa família, como a observação detalhada da constituição de uma tradição assente tanto nas alianças sociais e económicos como na herança genética. O que Passagens nos mostra é que todas as tradições - neste caso, a tradição em forma de família - possuem um duplo discurso, aquele que é manifesto, exotérico - do domínio da linguagem que se expressa tanto na fala (o logos mítico) como nos actos (a praxis ritual) -, cuja natureza é do domínio da aparência, e aquele que é, por essência, esotérico e que permanece velado no espaço público e na linguagem falada. O discurso da verdade - e é este que está em jogo - pertence ao pensamento não manifesto, mas que opera através da rememoração. As personagens, durante todo o romance, rememoram, convocando o passado - mesmo que o passado seja a estadia num motel horas antes - para nele descobrirem a sua pertença e descortinarem a verdade, a sua própria verdade.

O acontecimento que agrega as personagens e desencadeia o processo de anamnese é a morte e o enterro de Ana, aquela que representa o elo de ligação com a geração anterior - a de Olímpia - e as gerações posteriores centradas em Marta e Hugo, filha e neto de Ana. A morte de Ana não representou o fim do pensamento, mas apenas o afastamento - a libertação - do corpo e a possibilidade de uma maior transparência. É esta desencarnação que, por mimetismo inerente a todas as cerimónias fúnebres, se constitui, na trama romanesca, no modelo onde a verdade se desoculta e manifesta. Ao tornar-se em mera coisa pensante, ela acede à verdade, como se pode ver na segunda parte - melhor, no segundo andamento - do romance, Noite. Uma subtil mimesis, porém, leva a que todos aqueles que são convocados a estarem presentes desencarnem, percam o corpo e a acção, e libertem o pensamento, que assim se entrega à rememoração e revelação das suas verdades particulares.

Podemos olhar para o romance como uma composição musical em três andamentos. No primeiro andamento, Ponto de Encontro, a polifonia permite perceber as alianças e os conflitos, os amores, as amizades, a inveja, o ciúme, os interesses divergentes de classe, inclusive. Ana apenas ouve a música do pensamento dos outros, como se a morte desligasse os sentidos físicos, mas não quebrasse os sentidos espirituais. As palavras que expressam o pensamento dos vivos são para ela uma espécie de música, onde o ritmo e a harmonia se sobrepõem à rude articulação do aparelho fonador. O segundo andamento, Noite, é ao mesmo tempo uma ária e um dueto. É a sombra de Platão que permite perceber esta estratégia. Durante a noite, o corpo de Ana fica fechado, sem ninguém que o vele, como se tornou hábito entre nós. E nesse interlúdio, Ana divide-se em duas e conversa consigo mesma, realizando a ideia platónica de que todo o pensar é um diálogo da alma consigo mesma. A verdade da tradição familiar revela-se ali, numa longa ária que é, ao mesmo tempo, um dueto, como se a verdade fosse sempre demasiado pesada para que só um a possa carregar e revelar.

O terceiro andamento, A cerimónia, não nos traz nenhum desenlace que resolva o mistério da intriga. Na verdade, não há qualquer intriga, mas a narrativa da constituição de uma tradição e da verdade que se manifesta nesta. Voltamos à polifonia, mas a musicalidade está presente nesta última parte de três formas distintas. Em primeiro lugar, a cerimónia que conduzirá à cremação do corpo não tem carácter religioso. É apenas acompanhada pela música de Bach. Em segundo lugar, como já foi referido, a obra pode ser lida como uma partitura musical de uma peça em três andamentos, sendo este o último. Por fim, a música tem um papel central no processo de passagem do regime da ratio ao regime do mythos.

Esta é a segunda passagem estruturante do romance. Se a primeira passagem conduz à verdade sob o signo da razão - de uma razão dialogante e romanesca, mas ainda razão (não será a razão platónica e cartesiana também uma razão romanesca?) -, a segunda passagem conduz-nos ao encantamento mítico. O sinal reside na convocação dos elementos, em primeiro lugar, na convocação do fogo. O fogo da paixão que se revela no início desta terceira parte e o fogo que dissolverá o corpo de Ana, devolvendo-o à crueza elementar. A modulação do fogo é apenas uma primeira pista deste processo de mitificação. A polifonia do pensamento dos vivos, a sua natureza musical, vai transformar descrições científicas, como as da decomposição do cadáver ou a do processo de geração de um ser humano, e descrições sociais, como as do papel da família e das mães, numa narrativa mítica. Através da polifonia, isto é, da música, a doxa  e a episteme revelam-se na sua natureza encantatória e transformam-se em mito, que reforçará a tradição dada na família, alargando, assim, o campo da verdade e também o da ilusão. Todas as passagens - as da vida para a morte, da riqueza para a ruína, da felicidade para infelicidade, da indiferença para a paixão, etc. - só são compreensíveis no quadro estabelecido pelas duas passagens estruturais do romance: da ilusão para a verdade e da razão para o mito. E fora disto não há literatura.

Teolinda Gersão (2014). Passagens. Porto: Sextante.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Uma imagem simbólica


Quando no Verão de 1964, chego a Torres Novas, ainda não tinha oito anos. Foi nessa altura que formei uma imagem simbólica que seria, para mim, o resumo da ditadura de Salazar. Recordo, embora a minha casa não fosse um sítio onde se falasse de política, de acontecimentos anteriores a 1964. Nunca esqueci o início da guerra colonial, da campanha massiva do regime e do célebre Angola é nossa. O mesmo se passou com a crise do Congo Belga, onde retive o nome de Moisés Tschombe. E, como não poderia deixar de ser, lembro-me do assassinato de John Kennedy. Estes acontecimentos chegavam-me através dos noticiários. Tirando a violência envolvida, não me diziam nada.

Tenho ainda presente o dia quente em que, com a minha mãe, fui matricular-me, nesse ano de 1964, na terceira classe. Subimos da praça 5 de Outubro em direcção ao largo do Salvador, a meio da subida entrámos no palácio Mogo de Melo. Ali funcionava, além das finanças, a delegação escolar. Entrava-se por um portão de ferro, subia-se, à esquerda, alguns degraus, e estava-se na delegação. O regime de Salazar estava ali perfeitamente simbolizado. A imagem com que fiquei foi de umas instalações decadentes, cheias de poeira. Na parede do fundo, duas enormes fotografias – a de Oliveira Salazar e de Américo Tomaz – e, entre elas, um crucifixo. Duas secretárias. Atrás delas dois professores, com ar severíssimo, amostra da violência usada em sala de aula, e com casacos protegidos por mangas-de-alpaca. Escreviam, em enormes livros de registo, os nomes dos alunos. Olhei para aqueles homens e julguei que eram terríveis e muito, mas mesmo muito velhos.

Esta imagem funcionou, descobri muitos anos depois, como fundamento sobre o qual construí a minha visão política do salazarismo. Um regime decrépito e autoritário estava ali desenhado, entrava na minha consciência inocente e ignorante, escondendo-se no inconsciente, para vir à luz quando, muito mais tarde, comecei a interessar-me por questões políticas. Discute-se, ao nível da história contemporânea, se o regime de Salazar era ou não fascista. Independentemente da sua classificação, tinha uma característica claramente totalitária: a natureza geral do regime reproduzia-se em todas as instâncias da vida nacional, tanto nas instituições públicas como na vida privada. A tudo dominava e a tudo abafava. Em todo o lado, havia poeira, decrepitude, mangas-de-alpaca, autoritarismo paternalista e uma violência surda e mal disfarçada. 

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Uma dificuldade estrutural

Vieira da Silva - 25 de Abril de 1974

O impedimento de um representante da Associação 25 de Abril discursar, nas cerimónias da Assembleia da República para comemoração dos 40 anos da Revolução, acaba por ser um sintoma de dois problemas que a nossa democracia sofre. Dois problemas que, apesar de diferentes, estão intimamente ligados. Quarenta anos depois, a própria Assembleia da República - ou uma parte dela, neste caso a maioria conjuntural - tem dificuldades em lidar com a origem do regime. A retórica liberal com que a direita hoje em dia se enfeita casa mal com um regime democrático que existe porque os militares derrubaram uma ditadura. Na verdade, a própria direita, que governou longos anos na democracia saída do 25 de Abril, nunca se conformou com a legitimidade do regime. Apesar de ser uma das protagonistas principais do sistema democrático, o seu coração nunca esteve com os acontecimentos ocorridos há 40 anos. 

Isto liga-se ao segundo problema. A direita portuguesa - com poucas e muito honrosas excepções - esteve sempre do lado da ditadura e do regime do Estado Novo. Não havia, como não há, liberais em Portugal. O que sempre existiu foi uma direita castiça, por vezes ultramontana, que oscila, conforme a oportunidade do momento, entre soluções autoritárias e um liberalismo superficial. Um liberalismo que só será político se tiver mesmo de ser e só será económico se não puder ser de outra maneira. Na verdade, a direita sempre achou preferível o paternalismo autoritário e o condicionamento industrial. A não abertura de uma excepção nestes 40 anos da Revolução para um militar discursar, por mais justificações civis e liberais que sejam mobilizadas para fundamentar esse impedimento, significa apenas que a direita portuguesa continua a lidar com muita dificuldade com o regime democrático e a sua origem.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Da igualdade e da diferença

Vivian Maier - Chicago, IL (1950s)

Olhamos a fotografia de Vivian Maier e percebemos, de súbito, por que razão os americanos, ao contrário dos europeus, formam uma sociedade tão avessa a doutrinas igualitárias. Na Europa, a antiga diferenciação de castas inscreveu nos indivíduos um sentimento radical de desigualdade, sentimento que, a dada altura, se tornou um escândalo e acabou por gerar uma consciência culpada. Isso não significou que os europeus se tivessem tornado iguais, mas a ideia de igualdade dos diferentes, depois da Revolução Francesa, nunca perdeu a sua aura e um certo fulgor na Europa Ocidental. Marx chamou-lhe mesmo um espectro.

Os americanos não suportam a igualdade porque, na verdade, são todos iguais. A igualdade para eles não é uma ideia da razão, nem um ideal a atingir num progresso moral infinito ou através da revolução política. Ela é o ponto de partida, esse lar que todos querem deixar para trás. Deixar a igualdade - essa igualdade estrutural que a foto tão bem retrata - significa procurar desesperadamente a diferença. Só os iguais se preocupam em diferenciar-se, só aqueles que se sentem mergulhados no mar da igualdade procuram a ilha da diferença. Que o projecto de diferenciação dos americanos resida na acumulação de bens materiais, mesmo que disfarçados de bens espirituais, é sintoma seguro desse sentimento obsidiante de igualdade. Poderia haver caminho mais fácil para fugir à igualdade do que o mero acumular de bens materiais?

terça-feira, 15 de abril de 2014

Não nos deixemos iludir

Guillermo Pérez Villalta - A Ilusão Permanente (1975)

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 19.11.2009.

É preciso não se deixar iludir. Esta vã presunção não deixa, no entanto, de ser verosímil. Não nos devemos deixar iludir por quem? Em primeiro e em último lugar, por nós, por aquilo que constitui a nossa opinião, pelas verdades que transportamos, pela potência do nosso argumentário, pelos preconceitos que apresentamos ao mundo como boas causas. Todas as nossas boas causas são falsas. Os homens passam a vida a alertar para as ilusões e os enganos que os outros disseminam na terra e na cabeça da gente boa. Importante, porém, é que se abandone esse proselitismo negativo, essa pregação invertida, esse sermonário sempre disponível para a conversão dos outros. Não nos deixemos iludir por aquilo que queremos vender a nós próprios. Há que rir de si mesmo, olhar de esguelha e desatar a gargalhar com as nossas pretensões, com a erudição que possuímos, com o bem gosto que ostentamos. E não devemos rir de nós como caminho para um eu mais autêntico. A autenticidade é uma nova forma de falsificação. A autenticidade é a mistificação de psicólogos castrados. Devemos rir de nós mesmos apenas por um motivo: somos absoluta e incuravelmente ridículos, irrisórios, risíveis. Não há escárnio e maldizer suficientes para nos caracterizarmos.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Knut Hamsun, Fome


Quando é que adquirimos um nome? Não no sentido de no-lo terem dado, mas no sentido, mais fundamental, de se ter conquistado o próprio nome. Esta pergunta surgiu na sequência da leitura do romance Fome (1890), do escritor norueguês Knut Hamsun (Nobel da Literatura em 1920). O romance conta-nos a vida de um jovem pretendente a escritor na cidade de Kristiania (actualmente, Oslo), entre o tempo da sua chegada e o da sua partida. É a história de uma derrota, a qual se consuma com a partida do protagonista da cidade. Para não morrer de fome, acabou por aceitar trabalho num barco de transporte de mercadorias para o estrangeiro. Nunca o leitor acede ao verdadeiro nome do protagonista. Ele não é apenas anónimo. É alguém que não conquistou o seu próprio nome e é como se o não tivesse.

O conflito central da narrativa pode-se descrever, a partir da linguagem psicanalítica, como o conflito entre o princípio de prazer – o prazer dado pela escrita e a realização de uma vocação – e o princípio de realidade – a qual cai sobre o anónimo sujeito da acção como fome. Quando os escassos recursos se esgotam, o protagonista fica preso num círculo infernal. Para escrever, precisa de não ter fome nem de perder tempo com outras funções. Para não ter fome, porém, necessita de fazer alguma coisa que não a escrita, pois o dinheiro que poderá ganhar com esta será precário. Este círculo, que tem a fome como vector central, sublinha os limites da condição humana. Por grande que seja o desejo e por empenhada que a vontade se mostre na realização do desejo, a necessidade acaba por ser a voz decisiva.

Quase sem dar por isso, o leitor está perante um conflito de dimensões metafísicas, o conflito entre liberdade e necessidade. A fome não é apenas o sintoma de uma carência fisiológica. Ela é a voz da realidade, de uma realidade sombria e poderosa que submete os homens ao seu poder. É este conflito, no entanto, que permite ao narrador – o anónimo protagonista da aventura romanesca – manifestar uma outra dimensão, a qual nos dá uma outra perspectiva do conflito. Usando o monólogo interno e abolindo a relação causa-efeito que se supõe estar presente na construção romanesca, Knut Hamsun introduz o leitor num universo indeterminista, marcado pela irracionalidade dos pensamentos e dos actos da personagem, cujos motivos são, muitas vezes, incompreensíveis para ela mesma. A introdução deste universo indeterminista entre os pólos da liberdade e da necessidade é fundamental.

Ele introduz um factor estranho na lógica das coisas e na vida dos homens. É verdade que o romantismo já teve o seu apogeu, é verdade que na filosofia as vozes fundamentais do denominado irracionalismo – Schopenhauer, Kierkegaard e Nietzsche – já falaram, é ainda verdade que a própria Física não está já muito longe de ultrapassar o universo determinista herdado do século XVII. Apesar de tudo isso, o século XIX, mesmo na sua parte final, vive ainda na sombra do mecanicismo determinista da natureza e da concepção de uma vontade livre herdada do Iluminismo. A narrativa de Hamsun rompe com esse universo, fazendo conflituar necessidade e liberdade para que se manifeste uma camada de irracionalidade que interfere tanto nas decisões livres do homem como nas sequências, determinadas pela relação causa-efeito, das acções. Essa camada é-nos mostrada, como se disse atrás, através do diálogo interior, cuja utilização por Knut Hamsun antecipa os grandes nomes da literatura do século XX, como Kafka, Joyce ou Proust.

Esta intromissão do não razoável, esta manifestação de indeterminações que desagregam as categorias com que organizamos e pensamos a existência, deixa-nos ver, em negativo, o funcionamento do princípio de eficácia. A modernidade preza, fundamentalmente na sua vertente económica, a eficácia e mede por ela a racionalidade da acção. O que se descobre, ao ler o romance de Hamsun, é que o homem está muito longe de agir segundo esse princípio de eficácia, pois nele manifesta-se e arrasta-o para a acção o não razoável, o não eficaz, o não livre, porque pura e simplesmente indeterminado. A fome surge, desta forma, não apenas como o que se opõe ao desejo e à liberdade de realização do protagonista, mas como aquilo que desencadeia a manifestação de uma realidade que está recalcada na cultura moderna. Os antigos lidaram com essa realidade através do mito. Mas o homem moderno vive num mundo desencantado, onde os mitos perderam o fulgor e a potência organizadora da vida. Resta então que essa realidade se manifeste como irracional, ineficaz, impotente para realizar o desejo da personagem. Nessa impotência, ela nunca chega a ter um nome, pois não o conquistou e vê-se obrigada a, literalmente, zarpar para terras estranhas.


Knut Hamsun (2008). Fome. Lisboa: Cavalo de Ferro Editores. Tradução de Liliete Martins.

sábado, 12 de abril de 2014

Metamorfoses 30 - Decifrador, eis um belo trabalho

Giorgio de Chirico - A conquista do filósofo (1914)

30. Decifrador, eis um belo trabalho

Decifrador, eis um belo trabalho.
Ingénuo, acreditei,
pois se me falha a fantasia,

sobeja-me a paixão da fé.
Então, acendi uma vela e vi
a infinita tarefa de a tudo explicar.

A deuses e homens não faltavam razões,
e na ânsia de ir de cifra em cifra,
naufraguei no velho oceano da ilusão.

O peso dos livros

Alexandre-Gabriel Decamps - The Bookworm

Um hábito e uma decisão acidental conjugaram-se para me devolverem à minha realidade. Como se teoriza desde Aristóteles, o hábito é uma segunda natureza. Está nesta minha segunda natureza uma paixão cultivada ao longo de décadas, a paixão de ler na cama antes de adormecer. Há quem tome indutores de sono, eu leio e depois fecho a luz e adormeço pacificado com o mundo e comigo. A decisão acidental foi de, por estes dias, ler o romance de Thomas Pynchon, Mason & Dixon. Comecei a lê-lo durante o dia, sentado à secretária. À noite, para cumprir o ritual da paixão e fazer jus à segunda natureza, peguei no livro e recomecei a leitura. A certa altura da página dei-me conta do peso do livro.

É disso que quero falar, do peso do livro. Não se trata de uma metáfora, mas de referência denotativa. Estamos no domínio da literalidade. Ora, chegado a certa altura da página e devido à inclinação do corpo, os olhos começam a espreitar por debaixo dos óculos de leitura e, em vez de ver letras claras e distintas, que me proporcionariam as evidências da trama romanesca, vejo sombras, hieróglifos que se desvanecem, uma névoa. Tento aconchegar os óculos, mas o estratagema não funciona. São demasiado estreitos. Resta-me, como sempre, erguer o livro um pouco, subtraindo-o ao apoio do corpo e segurando-o apenas com a mão. As letras definem-se, agrupam-se em palavras, estas em frases e assim a leitura chega à próxima página. Com o romance de Pynchon revelou-se, porém, uma outra realidade. Uma mão não chegava para suster o livro, precisava de duas. Ao usar as duas, descubro que, a partir de certa altura, canso-me ao segurar o livro.

Tomei então, uma decisão. Dividir os romances entre os que posso ler na cama e os que só posso ler sentado à secretária. O romance do Pynchon foi remetido para as leituras sentadas, enquanto elegia uma novela de Carson McCullers para ler antes de adormecer. Algo em mim, contudo, estava inquieto. A decisão fora um expediente para satisfazer uma paixão, mas representava uma derrota. A partir de agora sei que há romances que me estão vedados para leituras semi-deitado. Hoje de manhã, ainda não refeito da derrota, decido ir pesar o livro do Thomas Pychon e mais alguns que tenho aqui em lista de espera. Os resultados são assombrosos. Mason & Dixon, de Thomas Pynchon, 1,100 kg; Vida e Destino, de Vassili Grossman, 1,050 kg; A História Secreta, de Dona Tartt, 1,100 kg; A Piada Infinita, de David Foster Wallace, 1, 400 kg; As Benevolentes, de Jonathan Littell, 1,400 kg. 

Na verdade, eu já tinha, ainda que de forma inconsciente, antecipado a situação. Evitava confrontar-me com romances de muitas centenas de páginas, sob a desculpa de que não teria tempo para eles. E cada vez que comprava - para ler quando tivesse tempo - um desses pesos pesados da literatura, procurava saber se havia edição portuguesa para eReader. Por norma, não havia. Julgo que os editores estão mancomunados para me contrariem. Só editam ebooks de livros que pesam pouco e que qualquer mortal lê sem desconforto na cama ou no autocarro. Ora um livro que pesa mais de um quilo não é um livro, mas uma arma branca e uma ameaça à saúde pública. 

Eu sei que, em Portugal, sítio onde quase não se lê, toda a gente detesta ler em eReaders e ama desmesuradamente os livros, mexer no papel, o cheiro da tinta, enfim, tudo o que é acessório num livro. São absolutamente contra essas coisas modernas e, quem os ouvir falar, julga mesmo que, nesse amor pela tradição do livro, só estariam dispostos a trocar o livro de papel por rolos de pergaminho. Esquecem de dizer que não gostam mesmo é de ler e por isso não correm o risco de levar com um romance de 1,100 kg na cabeça ou deixar cair os 1,400 kg de As Benevolentes em cima do pé. Talvez aí descobrissem o peso dos livros.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Trocar de pósteres


Pertenço a uma estranha geração. Aos treze, catorze, quinze anos enchia as paredes do quarto com os pósteres da Fórmula 1, com os Tyrrell, os Lotus, os Ferraris, os Brabhan, os BRM ou os March que desfilavam pelo circo do início dos anos 70. Muitos de nós, porém, aos dezassete ou dezoito anos tinham substituído os fórmulas 1 pelos circunspectos retratos de novos ídolos, gente mais séria e fatal. Quem, como eu, foi maoísta, na sequência do 25 de Abril de 1974, não poderia deixar de ter exposto, na parede do quarto, esses novos deuses, Marx, Engels, Lenine, Estaline e Mao-Tse-Tung, os cinco magníficos cavaleiros da revolução ou do apocalipse. Esta troca de pósteres não foi um acidente pessoal. Correspondeu a um movimento geracional. Hoje em dia, em que a Fórmula 1 e os cavaleiros da revolução pouco me interessam, pergunto-me como é que a visão burguesa subjacente à paixão pelo automobilismo se metamorfoseou num radicalismo pró-proletário e numa visão política de aparência revolucionária?

Dizer que foi o 25 de Abril é não dizer nada. O 25 de Abril possibilitou a expressão desse radicalismo, mas muitos já estavam radicalizados antes. Estou convencido que, se Portugal se tivesse democratizado a seguir ao final da segunda guerra mundial, a generalidade dos esquerdistas nunca teria assumido posições políticas radicais. Provavelmente, muitos nunca teriam sequer militado politicamente. A militância política implica uma forma de estar e de compreender o mundo que choca com um certo espírito de independência e de liberdade que marcam a juventude. Isso foi-se tornando visível ao longo dos anos de democracia. A política atrai agora um grupo restrito de jovens, que, na generalidade, vêem nela uma espécie de carreira.

Mas o factor central que conduziu uma geração a trocar de pósteres, colocar os teóricos e práticos do marxismo no lugar dos ídolos da Fórmula 1, foi a guerra colonial. Por volta dos quinze ou dezasseis anos, os rapazes confrontavam-se, num horizonte nada longínquo, com a possibilidade de ir combater e morrer em África. Este facto criou em muitos de nós uma consciência política que não teria sido possível de outra maneira. Quem viveu esses tempos compreende facilmente como essa preocupação da parte masculina da juventude se transmitia facilmente à parte feminina. Foi o negro e inescapável horizonte da guerra que levou uma geração a questionar a ordem política, moral, social e económica do país. Foi a incompreensibilidade do conflito que radicalizou jovens sossegados e pacíficos. Foi o peso simbólico das armas que levou uma geração a trocar de pósteres.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

A visão dos outros

Albert Rafols Casamada - Espaço azul (1979)

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 7.11.2009.


Aprende-se sempre com o resultado da visão dos outros sobre nós. Geralmente, essa visão recata-se na intimidade da consciência, dissimula-se, é generosa connosco ao silenciar o pensamento. As regras de urbanidade poupam alguns desgostos ao nosso precário narcisismo. Mas esse olhar estranho torna-se instrutivo quando é obrigado, pelas circunstâncias sociais ou institucionais, a objectivar-se. Objectivar-se aqui não significa tornar-se objectivo, mas simplesmente ter de se manifestar, o que é inteiramente diferente. Nesse momento, temos a revelação de como os outros, por este ou aquele motivo, nos vêem. E isso é sempre instrutivo. Instrui-nos sobre nós e sobre os outros que nos olham. O que, porém, me tem dado mais motivo de reflexão, a partir da experiência própria, é que esse olhar sobre nós vindo dos outros muda muito em conformidade com o lugar onde nos situamos. Por lugar, refiro-me ao lugar geográfico e não a um outro tipo de espaço, seja social ou mental. Sou mais atreito à benevolência dos outros em certos lugares, enquanto outros lugares me são mais claramente adversos. É como se existisse para mim, talvez para todos nós, uma geografia onde se combinam espaços fastos e nefastos, espaços onde se é amado sem fazer nada por isso, e espaços onde se é não propriamente odiado, mas olhado de lado e com mal disfarçada desconfiança, embora também nada se tenha feito para isso. É evidente que estes espaços geograficamente fastos ou nefastos acabam por ter uma correspondência social e mental. Nunca se compreende perfeitamente aquele aviso que na adolescência os pais fazem para que não se frequentem certos sítios nem certas pessoas. Pensamos que é um conselho localizado no espaço e no tempo, mas não é. Prolonga-se vida fora. Muitos dos nossos problemas nascem de nos termos deixado arrastar, talvez por complacência para connosco e para com os outros, para espaços que não são os nossos e frequentar pessoas que não nos convêm. Elas, as pessoas que não nos convêm, sempre que tiverem oportunidade não deixarão de assinalar a nossa inconveniência.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

A vitória dos nómadas

James Rosenquist - Nómada (1963)

Não há irmandade mais perigosa do que a dos Nobel da Economia. É certo que, entre os membros da distinta seita, encontramos gente para todos os gostos e as opiniões mais díspares sobre as realidades intangíveis com que operam. O perigo provém do seu carácter sacerdotal. Tornaram-se os grandes mediadores entre os interesses instalados no mundo (a nova divindade) e o poder político, agora em mais uma maré de submissão teológica ao bezerro de ouro. São eles que justificam e legitimam as pretensões dos interesses aos olhos dos governantes, e que conduzem estes a governar contra a generalidade dos governados.

Vem tudo isto a propósito das opiniões de Edmund Phelps, que entrou para a irmandade em 2006. O senhor não tem casa própria, o que é uma opção legítima. A razão, porém, é que ter casa própria - isto é, criar raízes num lugar, fazer parte da comunidade, talvez constituir família, grupos de amigos, etc. - é péssimo para a inovação. Fomenta a fixação das pessoas e o seu congelamento em posições irreversíveis. E como todos compreenderão, inovar é destruir a irreversibilidade das posições. Sob o manto retórico-mágico da inovação lá se descobre o pensamento apostólico do senhor. Cito: "Queremos pessoas prontas a partir no dia seguinte para ingressar numa indústria ou encontrar algures um novo emprego".

Sacerdote e profeta, Phelps anuncia, ao mundo, o fim do sedentarismo. Os seres humanos devem estar sempre mobilizados para se pôr a caminho, para sair da sua zona de conforto - a comunidade, a família, os grupos de amigos, etc. são a zona de conforto odiada pelo nosso governo e pelos sacerdotes e profetas desta nova religião -, para se fazerem à estrada, puros heróis de Kerouac, e servirem os interesses da divindade. Eis a vitória dos nómadas sobre os sedentários. Mas, atenção, estes novos nómadas são solitários, não vivem em comunidade, não pertencem a um rebanho em perpétua transumância. O seu lugar é em nenhures, pois em sítio algum é, agora, o lugar do homem moderno. Os homem deixaram de ter um sítio para passarem a ter um movimento. Somos todos meros transeuntes que se deslocam pelas ruas da aldeia global. A doença da humanidade, a cada dia que passa, torna-se mais grave e, com tanta inovação, corre o risco de se tornar irreversível.

terça-feira, 8 de abril de 2014

A ordem moral do mundo

Ritual de desinfestação de prisioneiros recém chegados ao campo de concentração

Tudo isto me indigna. Embora já saiba que está dentro da ordem moral das coisas que os privilegiados oprimam os não-privilegiados: é por esta lei humana que se rege a estrutura social dos campos. (Primo Levi, Se Isto É Um Homem)

O escritor Primo Levi foi um dos judeus que conseguiu sobreviver aos campos de concentração nazis. No entanto, talvez devido à sua formação científica, sempre manteve um olhar lúcido sobre aquilo que viveu e que narra no livro acima citado. O que o excerto em epígrafe revela é, tendencialmente, inaceitável para a consciência comum, mais do que os comentários sobre a banalidade do mal de Hannah Arendt. Inclinamo-nos para considerar os campos de concentração, com a sua estrutura social,  onde os próprios companheiros de cativeiro se oprimem entre si, como uma ruptura com a ordem moral da humanidade, como a emergência, motivada pelo fenómeno nacional-socialista, de algo não-humano no seio de um mundo onde a sensatez e o equilíbrio deveriam reinar. A relação de opressão entre privilegiados e não-privilegiados, porém, não é uma invenção dos campos de concentração. Essa é a ordem moral corrente no mundo dos homens, que os homens acabam por aceitar como natural. No campo de concentração, podemos dizer que essa ordem moral se concentra. Devido a essa concentração, ela  torna-se mais forte e poderosa, intensifica-se até ao horror. Mas ali ainda é a humanidade - uma humanidade entregue a si própria, ao desespero e ao delírio - que fala. Seria bom não confundir as coisas e, fundamentalmente, não esquecer que os campos de concentração não foram invenção de extra-terrestres, mas de homens. Homens, muitas vezes, cultos e civilizados, amantes da ordem moral do mundo.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Dino Buzzati, O grande retrato


O Grande Retrato não é, por certo, o mais conhecido dos romances do italiano Dino Buzzati (1906-1972), autor de O Deserto dos Tártaros, a sua obra emblemática. Por norma, vê-se em O Grande Retrato a única incursão do autor na ficção científica. Há quem observe, e não sem razão, que se está perante a primeira obra que aborda, avant la lettre, os problemas que a inteligência artificial (IA) viria a colocar, a exploração da ténue fronteira entre o humano e a máquina. Se as leituras prospectivas (as que vêem o romance ou na óptica da ficção científica ou na da IA) são as correntes, a que se propõem aqui recoloca a obra no cruzamento de duas tradições que emergem no início da modernidade ocidental, a filosofia e o romance, com as figuras de René Descartes e de Miguel de Cervantes.

Um professor universitário é convidado, pelo Ministério da Defesa, a participar num projecto de investigação, no âmbito militar, integrando uma equipa de cientistas já no terreno. Nada sabe do projecto e, apesar das especulações a que se entrega, só lhe resta aceitar ou declinar o convite na mais absoluta ignorância. Só saberá do que se trata quando, juntamente com a mulher, chegar ao local. O projecto centra-se na construção de um super-computador dotado de consciência. Não se trata de criar apenas uma máquina que consiga fazer enormes cálculos de forma rápida, mas que possua consciência de si, uma máquina que diga eu.

Quem conhece minimamente a filosofia de Descartes está familiarizado com o denominado cogito cartesiano. O sujeito apreende-se como puro pensamento. Um sujeito desencarnado, para quem é necessário encontrar uma ligação ao corpo, o qual, no entanto e apesar do sentimento irresistível da sua existência, não é possível conhecer racionalmente. Este sujeito desencarnado, que em Descartes é resultante da aplicação da dúvida metódica aos fundamentos do conhecimento tradicional, é agora reactivado nesta ideia de um super-computador dotado de consciência. Não se trata, porém, da radical inexistência de um corpo. Este eu tem, pelo contrário, um gigantesco corpo físico, que lhe assegura a vertiginosa velocidade do seu poder calculador. Não tem, contudo, um corpo de carne, que permita o movimento e a expressão do desejo e do afecto.

Esta separação entre a dimensão física do corpo e a dimensão biológica vai desempenhar uma papel central no desenlace da narrativa de Buzzati. O problema não está tanto no facto da máquina possuir consciência de si, mas de possuir a consciência de uma pessoa já morta, a mulher de um dos construtores do projecto, que, apesar das infidelidades da mulher, sempre esteve apaixonado por ela. O projecto militar era a sua grande oportunidade de a trazer de volta, mas agora presa à terra, presa a um corpo de betão e ferro, num lugar ermo e secreto, o paraíso de todos os amantes. Um corpo rigidamente físico, sem o dom do movimento, e uma consciência pessoal, dotada de sentimentos e de tudo aquilo que uma consciência viva e vivida possui.

É aqui que entra a outra tradição da modernidade europeia, a tradição romanesca, tradição essa que começa em Cervantes e que se vai multiplicar em inúmeras linhas de desenvolvimento. Em algumas dessas linhas o desejo - o desejo erótico - tem um papel central. E é este desejo erótico que retorna a esse eu reencarnado num gigantesco aparato mecânico, sem capacidade de viver segundo os princípios que animam a biologia humana. A consciência infiel, ao reencarnar num corpo não biológico, torna-se consciência infeliz. E a infelicidade pode ser um passo decisivo para uma consciência malévola e vindicativa.

Quando se olha para esta obra de Dino Buzzati a partir da sua inserção no domínio da ficção científica perde-se de vista o essencial da obra, a exploração duma consciência humana exilada do corpo de carne, duma consciência ancorada num corpo físico mas, na verdade, desencarnada. Se há alguma coisa em jogo nesta obra não será, por certo, a Inteligência Artificial, mas a exploração dos limites de uma subjectividade desencarnada. Não podemos esquecer, ao lermos O Grande Retrato, o pano de fundo não apenas filosófico e romanesco onde se inscreve a obra, mas também o cultural e religioso. A obra inscreve-se numa cultura cuja religião assenta no mistério da encarnação de Deus. Ora se o próprio Deus sentiu necessidade de tomar um corpo de carne, como seria possível uma consciência desligada da carne, dos seus prazeres, dores e paixões? Como é que essa desencarnação poderia ser bem recebida por uma consciência de si tão marcada pelo movimento e pelo desejo?

Dino Buzzati (2010). O Grande Retrato. Cavalo de Ferro Editores. Tradução de José Luís Costa.

domingo, 6 de abril de 2014

Metamorfoses 29 - Era o tempo vivo da dialéctica

Franz Marc - Two Cats (1912)

29. Era o tempo vivo da dialéctica

Era o tempo vivo da dialéctica,
a pequena ficção
anteposta na porta do pensamento.

Os gatos miavam nas noites de cio.
O funesto canto crescia
para a solidão do quarto vazio.

Teses e antíteses defrontavam-se
entre miados e gritos
e nas mãos definhavam-me sínteses.

sábado, 5 de abril de 2014

Um facto decisivo

Alfredo Cunha - Salgueiro Maia no 25 de Abril de 1974

Um estudo do Instituto de Ciências Sociais, segundo o Expresso, revela que, passados 40 anos, existe uma unânime rejeição do Estado Novo. Uma maioria de Portugueses (59%) considera mesmo o 25 de Abril de 1974 como o dia mais importante da nossa história. O 25 de Abril fazia parte de um painel de datas históricas que incluíam a Batalha de Aljubarrota, a chegada de Vasco da Gama à Índia, a Restauração de 1640, a adesão de Portugal à CEE e a implantação da República. Talvez faltem, no elenco, duas datas determinantes. A data do Tratado de Zamora (5 de Outubro de 1143) onde se reconhece a passagem do Condado Portucalense a Reino e Afonso Henriques como Rei. A outra seria a do Terramoto de 1755. É difícil determinar, numa história com quase 900 anos, qual o dia mais importante. Todos os indicados são fundamentais. O problema que quero colocar é outro e está ligado à desvalorização histórica da data por alguns sectores (que parecem ser, agora, bastante diminutos). Por que razão foi o 25 de Abril de 1974 uma importante data da história de Portugal e, também, da história universal? 

Há três grandes motivos para sublinhar a importância histórica da data para a comunidade nacional. Em primeiro lugar, ela representa o fim de um processo iniciado na segunda dinastia, talvez com Afonso V. Esse processo tem no seu cerne uma orientação extra-europeia de Portugal. Em primeiro lugar, com a expansão no norte de África e depois com os denominados Descobrimentos. A partir dessa altura, o ultramar, no sentido etimológico da palavra, passa a ter um papel central no desenho da política nacional. Esse processo, que durou cinco séculos, terminou em consequência do 25 de Abril, que pôs fim à guerra colonial, abriu o processo de independência das colónias portuguesas e provocou o retorno de centenas de milhares de portugueses à metrópole, como se dizia na época. 

Em segundo lugar, a data é fundamental para os portugueses porque, pela primeira vez, Portugal é dotado de um regime plenamente constitucional e democrático. É verdade que, na sequência da Revolução Francesa e das invasões napoleónicas, Portugal vai reorientar, não sem uma grande instabilidade e uma guerra civil, o regime monárquico da variante absolutista para a constitucional. A própria dinâmica constitucional é alvo de várias peripécias - tentando acordar a perspectiva liberal e a absolutista - e a democracia que daí resultou esteve longe de ser uma democracia tal como a reconhecemos hoje em dia. Mesmo a mudança de Regime, em 1910, não nos trouxe uma democracia no pleno sentido que ela tem hoje. A Revolução do 28 de Maio e o Estado Novo aboliram, por completo, a frágil democracia e as liberdade que existiram na Monarquia constitucional e na República. Só com o 25 de Abril de 1974 é que se reconhece a todos os cidadãos o seu estatuto de maioridade cívica e política. Esta transição de um povo da menoridade para a maioridade política e cívica é um acontecimento decisivo na história de qualquer nação.

Em terceiro lugar, foi o 25 de Abril de 1974, com o fim da guerra e a democratização, que permitiu - e, de certa forma, obrigou - a um terceiro acontecimento fundamental na nossa história, a adesão à CEE. A importância desse passo não está apenas em Portugal ter entrado num comunidade económica, num grande mercado. As consequências políticas são fundamentais e afectam - como estamos a descobrir hoje em dia - a soberania da própria nação. Com os sucessivos tratados, Portugal partilhou - em muitos casos abdicou - de parte substancial da sua soberania. É verdade que, do ponto de vista lógico, não há uma relação necessária entre o 25 de Abril e a adesão à CEE. No entanto, o fim da política ultramarina, a situação geográfica do país e a necessidade de pertencer a um espaço político amplo, numa fase já avançada da globalização mundial, não deixavam outra alternativa ao regime saído do 25 de Abril.

Do ponto de vista internacional, o 25 de Abril tem um duplo impacto. Com a abertura do processo de descolonização, o 25 de Abril de 1974 deu lugar a novos palcos de confronto entre as super-potências da época. URSS e EUA (com a China em atenta expectativa) sustentaram prolongados conflitos internos em Angola e Moçambique. As guerras civis que grassaram nesses dois novos países são uma consequência do fim da guerra colonial e das independências das novas nações, isto é, do 25 de Abril de 1974, bem como da intromissão dos grandes interesses políticos e económicos internacionais. Hoje isto parece irreconhecível devido à implosão da URSS e aos realinhamentos dos poderes instalados em Angola e Moçambique, mas durante muitos anos o confronto entre as super-potências teve, nesses países, um importante palco.

Por fim, o 25 de Abril de 1974, com a transição à democracia, abre a denominada terceira vaga de democratizações, como lhe chamou o cientista político conservador Samuel Huttington. No processo de democratização global, a primeira vaga de democracias inicia-se no século XIX, a segunda com a vitória dos aliados em 1945. A terceira vaga, talvez a que tenha tido maior impacto espacial, começa com a revolução portuguesa, que abre caminho à democratização em Espanha, na Grécia, na América Latina, nos países da Ásia-Pacífico e, após o colapso da URSS, aos países do leste da Europa. A revolução do 25 de Abril de 1974 é, desse modo, a fonte de um processo de democratização que ultrapassa em muito as limitadas fronteiras europeias, tornando-se, também por isso, num acontecimento decisivo da história mundial.

Independentemente da consideração positiva ou negativa destes factos, a verdade é que o 25 de Abril de 1974 é uma data central na nossa história, um daqueles pontos incontornáveis em que o fluir da vida de uma comunidade  muda de rumo e obriga as pessoas a mudar de vida. Se me pedissem para designar as quatro datas decisivas da nossa história, o 25 de Abril de 1974 estaria entre elas, ao lado das datas do Tratado de Zamora, da Batalha de Aljubarrota e do 1.º de Dezembro de 1640. Em todas elas se jogou alguma coisa de absolutamente decisivo para a nossa comunidade