quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A gesta do presente

Joan Miró - Diálogo de insectos (1925)

Novalis também pensa, como August Wilhelm Schlegel – fundador, com o irmão Friedrich, do romantismo –, que «a poesia dos antigos era a da possessão, a nossa é a da nostalgia».
(Claudio Magris, Alfabetos, pp. 90-91)

Se a poesia dos antigos era o delírio provocado pela possessão divina e a dos românticos a da nostalgia por essa possessão, o que será a nossa? A nostalgia romântica dissolveu-se, pois esses antigos afastaram-se de tal maneira de nós que nem para a nostalgia há, nos dias de hoje, um objecto que a preencha. Houve um momento em que até os poetas sentiram nostalgia do futuro e fizeram parte dos fiéis dessa igreja. Hoje, porém, com a exclusão dos homens de negócios – e esses só no que diz respeito ao seu métier – ninguém se interessa pelo futuro. Nem a experiência divina dos antigos, nem a nostalgia dos românticos, nem a expectativa dos modernistas. Qual o território do poeta? Esta pergunta interpela-me uma e outra vez. Nunca se deverá ter escrito tanta poesia no mundo como hoje, mas isso parece-me mais o sintoma de uma ausência do que a afirmação de uma vitalidade. Há dias que chego a pensar que tudo o que é poeticamente permitido está condensado em Gregor Samsa, esse infeliz caixeiro-viajante que, por uma estranha metamorfose, se torna num horrível insecto.

Não haverá símbolo maior do mundo moderno do que o caixeiro-viajante. Ele é o mediador por excelência, mas um mediador que não está fixo no território, que se desloca para estabelecer pontes entre aqueles que querem vender e aqueles que querem comprar. Ele constrói com o seu labor o mercado. De súbito e inexplicavelmente, Gregor Samsa transforma-se,como se fosse possuído agora não pela mania vinda dos deuses mas por algo que vem dos fundos do ser, e que o arrasta para a sua nova situação. Se em O Castelo e em O Processo Kafka torna patente o significado da racionalização da vida, desiderato ordenador da modernidade, em A Metamorfose joga-se algo mais fundamental para a condição humana. Num mundo onde, idealmente, todos devem ser mediadores e instituir, pelo seu labor, o mercado universal, a poesia possível é a da epopeia negativa onde o homem se vê lançado num nível inferior de animalidade. Não há lugar para a possessão divina dos antigos poetas, nem para a nostalgia romântica, nem para os sonhos futurista ou realistas. Há a gesta do presente, e esta não é mais do que a transformação do homem num insecto.

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