segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Alienação e autenticidade

Paula Rego - Mulher Cão (1994)

A proclamação da autenticidade individual transforma-se numa pose de parvenu quando falamos contra a massa, esquecendo que dela fazemos parte. A retórica do enraizamento e do autêntico exprime por outro lado, embora de forma distorcida, uma exigência real, ou seja, a exigência de uma vida política e social não alienada, e denuncia a insuficiência do simples direito positivo, da mera legalidade formal que pode sancionar a injustiça, e à qual se contrapõe a legitimidade, quer dizer, um valor no qual possa assentar uma autoridade autêntica (Cláudio Magris, Danúbio). 

Percebo a crítica a Heidegger, compreendo a denúncia da pose de parvenu na proclamação da autenticidade do indivíduo. Compreendo inclusive a subjacente apologia de regimes não tirânicos. O que não compreendo, porém, é a ideia de uma vida política e social não alienada e o conceito de autoridade autêntica. Poderia afirmar, em contraponto a Magris, embora sem alinhar pelo diapasão heideggariano, que toda a vida política e social é alienada e toda a autoridade é não apenas inautêntica como ilegítima. Mas isso ainda seria ver a questão de uma forma superficial. A questão que se deve colocar é a seguinte: serão os conceitos de alienação e de autenticidade os mais indicados para falar da vida política e social e da autoridade? Não teremos que desfazer toda a malha conceptual que de Platão ao nossos dias, passando por Marx, Nietzsche, Foucault, construiu a rede onde tentámos apanhar o grande peixe da política? A rede de conceitos que o tempo teceu acabou por amenizar, ao racionalizar, o monstro e as monstruosidades que nele se ocultam. A verdade é que a política e a autoridade, a sua infatigável e nunca desmentida necessidade, é a confissão da nossa mais funda monstruosidade. Seremos algum dia capazes de olhar o monstro no fundo dos olhos? Ou tememos já que no fundo daqueles olhos seja o nosso rosto que iremos ver? (averomundo, 01/11/2009, revisto)

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