domingo, 29 de junho de 2014

O mistério português

Salvador Dali - Ensoñación - Consigna: malgastar la deuda total (1933)

O que fazer com a matilha de economistas que, no governo e na comunicação social, defendeu que o único caminho para Portugal era o que estava a ser seguido? Parece que, segundo o FMI, os economistas de esquerda é que tinham razão. O processo seguido seria, segundo eles, suicidário. Haveria que reestruturar a dívida de Portugal. Isso seria melhor para o país, para a economia e para os cidadãos. Agora, é o próprio FMI que vem dar razão aos que combateram as políticas que nos foram impostas com mão dura e a vergonhosa colaboração do actual governo e dos comentadores colocados ao serviço destas políticas. 

As televisões e os jornais vão continuar a pagar aos que se mostraram tão incompetentes? Os portugueses vão continuar a dar-lhes credibilidade? Os eleitores vão continuar a votar em quem, de forma tão patente, prejudicou os portugueses e o país? Provavelmente, sim. Toda essa gente defendeu o que estava errado, toda essa gente colaborou no processo que atirou centenas de milhares de pessoas para o desemprego e a emigração. Mas a sua palavra é mais merecedora de crédito do que a daqueles que, desde o início, disseram que o que se estava a fazer era errado, como agora até o FMI reconhece. Portugal é um mistério. Quem se engana - por ignorância ou má-fé - é incensado. Os que fazem leituras adequadas da realidade apenas merecem desprezo e umas gargalhadas. 

sábado, 28 de junho de 2014

Exercícios penitenciais

Rafael Sanzio de Urbino - A Poesia (1508-11)

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 28.01.2010.

Há dias em que não temos nada para dizer. Esses, porém, não são os piores. Há outros dias que descobrimos que deveríamos estar calados. Talvez calar-me seja o maior exercício de respeito por mim e pelos outros. Seria, no mínimo, um exemplo. Tanto ruído. Mas esses dias ainda não são os piores de todos. Para mim, hoje, é um dos piores dias. Estive a ler Herberto Helder e, sempre que leio Herberto Helder, é um dia mau. Aquela poesia é tão boa, tão perfeita, tão exacta, que parece tudo ter ficado escrito para a eternidade. A poesia de Herberto Helder é perversa, esmaga-nos com o prazer que dá, esmaga-nos com a sua exactidão lexical. Na poesia de Herberto Helder, a gramatica é terrível, pois não admite excepções, mesmo que um miserável substantivo seja um advérbio. Ler Herberto Helder é um exercício feroz de humilhação. Não, não nos purifica, não nos lava a alma. Pelo contrário, aquela poesia rouba-nos a alma. Quando lemos Herberto Helder ficamos desalmados. Aquele bocadinho de alma que ainda tínhamos é desbaratado, queimado, nem o diabo a quer. Herberto Helder é um inimigo do diabo, pois desfaz as almas que o maligno queria acumular para o fogo eterno. Quando lemos Herberto Helder, e na humilhação de o lermos, ainda queremos ler mais e mais e sem parar. Há poetas, daqueles poetas verdadeiros, que se proíbem de ler Herberto Helder. Eu leio-o, pois eu não sou um poeta dos verdadeiros nem dos falsos. Mas esses dias de leitura são penitências sem fim. Quando leio "As crianças enlouquecem em coisas de poesia", eu sou essa criança a enlouquecer. Enlouquecer, nestes dias, é uma forma de penitência. O penitente tira sofrimento do prazer. O leitor de Herberto Helder não passa de um penitente, de um penitente que quer estar calado e não consegue.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Seguro e Costa


Vale a pena, a propósito da luta pela liderança dos socialistas, retomar o diagnóstico da política feito por Nicolau Maquiavel. A política é a luta pela conquista e manutenção do poder. O resto – servir o povo ou a comunidade – só se liga ao fenómeno político por acidente. Tem relevo apenas se contribuir para essa conquista e manutenção do poder. É a partir destas considerações que deveremos ler o que se passa no PS.

António José Seguro laborou, durante muito tempo, num extraordinário equívoco. Pensou que o poder lhe cairia nas mãos sem que ele tivesse de lutar por ele. Bastaria estar sentado no Largo do Rato e de fazer uns discursos inócuos e sem qualquer compromisso para que, devido ao programa de austeridade, o poder lhe caísse nos braços. Tinha chegado a sua vez, pensou. Em democracia é verdade que o poder se conquista também porque o adversário o perde. Mas não basta que este o perca. É preciso lutar por ele. As eleições europeias mostraram, porém, que o governo estava longe de ter as legislativas de 2015 perdidas. Pelo contrário, revelaram que a maioria tinha conseguido, apesar do péssimo resultado, suster os estragos. Seguro equivocou-se. Ninguém está fadado para o poder. O exercício do poder, algo que pertence à esfera da acção, conquista-se activamente. Quem quiser dedicar-se à contemplação que entre para um mosteiro e aguarde a glória dos altares e não a do espaço público.

Uma segunda nota prende-se com o caso de Seguro e Costa falarem pouco, no conflito que os opõe, das soluções para o país. Há várias razões para isso, mas a fundamental reside no simples facto de que não é isso o que está em questão, a não ser de forma acessória. Como em qualquer partido político, sem excepção, o que está em jogo é a capacidade do seu líder em levar o grupo ao poder. A disputa no PS não diz respeito a programas, ideias, visões para o país ou concepções sobre a Europa. A única coisa em jogo é determinar, entre Seguro e Costa, quem está em melhores condições para ganhar as legislativas. O resto faz parte dos jogos florais que sempre acompanham este tipo de conflitos. Antigamente, os inimigos políticos envenenavam-se. Hoje, devido ao Estado de direito, os inimigos são apenas adversários que trocam galhardetes de forma a deixar o outro em circunstâncias mais difíceis e menos competitivas.

Não nos equivoquemos. É isto que está em jogo no PS. E isso acontece não porque os socialistas sejam especialmente depravados, mas porque essa é a natureza das coisas em qualquer organização política que luta pelo poder.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

O lago tenebroso

Wifredo Lam - Auto-retrato (1938)

As selfies são longínquas herdeiras do exercício pictórico do auto-retrato. Longínquas não no tempo, mas na intencionalidade. O auto-retrato está ligado a um cru - por vezes, cruel - processo de auto-conhecimento mediado pela técnica pictórica. A selfie é um divertissement pós-moderno cuja função é a glorificação do pequeno ego do retratado, um ego que se partilha para que, ao tornar-se parte do domínio público, seja confirmado na glória da existência. O auto-retrato na pintura é, muitas vezes, sóbrio e sombrio, enquanto a selfie depende, quase sempre, de uma instantaneidade galhofeira, como se ela fizesse parte de um processo de ocultação daquilo que o ego quer esconder de si mesmo. Não haverá coisa no mundo mais repelente que um auto-retrato de nós mesmos, um auto-retrato que fosse a nossa mais completa revelação. Por mais farisaica que seja a consciência, não há quem possa suportar ver-se tal como é. As selfies fazem parte da cortina com que cobrimos perante nós e os outros o lago tenebroso que se esconde no fundo de cada ser humano.

terça-feira, 24 de junho de 2014

A confusa evidência

Hiroshi Hamaya - Bamboo forest, Kagoshima, Japan (1960)

Um texto novo a intercalar nos cadernos do esquecimento provenientes do meu antigo blogue averomundo.

Há dias em que tudo se torna mais confuso do que aquilo que é habito. Não é por falta de clareza e distinção do raciocínio. Pelo contrário, é essa clareza e distinção que transforma a luz do dia em sombra difusa, como se se trocasse os espaços abertos da vida civilizada por uma densa floresta. Melhor, como se a própria distinção e clareza da razão fossem uma sombra e elas próprias não passassem, na sua essência, da mais intrincada das confusões. Este é a hipótese do génio maligno imaginada por Descartes. Teria ele a noção de que naquele momento - talvez só naquele momento - estava a tocar alguma coisa fundamental, a qual, assustado pelas suas consequências, logo abandonou? Haverá alguma coisa mais confusa e sombria que uma evidência dada pela luz natural da razão?

segunda-feira, 23 de junho de 2014

A duplicidade do olhar

Diane Arbus - Two ladies at the automat, NY (1966)

Eu percebo que a política esteja ligada a interesses e desencadeie paixões que enviesam - mais que o próprio futebol - a percepção de qualquer um. Pessoas que são objectivas e comprometidas com o exame rigoroso da realidade ou dos seus objectos particulares de investigação soçobram perante o teste da política. Isto vem a propósito do artigo de hoje no Público online da historiadora Maria de Fátima Bonifácio, com o título O que sobrará de Portugal?. Em jogo estão as políticas do governo consideradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional (TC). A historiadora não acusa o TC de fazer política. Acusa a Constituição de não deixar o governo governar. E não podendo o governo governar como lhe aprouver - neste caso, tornar a fazer incidir nos pensionistas e nos funcionários públicos o ónus da dívida pública - parece que a única coisa que pode acontecer é uma catástrofe que o título profetiza. 

O que está em jogo neste tipo de comentários é aquilo que se oculta. Oculta-se a captura do Estado não pelos salários dos seus funcionários ou pelas pensões que terá de pagar, mas pelos interesses privados que - em cumplicidade com o arco da governação - submeteram o Estado a compromissos que o afogam. Esconde ainda a própria teia de interesses partidários que, com a mão deste governo, coloniza o Estado e contribui para o descalabro financeiro. Há em todo este tipo de comentadores uma visão sacrificial de uma parte da sociedade para que outra - aliás, bem minoritária - continue com as suas rendas, continue a viver - apesar de falar à boca cheia de iniciativa privada e de empreendedorismo - à custa do dinheiro do Estado, isto é, dos contribuintes. Seria justo equacionar os salários da função pública, se todo o resto que onera as contas públicas tivesse igual tratamento. Mas isso é aquilo que estes militantes da saúde das finanças públicas não gostam de falar. Preocupam-se até à exaltação com as gripes, mas acham o cancro uma doença salutar, senão mesmo salvífica.

sábado, 21 de junho de 2014

Uma injustiça inominável

Umberto Boccioni - Peasants at Work (1908)

Por parte dos apoiantes do governo há sempre uma decidida sonegação daquilo que motiva as actuais políticas. A dívida pública não é a razão que conduz as actuais políticas, mas o álibi com que se pretendem justificar. O verdadeiro motivo, aquilo que está por detrás do ir mais além da troika empreendido pelo actual governo, é a transferência de dinheiro das pessoas que trabalham para a remuneração dos capitais. Trata-se de transferir, efectivamente, dinheiro do bolso das classes médias e populares para o bolso dos ricos. Isso torna-se, agora, claro com o estudo do Observatório sobre Crises e Alternativas, ligado à Universidade de Coimbra. A crise foi o expediente para retirar aos trabalhadores por conta de outrem 3,6 mil milhões de euros e fazer chegar mais 2,6 mil milhões de euros às remunerações do capital. Nada disto tem que ver com iniciativa, espírito empresarial, empreendedorismo, trabalho criativo, e outros clichés usados. Trata-se apenas de manipulação da lei pela parte dos governantes. Do ponto de vista da equidade social estamos perante uma injustiça inominável, ainda por cima num país que, já antes da crise, era dos mais inigualitários. Caminhamos, rapidamente, para uma recomposição social digna daquilo a que antigamente se chamava terceiro mundo.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Falemos de exames


Estamos desde Maio em época de exames escolares. Este é um momento importante na vida de alunos, famílias, escolas e professores. Depois da saída dos resultados dos exames do 4.º e 6.º anos, vi grupos de pais e de professores a opinarem contra a existência dessas provas. Pressente-se mesmo a existência de correntes de opinião favoráveis à abolição total dos exames no ensino não superior. Se esta tese vingasse, mesmo que fosse apenas no primeiro ciclo, os nossos alunos seriam prejudicados.

Prestar provas é muito importante na vida das pessoas e o exame não é apenas uma aferição de conhecimentos, mas um tempo de aprendizagem de si mesmo. O aluno é confrontado com uma situação em que é posto perante problemas que têm de ser resolvidos num curto espaço de tempo. Os alunos devem ser ajudados, por pais e professores, a lidar com a exigência, o medo, a angústia que os exames podem trazer, mas não devem ser poupados à provação. Só ela os tornará mais fortes.

Por outro lado, os professores deveriam ser os primeiros a exigir que todas as disciplinas e todos os ciclos de ensino fossem avaliados por exames externos. Isso ajudaria a dar credibilidade pública à sua função social. Mais, como sabe qualquer professor que já teve alunos em exame, as provas externas ajudam a formar uma comunidade de destino entre professores e alunos, que é uma das coisas mais importantes nos processos de educação.

Um exame é, ainda, um meio de certificação social do trabalho desenvolvido por alunos e professores. Os custos do ensino são muito elevados – mesmo num país como o nosso, onde se está a desinvestir na educação – e, por isso mesmo, é preciso que sejam prestadas contas por todos os envolvidos. O exame tem essa função de certificação social do sistema educativo.

Por fim, sublinhe-se que a escolaridade não se resume à preparação para exames. Estes, contudo, devem ter um papel dinamizador da melhoria das práticas de ensino. Os exames devem ser construídos de forma a que, cada vez mais, seja exigido um ensino voltado para a inteligência, a capacidade de raciocinar, de tomar decisões perante problemas. Se os exames forem apenas provas que exijam a mera rotina e mecanização memorizada de saberes, então devem ser questionados. Mas se forem melhorando, se se tornarem mais inteligentes, e exigirem mais inteligência, podem ter um papel crucial no aumento da qualidade da escola portuguesa. Não tenhamos medo de prestar provas. Há que confiar na capacidade dos alunos e no trabalho dos professores. Um país que não leva a sério os exames dos seus alunos é um país que não merece ser levado a sério.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

No país do eu acho que

Giorgio de Chirico - Le cerveau de l'enfant (1914)

Um texto novo a intercalar nos cadernos do esquecimento provenientes do meu antigo blogue averomundo.

Tentar uma discussão racional em Portugal é um exercício fútil. Só cremos em duas coisas: no eu acho que e no princípio de autoridade. Somos uma república do eu acho que, mesmo que esse achar que esteja em contradição com a mais nítida evidência racional. E aqueles que acham que, i e, todos nós, só se vergam a uma opinião contrária ao seu achar que se esta for emitida por uma autoridade – e apenas enquanto a autoridade for tida, pelo nossos interesses pessoais, como autoridade. A única coisa que dobra a nossa valentia de achadores que é o medo infundido pela autoridade. Autonomia do pensamento, exercício crítico da razão, análise das ideias a partir de princípios e regras claras são coisas que nos incomodam e estragam o nosso brilhante eu acho que, eivado de sentimentos e de profundas convicções fundadas na milenar prática do achar que e, não esquecer, do medo perante o magister dixit. Em Portugal, não se discute nada seriamente, apenas atiramos achos que à cabeça uns dos outros.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Futebol e política

Henri Rousseau - Jogadores de futebol (1908)

Há uma tentação, em certos sectores, para ver o futebol como uma forma de alienação da realidade. Uma notícia como esta (a selecção belga é uma das poucas coisas que une flamengos e valões) torna de imediato manifesto o papel político central que o desporto de alta competição – nomeadamente, o futebol – possui. Por norma, diz-se que o futebol é um factor de estranhamento (alienação) dos sujeitos perante a realidade. Contudo, podemos ver o futebol como um meio de construção de identidades e de geração de consensos que nos permitem viver em comum. O futebol, em grande parte do mundo, é um poderoso meio de construção da própria realidade social. Vale a pena olhar para duas razões que justificam essa ideia.

A realidade social e política não é um conjunto amorfo de factos captados empiricamente pelos sujeitos. A factualidade é enquadrada por dimensões simbólicas que se dirigem a áreas do ser que não são a razão pura. Os domínios do sentimento, da memória e da imaginação são importantes factores que intervêm na ordem política e na construção de uma identidade política. Esses domínios são mobilizados pela dimensão simbólica que o futebol arrasta consigo, nomeadamente quando se trata da representação nacional. As cores, as bandeiras, os estados de ânimo provocados pelas derrotas e vitórias são, nos tempos em que os símbolos mais fortes das identidades desapareceram, um importante dispositivo de construção identitária.

Uma segunda razão prende-se com o papel do futebol na produção do consenso social. As nossas sociedades vivem do equilíbrio entre o conflito de interesses e o consenso que nos permite viver uns com os outros, apesar da divergência acerca da repartição dos bens na sociedade. O que significa, do ponto de vista político, este consenso? Significa a transformação da relação de inimizade política (as partes vêem-se como inimigos que há que exterminar) em relações adversariais (as partes têm interesses diferentes, pretendem ganhar, mas precisam umas das outras e não desistem da aniquilação do outro). O futebol tem aqui um papel central, fornecendo à imaginação um ponto de apoio para o consenso (somos todos a favor dos nossos) e uma imagem perceptível dos limites do conflito político (derrotar o outro mas não o suprimir).

Ver o mundial, que agora dá os primeiros passos, não é apenas a manifestação de um gosto pessoal relativo a uma modalidade desportiva. É um acto político fundamental. Não por nos obrigar a tomar uma posição política sobre os conflitos na nossa sociedade, mas porque tem uma função instrutiva sobre como viver em sociedades onde o conflito de interesses se pode manifestar dentro da ordem previamente estabelecida.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

A aproximação do caos

Jackson Pollock - Night Mist (1945)

A polícia espanhola desmantelou uma rede de recrutamento de jihadistas (Público). Mais uma evidência de que, no mundo ocidental, vai crescendo um perigoso e insistente Cavalo-de- Tróia. O que me espanta, porém, é como a cegueira ocidental gera o caos em sítios que seria de interesse vital tê-los calmos e pacíficos. Seja por cobiça das matérias-primas (petróleo, diga-se), seja por apostolado ideológico (essa ideia de propagar a democracia em lugares que poucas a querem), o Ocidente rompe os precários equilíbrios que permitem alguma tranquilidade a si mesmo, e lança o caos onde não devia. A desorganização política do mundo árabe não afecta apenas os povos árabes. Ela tem um impacto em toda a Europa, mas, de forma mais decisiva, na Europa do Sul. A política internacional não é uma missão apostólica, nem o locus onde se faz vingar uma visão moral do mundo. Ela serve para defender os interesses vitais dos povos. Pôr estes interesses vitais em causa, seja por cobiça dos bens alheios, seja por necessidade de proselitismo, é o caminho mais curto para que o caos chegue a nossa casa. E ele vai-se aproximando

Sentado à porta


O olhar vira-se para fora para que o mundo venha para dentro. Quando adormeço, o mundo espera sentado à porta. [in averomundo, 23/07/2007]

domingo, 15 de junho de 2014

Meditações Taoistas (21)

Nicanor Piñole - Subindo a Montanha (1918)

O que pratica a via diminui a cada dia.
Diminuindo, chega ao não-agir.
Ao não agir, nada há que não se faça.
Lao Tse, Tao Te King, XLVIII

Quando era novo, levado pela inconstância do espírito e pela ordem do mundo, ele pensou que o essencial seria, a cada dia, aumentar, tornar-se cada vez maior, afirmar a excelência que a vida teria posto à sua disposição. Como qualquer outro, via na acção o caminho para a grandeza. Muitas são as formas como essa grandeza chama os homens e os leva para um caminho que ela mesma oculta aos olhos daqueles que seduz. Uns abandonam o mundo e as suas ilusões para, escondidos em algum cenóbio e em nome de um Deus, procurarem a glória da sua grandeza. Outros mergulham no mar agitado da acção e, falando em nome dos pobres e dos humilhados, alimentam, no mais íntimo e obscuro de si mesmos, a esperança de se tornarem heróis. A grandeza é um demónio vicioso e astuto.

Nem todos, porém, trazem no centro de si o imperativo do crescimento. Se nos primeiros tempos, o entusiasmo ainda os atira para o fulgor da busca da glória, logo um mal-estar toma conta deles e um vazio cresce no fundo da alma. Uma voz – sim, uma estranha voz inarticulada – começa a sussurrar. Se não lhe dão ouvidos, ela grita, distribuindo imperativos a cada hora que passa. Não, não coloca questões, não se dirige à razão, mas fala para os instintos e, através deles, para cada célula do corpo. Muda de caminho! Mas eu quero crescer, responde o interpelado. Diminui! Torna-te pequeno! É isso que espero de ti.

Não posso trair expectativas e esperanças, pensou. Como abandonar esse peso, o sonho da grandeza, e frustrar os que precisam de mim? Talvez por isso Jacob tenha, um dia, lutado com o anjo. Os dias, porém, traziam cada um a sua humilhação e, com a passagem dos anos, da grandeza esperada já pouco restava. O caminho tinha começado numa estranha encruzilhada, onde ele queria e não queria entrar pela senda que era a sua. Os seus planos dissolviam-se na areia e, em muitas noites, pensou que era ainda menos que o mais ínfimo grão de areia. Contra vontade, começou a diminuir. Quando chegava a madrugada, ainda o sonho de glória o animava, mas a noite quase o reconciliava com a sua crescente pequenez. Exausto pelo conflito, abre a mão de todos os sonhos e, perante a montanha mais elevada, grita: venceste, montanha. Apenas quero diminuir, ser, a cada dia que passa, mais pequeno e esperar que venha a morte e o meu nome seja esquecido. Nessa noite não foi atormentado pelos sonhos. Quando o dia chegou tudo era novo e estava no lugar que era o seu.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Um delírio de extremistas

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Os portugueses entregaram a governação do país a um grupo de extremistas e fanáticos, de pessoas que, para além de não possuírem preparação política suficiente, com uma ou outra excepção, não conhecem o país, e não têm o sentido dos equilíbrios necessários a uma sociedade com um módico de racionalidade e de justiça. O ar cordato dos governantes dá a sensação de que não são extremistas nem fanáticos. Essa aparência tem limitado o juízo crítico dos portugueses.

Cada vez, porém, que qualquer coisa contraria os desígnios da maioria, o extremismo político vem ao de cima e uma sensação de ódio fanático parece deslizar, como uma nódoa, pela superfície depauperada do país. Os ataques ao Tribunal Constitucional (TC) são sintoma de uma desadequação da maioria relativamente à Constituição que nos regula e legitima a existência dos governos. Não bastando as intervenções de Passos Coelho sobre a escolha do juízes, também uma importante dirigente do PSD veio dizer que o PSD “foi iludido pelo juízes que nomeou para o Constitucional” (será que estava à espera que eles fizessem jogo partidário?) e, pasme-se, considera que o TC deve estar sujeito a sanções jurídicas. Tudo isto é puro fanatismo político.

Recordemos duas coisas essenciais numa democracia. Num regime democrático, uma vitória eleitoral, mesmo com uma maioria absoluta, não significa que o governo pode fazer o que quer e lhe apetece. Está, felizmente para os cidadãos, limitado pela oposição, pela opinião pública e, o mais importante, pela própria lei, nomeadamente pela Constituição da República. Governar em democracia não é o exercício de uma ditadura da maioria, mas um jogo de equilíbrios para aplicar um programa, aplicação essa sempre limitada.


Por outro lado, a existência de uma Constituição e de um Tribunal Constitucional serve para limitar drasticamente os desejos dos governos, sejam estes quais forem. Hoje em dia, aquilo que distingue um político moderado de um político extremista é o respeito pela lei, pela Constituição e pelos órgãos que avaliam a natureza constitucional ou não das pretensões de cada governo. O governo aceitou governar com a Constituição e com o TC. Não lhe cabe decidir o que é ou não constitucional, mas tem o dever estrito de cumprir a Constituição. O que me preocupa, porém, é outra coisa. Onde quer o governo chegar com os ataques ao TC? Quer não cumprir a lei? Pretende um estatuto de governo absoluto e acima da lei? Quer fazer uma revolução para impor a sua vontade partidária? Não será tudo isto um perigoso delírio de extremistas?

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Uma Igreja à espera que passe

Francesca Woodman - Untitled, Providence, Rhode Island (1975)

José Mattoso, Frei Bento Domingues, Ruy Vieira Nery, Isabel Allegro Magalhães, Jorge Wemans, António Marujo, entre outros, assinam um documento dirigido à reitoria da Universidade Católica Portuguesa, onde mostram a sua indignação pela atribuição do prémio Fé e Liberdade a Alexandre Soares dos Santos, ex-presidente do Grupo Soares dos Santos (ver Diário de Notícias). Não vale a pena repetir aqui as interrogações dos signatários, o leitor pode lê-las no jornal. Queria sublinhar um outro aspecto. Este prémio choca com o discurso papal e com a referência à Igreja dos pobres. O Papa Francisco parece completamente desadequado em relação a uma parte da sua Igreja. Como todos sabemos, a Universidade Católica (UCP) não é um lugar frequentável por pobres. Já quanto aos ricos e aos que gostavam de o ser, não há nenhum que não queira lá educar os filhos. Este prémio, por muito que isso indigne alguns ilustres católicos, está de acordo com o tipo de Igreja que a UCP representa. É nela que se ensina, por mais que o Papa o verbere, o capitalismo ultraliberal que gera uma sociedade que torna os homens coisas descartáveis, que os conduz à morte. Em Portugal, mas não só, uma parte da Igreja apenas está à espera que o mau tempo passe, isto é, que este Papa, com o seu discurso fundado num certo franciscanismo, desapareça e a boa consciência dos ricos seja, de novo, matéria de justificação papal.

Contradizer-me


Há pessoas que nunca se contradizem, afirmam. Deprimo-me nos dias em que não me contradigo pelo menos três vezes. Por isso, de todos os apóstolos, de quem mais gosto é de Simão Pedro. E não foi ele o escolhido? [in averomundo, 22/07/2007]

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Caixa de Pandora

Jackson Pollock - War (1947)

Custa-nos a crer que somos governados por fanáticos e extremistas. Não me refiro apenas ao caso português, mas ao Ocidente em geral. É um fanatismo de novo tipo, embora também se julgue predestinado pela História. Refiro-me aos governos que pretendem transformar toda a sociedade numa espécie de mercado e, mais do que isso, julgam possível - pois esse seria o sentido da História - impor, mundo fora, regimes democráticos e sociedades de mercado. Esse fanatismo conduziu a que George W. Bush abrisse uma guerra insensata no Iraque, conduziu ao fervor acrítico perante as primaveras árabes. O resultado desse fanatismo e as consequências de tamanha irresponsabilidade política e civilizacional são aquelas que agora começam a tornar-se óbvias. 

Radicais islâmicos tomam conta de parte do Iraque, estão presentes na Síria e ameaçam a própria Europa (ver o Público). Mais do que isso. Apesar de alguns reveses, o radicalismo islâmico tem uma enorme base de recrutamento e uma disponibilidade para a guerra que não encontra paralelo em qualquer outro lado. O fanatismo ocidental, ao intervir onde não lhe dizia respeito, abriu uma autêntica caixa de Pandora. Na verdade, nunca compreendeu o que move parte do mundo muçulmano, pois não consegue perceber que nem tudo na vida se resume ao mercado livre e às agências de rating. Este fanatismo incendiou muitos países muçulmanos, e, depois, abandonou populações inteiras à mercê do radicalismo islâmico. Quando o incêndio chegar à Europa - já faltou mais e, há muito, que Portugal e Espanha são reivindicados como territórios muçulmanos - é muito possível que não estejamos preparados e que os amigos americanos estejam cansados de conflitos - que atearam - e nos entreguem também à nossa sorte. Depois, abrem todos muito a boca por causa da vitória da senhora Le Pen. É o que dá confiarmos os nossos governos a extremistas.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Investigação

Loomis Dean - Skunk standing on front legs (1952)

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 22.01.2010.

Decididamente, estou velho. Não digo isto apenas por há muito ter abandonado qualquer simpatia pelas utopias políticas. Isso é apenas sinal de sensatez. Mas velhice deve ser mesmo o que explica o não me conseguir iludir ou extasiar perante as micro-utopias que invadem o quotidiano das pessoas. Por exemplo, o desejo de ensinar competências de investigação a quem mal sabe ler, escrever e contar. Devo estar errado, além de velho, ou então está tudo de pernas para o ar. Sou um caso definitivamente perdido.

domingo, 8 de junho de 2014

Impotência à esquerda

Salvador Dali - Alucinación parcial, seis apariciones de Lenin sobre un piano (1931)

A entrevista de Ana Drago ao Público é mais um exemplo da incapacidade que se apoderou da esquerda para compreender a realidade. Por que razão a esquerda parece não estar a ser capaz de capitalizar o descontentamento com a actual situação política? Por dois motivos muito simples. Em primeiro lugar porque há um grande descontentamento no país, mas não se sente desespero. Há casos de desespero individuais, talvez muitos, mas globalmente não se chegou aí. Em segundo lugar porque, tirando a resistência ao capitalismo do PCP e do BE e a colaboração com esse mesmo capitalismo do PS, ninguém consegue compreender qual é o programa político alternativo para governar o país.

As pessoas não querem uma revolução nem sentem que estejam a viver no fascismo. Querem preservar o Estado-Social, mas também querem perceber como se paga a factura. Por outro lado, as pessoas começam a perceber que o Estado não pode substituir-se à iniciativa dos indivíduos, iniciativa singular ou colectiva. Há uma dinâmica liberal que a generalidade das pessoas reconhece como válida, mas que precisa de ter como contrapartida uma forte estrutura de solidariedade comunitária. Será que a esquerda tem respostas para dar às pessoas? Respostas que estas sintam como realizáveis e não mera retórica? Esse é o problema. Não se trata de humildade nem de política de alianças, mas de política pura e dura.

Problemas filosóficos


Duas netas e uma trotinete. E todos os problemas filosóficos ligados à justiça distributiva, aos direitos de propriedade e à solidariedade fraterna são trazidos à colação e argumentados entre lágrimas e suspiros.

sábado, 7 de junho de 2014

Educação, igualdade e produtividade


Comecei há dias a leitura do livro que mais tem dado que falar nos últimos tempos. Trata-se de Le capital au XXIe siècle (O Capital no século XXI), do economista francês Thomas Piketty. O livro aborda o problema da desigualdade de rendimentos. Assume o pressuposto de que um certo equilíbrio dos rendimentos é, numa sociedade de mercado (o autor não é marxista), um factor positivo, e analisa os mecanismos de produção da divergência de rendimentos. O que me interessa, porém, é outra tese expressa por Piketty. A principal força de convergência dos rendimentos é o processo de difusão de conhecimento e de investimento nas qualificações e na formação, isto é, na educação. Segundo o autor francês, o investimento em educação é, ao mesmo tempo, o que permite o crescimento geral da produtividade (o que nos torna a todos mais ricos) e a redução das desigualdades sociais, tanto no interior de cada país como a nível internacional. Thomas Piketty salienta ainda que estes resultados se devem à difusão e partilha de um bem público por excelência – o saber – e não a um mecanismo de mercado.

Se um país quiser construir uma sociedade próspera e equilibrada, então o caminho parece ser muito claro. Precisa de orientar as políticas seguidas na educação de forma a que todos possam aceder a uma formação adequada, e assegurar a qualidade efectiva das instituições de educação e formação existentes. O que temos assistido, nestes últimos anos, sob a orientação de Passos Coelho e de Nuno Crato? O que se tem assistido é, precisamente, o contrário do necessário. O investimento em educação caiu. Não apenas devido à queda do PIB, mas caiu também em percentagem do PIB afecta à Educação. Já em 2013, a presidente do Conselho Nacional de Educação acusava o governo de estar a colocar Portugal, relativamente ao investimento em Educação, ao nível da Indonésia. Mas, perguntará o leitor, o governo faz isto por ignorância? Não. O governo quer uma sociedade cada vez mais desigual e, concomitantemente, um nível baixo de produtividade. Não se trata de ignorância nem de dificuldades económicas. Trata-se de um claro programa ideológico, cuja finalidade objectiva é criar uma elite económica restrita, e uma imensa camada de população com fracos recursos cognitivos e económicos, disponível para tarefas pouco complexas. Só isto explica o que está a ser feito na Educação em Portugal. Na terrível situação em que nos encontramos, o país deveria estar a fazer o contrário do que faz. Só assim haveria uma luz ao fundo do túnel. Mas não é esse o negócio do governo.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A essência da coisa


Mais coisa menos coisa, tudo se resume a dois pecados capitais: a gula dos ricos e a inveja dos pobres. O resto, fogo-de-artifício e melancolia.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Estranha patologia

Salvador Dali - La imagen desaparece (1938)

Um texto novo a intercalar nos cadernos do esquecimento provenientes do meu antigo blogue averomundo.

Sofro de estranha patologia. Não é congénita nem apareceu subitamente. Com o passar do tempo, fui olhando para mim com mais vontade de rir. Como pode um ser humano, dotado de um módico de racionalidade, dar relevo às pretensões do seu ego? Melhor, do seu pequeno ego, pois todo o ego, pelo facto de o ser, é pequeno. Esta doença, que foi semeando metástases em todo o meu ser, é o pior que pode calhar em sorte. Torna-nos insensíveis para os horríveis sofrimentos dos egos dos outros. Sim, há gente por aí que sofre terrivelmente. O ego incha, incha, e o mundo em vez de reconhecer a virtuosa superioridade de tão avantajado ego nem repara, passa ao lado, contraria a supina excelência. E o presumido quase-deus sofre, grita, urra, ulula, tem síncopes, desmaios, fanicos, chiliques, estados de quase-morte. Não pára de esbracejar e está sempre apto, apesar da terrível dor que lhe corrói as entranhas, para tornar o mais prazenteiro dos locais numa antevisão do inferno. E eu, despido do mais leve resquício de humanidade e incapaz de sentir qualquer compaixão por gente tão sofredora, rio-me. Rio-me e peço aos deuses que me preservem da hubrys, esse estranho vírus que se propaga à velocidade da luz sempre que os seres humanos têm de conviver uns com os outros. Peço-lhes que me preservem no ridículo que me acho. 

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Estado e construção da comunidade

Ivonne Sánchez Barea - Islam (1999)

Num outro mundo que não o nosso, seria profundamente enriquecedor para um país a existência de múltiplas comunidades religiosas e culturais a viverem lado a lado, em perfeito estado de comunicação e respeito mútuo. Para tal, porém, seria necessário que as partes reconhecessem às outras o pleno direito de cidade e aceitassem um conjunto de direitos tidos como universais, os quais constituiriam a plataforma mínima de entendimento. O problema não está no facto de alguém ir à igreja, à sinagoga, à mesquita ou a templo nenhum. O problema está se um pai – seja de que religião e cultura for – acha por bem ter o direito de impor um casamento a uma filha menor ou maior, se um homem se julga proprietário da respectiva mulher, se alguém pensa que o facto de se não crer numa dada religião é motivo para se ser considerado sub-humano, ou que o abandono de uma religião deve ser punido com a morte.

Pior, mas muito pior, é se existem grupos organizados que têm por fim combater os infiéis (como no caso do ataque ao Museu Judaico belga) e, num futuro mais ou menos próximo, visam a conquista do poder e impor a sua religião e a sua visão do mundo. Numa altura em que a Europa ocidental vive uma profunda crise de identidade, será muito importante não tergiversar com os valores centrais da laicidade do Estado e da liberdade religiosa. Esta deve ser escrupulosamente respeitada. Mas apenas até ao momento em que, por motivos religiosos, se pretenda destruir o Estado laico, pôr em causa os direitos básicos dos indivíduos, nomeadamente a sua liberdade pessoal e religiosa, onde se inclui o direito à descrença, à apostasia e à conversão.

Nestas ocasiões, o Estado deve ser rigoroso (como parece estar a acontecer em alguns países europeus) e não exibir qualquer tipo de complacência com ataques a estes valores centrais. Deve, por outro lado, e contra uma visão liberal de abstenção nos assuntos da sociedade civil, ter um papel activo no fomento do diálogo republicano entre as diversas comunidades presentes numa sociedade. Deve fazê-lo, por muito que isso incomode certas consciências, como portador de uma racionalidade que ultrapassa as razões estratégicas das diversas partes presentes no corpo social. Uma acção firme, por parte do Estado, nessa direcção pode impedir o desenvolvimento daquilo que é já uma realidade, a existência de forças políticas extremistas e xenófobas, que vêm no abstencionismo liberal uma oportunidade para explorar o ódio e responder ao radicalismo com radicalismo de outro matiz. O Estado não pode demitir-se na construção da comunidade, nem do esforço republicano de diálogo e negociação entre as diferenças.

domingo, 1 de junho de 2014

Um cocktail explosivo

Max Klinger - Na pátria

Marine Le Pen está já a recentrar o debate político na questão do Estado-Nação. Numa entrevista à revista alemã Der Spiegel, afirmou que não é contra a Europa mas contra a União Europeia. Sublinhou que a União Europeia, actualmente, não é um projecto de paz mas de guerra económica (ver Expresso). Como foi possível chegar aqui? A resposta não é particularmente complexa. O fanatismo e a cegueira que tomaram conta da União Europeia impediram que os seus dirigentes dessem crédito às recusas que os cidadãos foram demonstrando ao longo do tempo. Cansados de votar em que não os ouvia, os europeus começam a escolher aqueles que parecem ter ouvidos para os seus anseios e para os seus medos. O crescimento de partidos como o da senhora Le Pen deve-se à insensata surdez dos dirigentes europeus e ao medo que cresce nas sociedades europeias. Deve-se, ainda, a uma outra coisa. O peso das identidades nacionais - pelas quais morreram milhões e milhões de pessoas em duas guerras mundiais - não se elimina só porque o dinheiro quer fluir sem barreiras. As identidades nacionais deram corpo às identidades pessoais, substituindo a identidade fornecida pela cristandade. Ora, haverá cocktail mais explosivo do que a combinação entre a surda insensatez dos dirigentes, o medo dos povos e o ataque à sua identidade, configurada na pertence a um Estado-Nação soberano? O triunfo da senhora Le Pen é o resultado dessa infeliz mistela servida todos os dias por essa União Europeia fora.