domingo, 31 de agosto de 2014

Uma sombra caminha

Jorge Carreira Maia - Auto-retrato IX (2007)

Vem um vulto pela bordadura da estrada, pisa as ervas floridas da Primavera, avança como se tivesse um destino, um fim derradeiro a mover-lhe o coração. Os carros passam e ocultam, por instantes, o fulgor daquele que caminha, mas logo a imagem retoma a existência e prossegue em movimento certo a jornada que a traz aos meus olhos. É uma estátua nítida batida pelo sol, uma figura de cera animada pela expectativa de uma meta, pela ânsia do perpétuo descanso. E ali vai o vulto, passo a passo, indiferente aos cães que uivam, à chuva que cai, ao ardor do sol, se o Verão chega. Vem, passa ao longe e eu viro-me para o ver desaparecer. É agora uma sombra e caminha e caminha e caminha, como se a estrada não tivesse fim e a sombra não mais desaguasse nas trevas da noite. (averomundo, 2008/05/26)

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Um perigo iminente


O meu primeiro contacto com o Islão foram as narrativas da reconquista cristã dos nossos primeiros reis. Arrumadas as visões escolares, o Islão desapareceu do horizonte. Nos anos setenta do século passado, o que estava em jogo era a querela capitalismo – socialismo. No início dos anos oitenta, um acontecimento decisivo chamou-me a atenção para o fenómeno muçulmano. Em 1979, ocorreu a revolução iraniana. O desenrolar da revolução, em curto espaço de tempo, deixou de se enquadrar nos quadros mentais que eram os correntes na época. Uma revolução religiosa e com valores que lembravam os da Idade Média. Comecei a tentar perceber esse outro mundo que estava recalcado pelo conflito entre americanos e russos.

O que descobri nesses já longínquos anos oitenta? Para além das divisões estruturais, havia em comum um desprezo pelos nossos valores e um ódio ao Ocidente. Descobri um núcleo irredutível aos valores éticos da modernidade, núcleo partilhado tanto por moderados como por radicais. Depois, descobri o carácter expansionista do Islão bem como a pretensão de reaver os antigos territórios que tinham conquistado e de onde foram, posteriormente, expulsos. Refiro-me à Península Ibérica. Nesse momento percebi que Portugal estava muito mais exposto a estes devaneios do que se poderia imaginar. Se, por vezes falava disso, olhavam para mim como se eu fosse um lunático. Uma outra descoberta aumentou a minha preocupação. O mundo muçulmano tinha uma inesgotável fonte de gente para a guerra, pessoas disponíveis para morrer por uma causa. Gente que não sabe e não saberá nunca fazer outra coisa.

Tudo isto era muito pouco visível nesses anos oitenta e continuou oculto, no Ocidente, após a queda do muro de Berlim e o fim do comunismo. As brechas abertas pelo desmoronar do antigo bloco de Leste permitiram a libertação dos instintos guerreiros e das pretensões ao domínio global presentes no Islão. Cada intervenção do Ocidente foi uma preciosa ajuda ao espírito da jihād. O ataque às torres gémeas despertou o mundo para um problema que ameaça tornar-se um pesadelo para o Ocidente, nomeadamente para os Europeus. O que se está a passar no Iraque e na Síria, as pretensões dos jihadistas – onde se inclui, claro, a Península Ibérica –, o dinheiro inesgotável a que têm acesso, a infinita mão-de-obra militar disponível, bem como os focos de conflito militar que alimentam e as tensões que o Islão coloca nos países europeus talvez respondam a uma estranha pergunta: quem serão os bárbaros que, como aconteceu com o império romano, tomarão conta de um Ocidente em farrapos?

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O desejo da águia

Jorge Carreira Maia - Humanitas I (2014)

O horizonte era marcado pelas grandes montanhas de leste, linhas ameaçadoras que iam e vinham ao sabor da névoa e do vento, trazendo os odores da floresta, a velha floresta que subia as encostas escarpadas e colonizava os breves planaltos. Entre ele e a estranha montanha erguia-se uma mulher. Jovem? Bela? Ainda hoje, não o sabe dizer. Ela nunca se virou para ele. Segurava a câmara fotográfica e disparava sobre a imensa massa de pedra que escorria do horizonte. Quando as grandes aves de rapina cruzavam os céus, concentrava-se no voo e carregava continuamente no botão, como se quisesse guardar alguma lição. Quanto tempo passou? Também não o sabe dizer. Sabe apenas que o desejo daquele corpo de mulher começou a germinar no fundo de si, enquanto ela acompanhava o voo das águias e tentava prendê-lo no tempo fotográfico de um instante. O desejo crescia à medida que o corpo, agora grácil e leve, procurava as aves para delas colher a imagem, talvez a alma, o espírito. Quando o sol começou a declinar, o desejo tornou-se – pobre dele – insuportável e, perdido na tensão do crepúsculo, levantou-se embriagado por Eros e deu uns breves passos em direcção à mulher. Terá ela ouvido? Não se mexeu. Quando os dedos dele se preparavam para lhe tocar, ela ergueu-se e os seus braços eram agora asas. Sempre que recorda aquela hora, apenas entrevê a enorme águia que volteava sobre a sua cabeça. Depois, a ave aproximou-se e olhou-o – jura que era um olhar de desejo – nos olhos, como se chamasse por ele, e partiu em direcção à montanha. Nunca descobriu como, na confusão do momento, a máquina fotográfica da mulher ficou presa nos seus dedos.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Uma outra visão da cultura gaseificada

Jorge Carreira Maia - My foolish world VIII (2014)

Para nós, clínicos, o que mudou [na organização do trabalho] foram principalmente três coisas: a introdução de novos métodos de avaliação do trabalho, em particular a avaliação individual do desempenho; a introdução de técnicas ligadas à chamada “qualidade total”; e o outsourcing, que tornou o trabalho mais precário.

A avaliação individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho, porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais – e também os indivíduos. E se estiver associada quer a prémios ou promoções, quer a ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, altera profundamente as relações no trabalho: “O que quero é que os outros não consigam fazer bem o seu trabalho.”

Muito rapidamente, as pessoas aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos poucos, todos os elos que existiam até aí – a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua – acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe… [Público, Entrevista a Christophe de Dejours]

Esta entrevista ao Público, do psiquiatra e psicanalista Christope de Dejours, merece ser lida de uma ponta a outra com muita atenção (a entrevista, de 2010, já não está disponível on-line). Christophe de Desjours mostra como os locais de trabalho se tornaram, ou estão a tornar, em espaços concentracionários de natureza absolutamente totalitária. Escolhi o excerto acima, mas poderia ter escolhido qualquer outro da entrevista. É este modelo totalitário que está a ser importado para os serviços públicos. Por exemplo, era isto, e ainda é, que o Ministério da Educação queria, e quer, impor aos professores.

Não pretendo comentar aquilo que de político e social se manifesta aqui, nem tecer considerações sobre o carácter dos indivíduos que advogam este tipo de coisas e as põem em prática. Interessa-me, antes, voltar à questão da gaseificaçãoda cultura. Não são apenas os produtos que são construídos para a ruína, para a sua rápida destruição na esfera do consumo. A ruína e a destruição dos próprios funcionários e gestores - muitas vezes é também esse o caso - é um elemento central da hipermoderna organização do trabalho. Sob a capa da avaliação de desempenho e da "qualidade-total", e com a ameaça de outsorcing no horizonte, o que se desenha é um cenário onde o elemento central é a destruição de tudo o que é puramente humano, desde as relações interpessoais de trabalhos até, em última instância, aos próprios indivíduos.

Outro aspecto particularmente interessante é a inevitabilidade de tudo isto. Não está nas mãos dos indivíduos parar este tipo de acontecimentos, apesar de aqui ou ali eles poderem ser refreados. Se alguém os parar numa empresa, ela acabará por ceder o seu espaço de mercado a uma outra que fará ou mesmo ou pior. Através deste modo de organização do trabalho, e dos valores sociais que o exigem, manifesta-se um modo de ser que opera muito para lá daquilo que é puramente humano. É como se um desejo ontológico de ruína e de destruição tocasse tudo aquilo que serve de base ao nosso modo de existência.

Para além das luzes brilhantes do espectáculo em que tudo se tornou, Thanatos faz o seu serviço. Mas o que há de novo, não é a presença do impulso de morte. Ele sempre existiu. A novidade é que ele deixou de ter contraposição. O mundo hipermoderno se não matou Eros, reduziu-o a uma caricatura. A deserotização da produção, característica do mundo criado a partir da Revolução Industrial, tem por função a criação de produtos que funcionem como um vácuo para o desejo dos consumidores. Da produção ao consumo, passando pelo produto, tudo é marcado por um impulso voraz de aniquilamento. O amor, Eros, que cria laços entre os seres humanos e entre estes e aquilo que os rodeia, é agora uma sombra delida, uma sombra escondida por detrás dos ciprestes que crescem no enxame de cemitérios que se escondem por todo o lado. (averomundo, 2010/02/02)

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Espalhar a indigência

René Magritte - On the Threshold of Liberty (1929)

Não se esqueça de que eu sou um cruzamento. Talvez exista ainda uma gora de puro sangue prussiano nas minhas veias poluídas. Talvez este dedinho seja o dedo de um sargento instrutor prussiano… Você, Christoph, com os séculos de liberdade anglo-saxónica atrás de si, com a Magna Carta gravada no coração, não pode compreender que nós, pobres bárbaros, tenhamos necessidade da dureza de um uniforme para nos mantermos verticais. (Christopher Isherwood, Adeus Berlim, p. 206).

Ai de nós, pobres rebentos de mil cruzamentos, que não temos nenhuma Magna Carta gravada no coração nem uniforme que nos sirva. Não arrastamos nos nosso genes os séculos de liberdade anglo-saxónica, nem sabemos o que é a dura necessidade da disciplina prussiana. Que fazer com um povo como nós? Olhe-se para o presente drama em que somos figurantes culpados e passivos. Oiço os tristes rapazolas e raparigas enxofradas que nos governam e não consigo deixar de rir. Eles, que são o fruto da mais pura bastardia política e social, imaginam – é tão fácil delirar – que governam um povo que aspira à liberdade dos ingleses sob a estrita necessidade disciplinar dos alemães. Se houvesse um módico de inteligência naquelas cabeças – ou um mínimo de informação – teriam compreendido que não só a liberdade britânica é incompatível com a necessidade germânica, como tudo isso não passa, para os exaustos descendentes dos lusitanos, de um devaneio de crianças. Mas inteligência e a informação histórica é coisa que repugna aos indigentes que tomaram conta de Portugal. Com o seu culto bastardo da liberdade inglesa e da disciplina alemã, a única coisa que fazem é espalhar, entre um povo aturdido, a sua própria indigência.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Charles Baudelaire - Les chats (Os gatos)

Franz Marc - Três gatos (1913)

Recuperação de uma tradução do poema de Baudelaire publicada no averomundo (2009/06/06).

Les amoureux fervents et les savants austères
Aiment également, dans leur mûre saison,
Les chats puissants et doux, orgueil de la maison,
Qui comme eux sont frileux et comme eux sédentaires.

Amis de la science et de la volupté
Ils cherchent le silence et l'horreur des ténèbres ;
L'Erèbe les eût pris pour ses coursiers funèbres,
S'ils pouvaient au servage incliner leur fierté.

Ils prennent en songeant les nobles attitudes
Des grands sphinx allongés au fond des solitudes,
Qui semblent s'endormir dans un rêve sans fin ;

Leurs reins féconds sont pleins d'étincelles magiques,
Et des parcelles d'or, ainsi qu'un sable fin,
Etoilent vaguement leurs prunelles mystiques.


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Amantes ardentes e austeros sábios
Amam igualmente, ao envelhecer,
Gatos pujantes e doces, orgulho familiar.
Como eles, são friorentos e sedentários.

Amigos da ciência e da volúpia
Procuram o silêncio e o horror das trevas;
O Érebo tomá-los-ia como servos da morte
Se à servidão pudessem dobrar o orgulho.

Quando meditam, tomam nobres atitudes,
Enormes esfinges dilatadas no fundo da solidão,
Parecem adormecidas num sonho infinito;

Os férteis rins, cheios de mágicas centelhas,
E fragmentos de ouro e fina areia
Cintilam vagamente no olhar extasiado.

domingo, 24 de agosto de 2014

Viagem

Winslow Homer - The Adirondack Guide (1894)

Um punhado de árvores frondosas desenha, sob um céu maculado de branco, um pequeno bosque. Serão velhos carvalhos? A luz da tarde e os olhos cansados, talvez o exíguo conhecimento de botânica, impedem-me a certeza ao afirmá-lo. A escassos metros da orla, corre, adormecido e secreto, um rio de águas claras, espelho onde as árvores se desejam ao entardecer. Um barqueiro aproxima-se no seu barco, rema devagar e o pequeno batel desliza pelo vidro translúcido, enquanto os remos descem e sobem numa cadência quase musical. Uma minúscula enseada serve de porto onde a embarcação se abriga, por instantes. Do fundo, levanta-se uma mulher. Está desgrenhada e nua. Salta para a margem com dificuldade, quase se desequilibra. Não fala nem acena, apenas caminha incerta, o corpo gasto, os seios velhos, as rugas negras. Entra no bosque e o barqueiro faz-se à viagem. O crepúsculo cresce a anunciar a noite, enquanto ela desaparece na névoa das árvores. Um relâmpago nasce no seio do bosque e ao longe ouve-se o crocitar dos corvos. (averomundo, 2008/05/30)

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Uma doença infecta o mundo


Hoje em dia parece que há um mal,
uma doença a infectar o mundo.
(Christopher Isherwood, Adeus a Berlim, p. 250)

Quando Isherwood, no romance Adeus a Berlim, põe a frase em epígrafe na boca de Herr Brink, estava-se nos anos trinta do século passado. A frágil república de Weimar declinava e a Alemanha, pelas mãos do marechal Paul Ludwig von Hidenburg, então Presidente da República, entregava-se no atoleiro sangrento e irracional do nazismo. Não é irrelevante saber que o velho marechal detestava Hitler. Aliás, tinha-se candidatado à Presidência da República com 82 anos para evitar a eleição desse mesmo Hitler. Essas idiossincrasias pessoais, contudo, não foram suficientes para evitar a entrega do poder aos nazis e a terrível desgraça que se abateu sobre o mundo. A doença infecciosa era já uma verdadeira pandemia e não houve forma de a evitar.

Quando em finais de Março de 2010, poucos meses antes de morrer, o historiador Tony Judt publica Ill Fares the Land (em português: Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos), é, de novo, a ideia de que há uma doença a infectar o mundo que vem ao de cima. Não se trata do irracionalismo nazi, mas da quebra do equilíbrio político – quebra trazida pelas governações de Thatcher e Reagan – que permitiu três décadas de paz, prosperidade e justiça social no mundo ocidental. Passaram agora quatro anos da morte de Tony Judt e a doença de que falava não parou de crescer, numa multiplicação imparável de metástases que auguram o pior.

A situação caótica no Médio Oriente, o recrudescimento das actividades do islamismo radical, as conversões ao Islão de jovens europeus, o clima de profunda desconfiança dos cidadãos nas elites políticas e económicas, os escândalos financeiros, o crescimento dos partidos de extrema-direita, as crises das dívidas soberanas e o regresso da guerra à Europa, no conflito ucraniano, tudo isto são sintomas de uma doença que tem, de uma forma ou de outra, origem no triunfo do radicalismo liberal e no desfazer do chamado pacto social-democrata que governou o Ocidente por várias décadas.

O que distingue a nossa situação actual da situação vivida na Alemanha dos anos trinta do século passado? O irracionalismo nazi ainda se apresentava de forma sólida e trazia consigo uma configuração – embora trágica e criminosa – para o mundo. A doença actual é diferente. Ela é apenas dissolvente. Não traz consigo nenhuma alternativa, não apresenta aos homens um mundo possível. O que estamos a presenciar, nestes dias infectos, é a cada vez menos lenta dissolução de todas as instituições, modos de vida e maneiras de pensar. Tudo se desagrega como se uma terrível noite estivesse para chegar e nada mais houvesse para além dela.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Conversas

Henri Fantin-Latour - Les Brodeuses

Os dias grandes declinam, preparam-se já para partir. Da rua chega uma luz calorosa e branca que ilumina as flores sobre a bancada. Sentados, extáticos, batidos pela violência dos raios solares, dois vultos conversam. Um discorrer sussurrado, quebrado por longos silêncios, os olhares presos às pequenas coisas de todos os dias. Pela mesa, um jarro de água e um copo vazio. Às vezes, a mais nova olha para o chão e cicia ‘se ao menos pudesse sair desta cadeira, desta casa, desta rua…’, e deixa frase inacabada como se a esperança pudesse entrar por ali. A outra não responde, fixa o olhar nas cortinas que cobrem o sol e cede ao peso de uma ruga que lhe cavalga a testa. Ofegante, alisa com rispidez o negro do vestido, depois inclina a cabeça, olha as mãos e ali fica debruçada sobre o buraco vazio onde outrora habitou um coração. (averomundo, 2008/06/01)

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Uma cultura gasosa

Jorge Carreira Maia - My foolish world IV (2014)

Já não estamos naqueles tempos em que a cultura era um sistema completo e coerente de explicação do mundo. De igual modo, acabaram as grandes épocas de oposição entre cultura popular e cultura erudita, entre "civilização" das elites e "barbárie" da populaça. A este universo de oposições distintivas e hierárquicas sucedeu um mundo em que a cultura, que já não se separa da indústria mercantil, alardeia uma vocação planetária e se infiltra em todos os sectores de actividade. Ao mundo de ontem, em que a cultura era um sistema de signos distintivos, comandados pelas lutas simbólicas entre grupos sociais, que se organizava em torno de pontos de referência sagrados e institucionais, sucede o mundo da economia política da cultura e da produção cultural prolífica e incessantemente renovada. Já não existe o cosmos fixo da unidade, do sentido último e das classificações hierarquizadas, substituído que foi pelo das redes, dos fluxos, da moda e do mercado sem fundamento nem centro de referência. Nestes tempos hipermodernos, a cultura transformou-se num mundo cuja circunferência passou a estar em todo o lado e o centro em lado nenhum. [Gilles Lipovetsky & Jean Serroy (2010). A Cultura-Mundo - Resposta a uma Sociedade Desorientada. Lisboa: Edições 70, pp. 12]

O importante já não é sublinhar o fim da explicação coerente do mundo, nem a morte da distinção entre cultura e barbárie. O que importa pensar é a natureza gasosa da cultura. A gaseificação da cultura a que assistimos tem uma suposta origem nos fenómenos acima citados desde a indústria cultural mercantil à moda, e é simbolicamente descrita nos conceitos de rede, fluxo, de mundo que é uma circunferência destituída de centro. Esta última metáfora é um indicador precioso do caminho que se está a trilhar. Ela já foi utilizada, no início da modernidade, para descrever a novo concepção de cosmos que despontava.

Com esta conexão entre o mundo da cultura e o mundo da natureza cósmica percebemos que o que está em causa é a destruição do espírito pela naturalização da cultura. Essa naturalização é feita pelo mercado. Ao transformar-se em mercadoria, a cultura está submetida aos mesmos efeitos das mercadorias cujas matérias-primas residem na natureza, isto é, aos ciclos de produção, consumo e obsolescência. Os produtos culturais nascem para se tornarem obsoletos e, desse modo, volatilizam-se, gaseificam-se.

Os clássicos da cultura são clássicos porque provêm da solidez do espírito, mas nos nossos tempos os produtos culturais não possuem solidez, são matéria gaseificada que se dissolve no ambiente, as mais das vezes poluindo-o, diga-se de passagem (veja-se a indústria do entretenimento - vai desde a literatura ao cinema, passando por um crescente número de novas modalidades ditas culturais ou artísticas - ou o infinito trabalho académico, constituído, na sua imensa globalidade, por lixo intelectual justificador de carreiras académicas ou puro diletantismo). Esta gaseificação da cultura é um dos traços da modernidade tardia, ou hipermodernidade. O que se oculta nesse processo de gaseificação? A pura ruína. Enquanto as civilizações tradicionais produziam a vida segundo a norma da eternidade e da permanência das suas construções, o nosso mundo moderno, ou hipermoderno, constrói tudo para a sua própria ruína.

A ruína deixou de ser uma consequência natural, derivada da acção das leis da natureza sobre as produções espirituais da humanidade, para ser o elemento central da cultura actual, das produções do espírito moderno ou hipermoderno. Quando se concebe um produto (e tudo se transformou num produto para o mercado global), concebe-se pensando já na sua obsolescência, na sua ruína, na sua gaseificação. Parece sólido, mas, como o gás, ele está pronto a desaparecer na atmosfera. Não se trata sequer de falar numa civilização do desperdício, do consumo ou mesmo do hiper-consumo.

Trata-se de uma civilização cujo núcleo central de desenvolvimento é o querer da ruína. Note-se que isto não atinge apenas os bens de consumo como automóveis, telemóveis, romances, filmes, jogos, etc. Isto atinge as próprias teorias científicas, as quais são construídas para serem destruídas e substituídas por outras consideradas melhores. As ciências, núcleo central da espiritualidade actual, são constituídas por teorias que visam, em última análise, a sua própria destruição, a sua gaseificação. Visam a ruína de si mesmas como explicação dos fenómenos que estudam. O fim que habita as ciências, um fim que visa a auto-destruição, impregna todo o ambiente em que se vive. A ruína nasce do corte entre as ciências e aquilo que as fundamentava e as ligava à ideia de eternidade, isto é, a filosofia e, num outro âmbito, a teologia. Curiosamente, o que celebramos quando celebramos a autonomia das ciências nascida na modernidade, com Galileu e Newton, é o culto da ruína como programa central da nossa vida. (averomundo, 2010/02/01)

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A luz do meio-dia

Max Klinger - Meio-dia

Um muro enorme e batido pelo sol, as cores incertas salitradas pelos dias, buganvílias já floridas a espreitar pelo cimo. Ao longe, vê-se a torre da igreja, o cata-vento, em corrupio a chiar, lamenta-se do ar fresco que sopra de leste. No chão saibroso há pedras soltas e pequenos buracos. Talvez existam casas do outro lado da rua, mas não as avisto daqui. Um vulto arrasta atrás de si a sombra. A mulher caminha muito devagar, leva uma cesta de verga numa mão; a outra prende a bengala com que se apoia ao andar. Pisa uma fresta de ervas ainda verdes e vai como se temesse um inimigo invisível. A cada passo a sombra torna-se mais densa e escura. Olha para trás, mas a sombra girou com ela e tornou a esconder-se nas suas costas; é agora um desenho esculpido no muro. Sente-se uma respiração entrecortada, talvez um soluço. Quando ela ergue a bengala, a sombra funde-se no seu corpo e a luz do meio-dia suspende-se naquela rua sem ninguém. Na torre, o sino faz soar as doze badaladas. (averomundo, 2008/06/02)

domingo, 17 de agosto de 2014

Salvo pela palavra

Jorge Carreira Maia - My foolish world I (2014)

O que é que me salva do caos, de um caos que, apesar de eu o disfarçar continuamente, está ali já bem perto de mim, do meu corpo, da consciência que ainda me permite dizer eu? Pergunto-me, reiteradamente. E a resposta acaba por ser invariavelmente a mesma: a palavra. Só ela me permite, aqui e ali, ordenar o caos, dar sentido onde o sentido não existe, justificar o injustificável da vida. Quando olhamos demoradamente para as coisas, elas começam a perder os contornos, a desligar-se, a alienar as conexões que laboriosamente lhe atribuímos. Nessa altura, surge uma sombra - essa velha companheira de uma vida - e, assim que ela se desfaz, as infinitas sensações emergem em mim, mas sem nexo, nem relação causal, como se tudo não passasse de pontos. Sonoros, luminosos... sensações puras e singulares. Mas uma palavra chega até mim e um sentido, vindo não sei de onde, dá-me a mão, como se eu fosse um náufrago no limiar da morte.

sábado, 16 de agosto de 2014

Previsibilidades e revoluções

Francis Picabia - La revolución española (1937)

Afinal aquela velha história de Kant, provavelmente um mito urbano da Konigsberg do século XVIII, que contava que as donas de casa acertavam o relógio pela passagem do filósofo, pois ele fazia sempre o mesmo passeio à mesma hora, não é assim tão extraordinária. Pelo contrário. Um estudo na revista Science prova que 93% das movimentações humanas no espaço são previsíveis. Sejam pessoas que fazem centenas de quilómetros diários, sejam aquelas que apenas percorrem algumas centenas de metros, todas têm em comum o facto dos seus percursos serem previsíveis.

Este estudo, que pretende ter pertinência para a gestão dos fluxos do tráfego nas cidades, deixa perceber uma coisa bem interessante que não é comentada no jornal nem, provavelmente, foi tematizada pelos cientistas. Os seres humanos são por essência conservadores. Uma parte muito substancial das suas deslocações no espaço obedece a padrões normalizados (a nível pessoal, entenda-se). As rotinas tornam-se hábitos, e estes, como ensinou há muito Aristóteles, são uma segunda natureza. A repetição, a rotina, o hábito são a casa onde os seres humanos se aconchegam para poder viver. A previsibilidade mostra uma certa eficiência na gestão da relação com o mundo. Diminui a angústia do próprio e a desconfiança dos outros. Foi devido à previsibilidade, e concomitantemente à natureza conservadora dos hábitos, que a espécie humana pôde resistir e permanecer no mundo. Foi ela que fundou a política, a economia, a cultura.

A espontaneidade, a imprevisibilidade, a capacidade de inovação, etc. sempre foram vistas como excepção, e como tal repelidas ou santificadas. Por santificação da excepção quero dizer que o excepcional era reconhecido como tal, atribuía-se-lhe mérito, premiava-se, mitificava-se, mas ninguém pensava que a vida normal pudesse ser composta por estados e por actos excepcionais. Por exemplo, ninguém acha que não ter o dom de Cristiano Ronaldo para jogar futebol seja um problema. Ele é uma excepção, mas a vida deve decorrer segundo um princípio da não excepção.

A derrota dos projectos revolucionários em política funda-se sempre no conflito entre a natureza humana, previsível e rotineira, e o estado de excepção que uma Revolução política implica. Por exemplo, a derrota do comunismo não se deve tanto à excelência do mundo capitalista ocidental, mas ao carácter inumano do próprio comunismo. Aqui inumano não se refere apenas ao exercício continuado da violência, sempre necessária para assegurar o percurso político da excepção, mas ao facto de que a revolução tem um carácter que choca com a necessidade dos seres humanos se instalarem no previsível, na rotina, no hábito. Quando há revoluções políticas, seja qual for a sua cor, os homens são expulsos, pelos acontecimentos, da sua própria casa. É assim que se sentem.

Já que se falou no comunismo, poder-se-á salientar que o pensamento revolucionário mais consequente se encontra no conceito de Revolução permanente, criado por Léon Trotsky, um dos chefes da Revolução bolchevique de 1917, na Rússia. Uma revolução, enquanto tal, só o é se permanentemente estiver a revolucionar o mundo, a modificar as instituições, a alterar métodos e modelos de acção, a refazer os caminhos que o homem possui para viver em sociedade.

Esta ideia de revolução permanente, porém, não é apenas central no comunismo. Ela é a essência das sociedades capitalistas. O capitalismo, fundado na natureza agónica do mercado, exige uma revolução permanente na sociedade e no modo de vida dos indivíduos, bem como na forma como estes trabalham. O capitalismo, bem como as ideologias totalitárias modernas (fascismo, comunismo, nazismo, anarquismo), assenta na contínua destruição dos hábitos, das rotinas, daquilo que há de previsível no ser humano. Mas a inumanidade do modo de vida capitalista é mais fina e assenta numa contradição.

Por um lado e segundo a retórica em vigor, os indivíduos enquanto produtores e consumidores devem ser espontâneos, abrirem-se para o inédito, para a inovação, fazer formação ao longo da vida, etc. Devem ser revolucionários, numa palavra. O mundo do trabalho e o mundo do consumo, parte substancial da vida humana, estão submetidos a uma revolução permanente. Por outro lado, porém, as mesmas pessoas, enquanto cidadãos, devem ser absolutamente previsíveis, rotineiras, com vidas fundadas em hábitos sociais que possam ser facilmente controlados.

Aquilo que diz respeito ao privado, à casa do homem (o trabalho, a satisfação das necessidades, a própria família), deve estar em mutação contínua (novas formas de trabalhar, novos objectos para consumir, novas formas, sempre moles, de família), enquanto a vida pública deve ser perfeitamente conformista e estereotipada. A inumanidade das sociedades capitalistas assenta neste antagonismo esquizofrénico entre o público e o privado. Mas ainda não é tudo. Esta esquizofrenia social está assente na expulsão do homem da sua casa, ao nível da vida privada (vida familiar, de trabalho e de consumo em permanente revolução), e a única casa que agora encontra é a da exposição no espaço público (é isto que se chama sociedade do espectáculo) onde, de forma conformada, se atém a rotinas e hábitos que permitem aos poderes dormir tranquilos. Tudo está sob vigilância. Que os indivíduos, numa parte do seu dia, tenham de ser revolucionários e inovadores e, na outra, gente cordata e absolutamente previsível explica o crescimento exponencial das patologias ligadas ao comportamento. Um inesgotável filão para psicanalistas, psicólogos, psiquiatras e outros técnicos do género. [republicação de um texto de averomundo, 2010/02/25]

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A habilidade do funâmbulo

Fernand Léger - Los acróbatas del circo (1918)

Estar nesse lugar a que chamam vazio e olhar-se demoradamente como quem perscruta o horizonte em busca de um fim, de uma fronteira que limite o espaço e introduza um ponto de ordem no caos que há em si mesmo. No vazio, descubro o meu próprio vazio, o exercício melancólico e inútil com que apresento no circo, como virtudes, os mil vícios que me constituem. Como compreendo os antigos padres do deserto. Fugiam para ali para combater os demónios e eram eles mesmos o inimigo a abater. Num tempo em que os desertos fazem parte dos roteiros turísticos, resta o vazio. Refugio-me nele e preparo-me para o combate. Mas nem para dar guerra aos demónios já sirvo. Resta-me a habilidade do funâmbulo, para a qual me preparei, sem êxito, ao longo de uma vida.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

A noite mais escura

Georgia O'keeffe - Black abstraction (1927)

As montanhas morriam num lago azul. Aqui e ali, pequenos bosques ocultavam um mundo sombrio de onde subia um cântico primaveril. Seriam pássaros trazidos pelo crepúsculo ou mulheres que colhiam pequenas bagas cor de cinza. Algumas casas abriam-se sobre a enseada, mas no cais não havia barcos. Só, de cana de pesca esquecida entre mãos, um homem fitava o horizonte. Não tinha cor, talvez não tivesse roupa, pois tudo nele se fundia numa sensação de ausência. Passaram horas, o canto extinguiu-se, o sol declinou. As árvores eram apenas uma deformação na paisagem, de onde todas as cores se iam retirando. No cais continuava esquecido o pescador, a cana na mão, o olhar no poente. Quando se ouviu um barulho de pedra a cair nas águas, o crepúsculo entrou pelos olhos extasiados do pescador. Assim começou a noite do mundo. (averomundo, 2008/06/03)

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Ulrich Seidl. Faith (Fé)


é o segundo filme da trilogia Paraíso do realizador austríaco Ulrich Seidl. No primeiro filme da trilogia (Amor), Teresa procura o amor numa viagem de turismo sexual ao Quénia (ver aqui). O que encontra, porém, nada tem a ver com o amor. O segundo filme continua a exploração do impacto – ou da ausência dele – das virtudes teologais na vida das pessoas. A protagonista, Anna Maria, é irmã de Teresa. Com isto estabelece-se uma relação genética entre os filmes, embora Anna Maria, ao contrário da irmã, foge do sexo e entrega-se, com todo o ardor, a uma vida de apostolado e de difusão do catolicismo que lembra as práticas de certas seitas evangélicas.

Os momentos iniciais do filme são, mais uma vez, centrais. Quando se assiste a Anna Maria a flagelar-se seminua diante de um crucifixo, temos uma visão do tom geral do filme e do grau de compromisso da protagonista com a religião. Depois, como acontece no primeiro filme, temos um vislumbre de Anna Maria nas suas funções profissionais. Trabalha como técnica de radiologia. Mais uma vez a profissão é utilizada para fornecer uma metáfora, discreta mas incisiva, sobre a atitude da protagonista. Ela trabalha com a doença e descobrir-se-á que toda a sua relação com a vida, o sexo e a religião é patológica.

Enquanto virtude teologal, a fé pressupõe a cegueira perante as realidades divinas e a crença fundada na revelação. O que Ulrich Seidl faz é transferir essa cegueira perante o absoluto para uma cegueira perante a relatividade da vida e as solicitações desta. Ao jeito de um palimpsesto, inscrevem-se no filme dois núcleos temáticos. No cerne do comportamento de Anna Maria está a sexualidade, mas a questão que subjaz é a da relação do catolicismo com a modernidade e a autonomia da pessoa.

Ulrich Seidl filma uma sexualidade recalcada e desviada do seu objecto para a religião e a figura de Cristo na cruz. A sexualidade transbordante dos outros horroriza a protagonista. O sexo é pressentido como uma forma de errância que desvia e perde os seres humanos. Em contraponto, Anna Maria anda de casa em casa tentando converter os perdidos, arrastando consigo uma imagem da Virgem Maria. Face a face temos a realidade da vida mundana e o modelo virginal da virtude cristã. Anna Maria é a mediadora entre ambas, mas uma mediadora que não deixa de se flagelar seminua perante o Cristo na cruz ou de se entregar a beijos e carícias demasiado humanas a esse mesmo Cristo crucificado, com o qual o realizador insinua uma masturbação. Recalcamento sexual, transferência do desejo erótico, negação, refúgio numa pureza idealizada.

A temática da sexualidade cruza-se com a da resistência de certos sectores católicos à modernidade de forma surpreendente e bastante irónica. A composição da personagem de Anna Maria não podia ser mais contrastada. Do ponto de vista profissional, ela opera com os resultados últimos da modernidade, com toda aquela aparelhagem que a ciência permitiu produzir para detectar as patologias físicas da humanidade. Mas ao abandonar a bata branca, Anna Maria parece uma mulher de uma outra época, de um mundo que já acabou, mas que persiste nela e no grupo que se reúne na sua casa para orar pelo retorno da Áustria aos velhos valores católicos. Mas o surpreendente e irónico reside noutro aspecto. Como complemento desta cisão, Anna Maria é casada com um egípcio muçulmano, paraplégico devido a um acidente. Estão separados, mas ele retorna a casa para reivindicar a sua condição de marido. O choque entre esta presença e o rigor militante do catolicismo de Anna Maria é o revelador da resistência à modernidade. A ironia está no facto de ser um muçulmano egípcio a exigir uma vida normal entre ambos e de ser a católica ocidental a figura do fundamentalismo religioso. De um lado, é valorizado o amor. Do outro, o rigor fanático e a obsessão anti-sexual. Observamos no filme esse choque entre tradição e modernidade, mas com os protagonistas com papéis invertidos relativamente ao que estamos habituados. A vida conjugal acaba por se tornar num conflito contínuo. Anna Maria, despedaçada pela cisão imposta pela sua visão religiosa e as exigências efectivas que o casamento traz, acaba a flagelar o próprio Cristo crucificado.


O filme tem todos os ingredientes para uma cruzada dos sectores católicos mais conservadores. Contudo, isso só acontece por deficiente capacidade de leitura. Do ponto de vista do catolicismo, a fé que é proposta ao crente não é nas regras e nos comportamentos neste mundo, mas nas verdades divinas extra-mundanas. Contudo, essa fé quando é transferida do plano divino para o plano social e humano não gera apenas o fanatismo fundamentalista, mas uma espécie de heresia, na qual o amor ao outro é aniquilado. O que Ulrich Seidl – com a sua fama de provocador e iconoclasta – faz é descontruir uma espécie de catolicismo impotente, herético e libertar o espaço para uma interrogação mais essencial sobre a relação do homem com o divino e com os outros homens. 

domingo, 10 de agosto de 2014

Aliviar-se

Francisco de Goya - Disparate ridículo (1816-23)

Estou voltado para o sarcasmo. Não é inventivo nem resolve seja o que for, mas alivia a bílis. Não há nada como uma pessoa aliviar-se. (averomundo, 2007/10/05)

sábado, 9 de agosto de 2014

As palavras que correm

Jesús Valle Julián - Calle Hierro a plaza

De súbito, um carro amarelo atravessa a praça, fende a luz que envolve o chão e ilumina quem, com tanta pressa, vai; pára com um rugir de travões. Os prédios são uma amálgama de cores e vidros, um jogo de sombras, anúncios que à noite iluminarão o abandono que de tudo se desprende. No passeio, duas mulheres conversam, ciciam como se partilhassem um segredo, um mistério que aos transeuntes fosse vedado. As palavras correm melífluas e, na seda com que se vestem, cobrem de trevas tudo em redor. Dentro do carro, um homem especado olha atónito para as mulheres que falam. Quem passa recolhe-se na escuridão que sai daquelas bocas e, numa janela, um gato espreguiça-se antes de desaparecer. Quando os faróis do carro se acendem, vê-se um enorme deserto de pedra e cal, uma estátua a um herói da grande guerra e um ramo de flores secas esquecido num banco de madeira. O silêncio era um enorme pássaro branco poisado no chão escuro da praça vazia. (averomundo, 2008/05/28)

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Gordon W. Gahan, The Game, Nazaré, Portugal

Gordon W. Gahan - The Game, Nazaré, Portugal (1967)

A partir desta fotografia de Gordon W. Gahan poder-se-ia levantar a vexata quaestio relativa ao carácter alienante, ou não, do futebol. Dir-se-á, contudo que entre dois rapazes a correr, numa rua da Nazaré, atrás de um bola e a grande indústria do futebol contemporâneo não há comensurabilidade. Talvez não haja, mas o entusiasmo que ilumina estes rapazes é idêntico àquele que conduziu a que muitos rapazes com talento se tornassem profissionais de futebol. Esse entusiasmo é o mesmo que leva muitos milhões de pessoas aos Estádios ou as prende às televisões. Entreguemo-nos, porém, à leitura da fotografia. O que vemos nela?

Em primeiro plano, a bola e o entusiasmo com que dois rapazes se entregam à disputa dessa mesma bola. Olhamos para a cara deles e vemos o que se vê na cara de muitos profissionais de futebol. Entrega ao jogo, determinação, ardor, sentido de competição, ânsia de chegar em primeiro lugar. Se se perscrutar com atenção os rostos de ambos os jogadores vê-se, bem nítido, o carácter de cada um ali espelhado. Certamente, provirão de estirpes habituadas ao difícil, ao rigor que a exiguidade social traz consigo. O futebol - esta singela disputa de uma bola que ameaça perder-se - emerge aqui como um poderoso revelador de carácter, uma ilustração de uma antiga aula de psicologia. Também não seria difícil especular, a partir da fotografia, sobre questões éticas ou mesmo metafísicas. Mas há outra coisa essencial nesta fotografia.

O brilho proveniente do ardor da disputa da bola ilumina a fotografia e deixa ver mais que o mero jogo da bola. O que vemos ali? Vemos Portugal no ano de 1967. Um dos rapazes joga descalço sobre um campo de paralelepípedos, o outro com umas pobres sandálias, talvez de plástico. Extraordinária é a estética das suas roupas, nomeadamente das calças. As de um são já demasiado curtas e as de ambas têm prodigiosos remendos geométricos, remendos provenientes de peças de tecido que nada teriam que ver com o original. Esta é a estética da pobreza, fundada na mais pura carência. Numa carência que só a imaginação permite enfrentar.

Vemos ainda uma outra coisa extraordinária. Estamos em 1967. A Nazaré é já um local de turismo. Seria certamente menos popular do que hoje. Mas o que vemos ali é a pura resistência à cultura geral que tomou conta do Ocidente. A velha senhora - por certo, viúva - está vestida como a tradição impõe. As roupas dos rapazes também reflectem as estirpes a que pertencem. A boina basca que um dos rapazes ostenta era já, na altura, uma marca social bem característica, o penhor de uma herança, dessa herança em que há pouco ou nada de material a herdar. Só a bola - verdadeira metonímia do futebol - liga aquele mundo social retratado à vida contemporânea. O resto é a expressão de uma secular vida estreita, que nem o largo horizonte do mar conseguiu alargar.

E o futebol será ou não alienante? A vexata quaestio mantêm o seu estatuto, pois a própria fotografia acaba por ter, do ponto de vista social, uma clara ambiguidade. Os rapazes entregam-se de tal maneira ao jogo que tudo parece desvanecer-se. Desde que alcancem a bola, que diferença lhes fará o andar descalços, as roupas remendadas, os atavios paroquiais e fora de moda? Nenhuma. Eles são o puro jogo, onde tudo se esquece. Parece que a alienação - enquanto estranhamento à sua condição - vence. Mas o fotógrafo e  o espectador vêem aquilo que os rapazes não vêem e assistem a uma lição de sociologia, escorada na estética do autor. O jogo da bola torna-se, desse modo, um poderoso revelador de identidades e condições sociais, isto é, um factor de desalienação e de devolução da consciência à sua realidade.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Morte colectiva III

Vítimas do genocídio arménio

Quando se denuncia um massacre ou um genocídio matamos uma segunda vez as vítimas. Dissolver a identidade de cada uma na colectividade do massacre é reduzi-las a nada. Os assassinos ganham sempre. Ganham se houver silêncio, ganham se houver denúncia. (averomundo, 2007/07/09)

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Uma distopia

Jorge Carreira Maia - Raiz e Utopia (palha e erva fresca) (2014)

O caso do Banco Espírito Santo (BES) veio revelar, mais uma vez, a doença profunda que se abate sobre o mundo. Essa doença não é tanto o capitalismo, mas a captura da política e do Estado pelos interesses fácticos. Esta captura, porém, não é um acaso. Ela está na raiz - uma raiz cada vez mais seca - dos sistemas políticos que sucederam ao Antigo Regime. Tudo começou em Inglaterra com a Gloriosa Revolução do século XVII. O poder político tomou como objectivo central a defesa do lucro privado. É esta raiz que, parecendo alimentar um imenso prado de erva fresca, gera a palha, de que o caso BES é apenas um exemplo. Quando se governa não segundo o interesse público mas para a defesa do lucro privado, o que se pode esperar senão casos como o BES? A utopia liberal mostrou neste caso aquilo que é comum a qualquer utopia política. Parece um sonho grandioso de liberdade, mas na verdade não passa de uma negra e terrível distopia.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Ulrich Seidl, Love (Amor)


Love (Amor) inicia a trilogia Paradise (completada com os filmes e Esperança) do austríaco Ulrich Seidl. Tanto quanto dei por isso, os filmes não passaram – ou ainda não passaram – em Portugal. A relação com as virtudes teologais não deve ser tomada como mero expediente para fornecer uma unidade temática às três obras. Neste primeiro filme, a virtude teologal do amor (ou caridade) deve ser tida como o horizonte – um horizonte negativo, entenda-se – da trama romanesca. Sendo assim, convém ter presente – apesar do filme não conter qualquer referência à religião – que as virtude teologais fundamentam e animam o agir moral cristão, e são o sinal da presença e da acção do Espírito Santo no ser humano.

O amor (caridade), segundo Cristo, veio substituir, ou plenificar, a lei judaica. Como se deve entender o amor enquanto virtude teologal? Duas notas bastam. O amor é dádiva de si ao outro e o contrário da usura, a qual transforma o outro num mero objecto. O que tem isto a ver com o filme de Ulrich Seidl? Pelo conteúdo explícito, nada. Mas sem se saber isso não se percebe o filme. Teresa – a protagonista – vai para o Quénia numa viagem de turismo, na verdade numa viagem de turismo sexual. É uma mulher, na casa dos 50 anos, que vive com a filha, com um corpo longe, muito longe, do esplendor que todos os dias é sublinhado pela comunicação social como imagem ideal da beleza feminina. Na verdade, é uma mulher abandonada e, devido à configuração física e à idade, sem valor de mercado no mundo de trocas amorosas/sexuais do ocidente.

Embarca na viagem turística, mas aspira que, nesse mundo pressentido como mais autêntico e mais ingénuo, ainda alguém a possa tocar, a possa olhar nos olhar e fazer tremer o coração. Cansada, porventura, da usura da sexualidade ocidental, aspira ao amor. Vivemos, porém, num mundo globalizado e os beach boys – jovens quenianos que cercam literalmente os turistas – vêem nas matronas ocidentais uma oportunidade de negócio, a possibilidade de ganhar dinheiro fácil. A experiência queniana de Teresa – nesse paraíso africano imaginado (o filme mostra parte desse imaginário) por ocidentais depressivos – é a de uma contínua decepção. Desde a descoberta de que estava a ser vítima de exploração até, quando se deixa de romantismos e se entrega à busca da satisfação carnal, à impotência de um jovem africano alugado para a festa de anos ou à recusa de um cunnilingus por parte de um empregado do hotel. Decepção atrás de decepção.

O paraíso que se descobre através do amor é o da desilusão. África não é diferente da Europa, é apenas mais pobre. O dinheiro tomou conta de tudo. Não há dádiva amorosa. Apenas a usura que o dinheiro impõe fala e dita as regras. O que filma Ulrich Seidl em Love (Amor)? Diria que é o mundo onde virtudes teologais deixaram de animar – se é que alguma vez o animaram – o agir dos seres humanos. Seidl filma a inacção do Espírito Santo nos homens ou, numa outra perspectiva, a incapacidade destes para se deixarem tocar por aquela acção.  Em termos heideggerianos, o realizador mostra-nos a derrelicção do homem – nesta caso, de uma mulher – por Deus. O paraíso de Teresa reduz-se à pura banalidade da vida quotidiana num mundo marcado pela relação da oferta e da procura. Diria Marx, num mundo marcado pelo fetichismo da mercadoria. É esta a normalidade do mundo.


Ora a abertura do filme é uma verdadeira metáfora desse mundo. As primeiras imagens da película mostram-nos Teresa no exercício da sua profissão. Acompanhava (não se percebe bem em que papel) um enorme grupo de deficientes mentais levado a uma pista de carros de choque. A combinação deste universo da deficiência mental com o da arbitrariedade que sempre reina nesse tipo de pistas é a metáfora impiedosa – no sentido em que a desgraça da deficiência é mobilizada –, mediada pela própria Teresa, de um mundo cuja ordem é regulada pela usura dos corpos e o afastamento da graça oferecida pelo Paráclito. A normalidade do mundo não passa de uma ab-normalidade, de um exercício de deficientes num palco onde os comportamentos são caóticos e arbitrários.

domingo, 3 de agosto de 2014

A morte colectiva II


Na contabilidade da nossa percepção sensível um não deixa de ser um simples um. Horrível seria nomear cada um dos seis milhões de judeus sacrificados por Hitler, por exemplo. (averomundo: 2007/09/12)

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Uma dura lição


Voltemos à questão dos bancos e à experiência pela qual toda a sociedade portuguesa está a passar. Durante anos, os portugueses foram bombardeados por propaganda a favor da gestão privada. Tudo o que fosse gestão pública era vilipendiado. Não se dizia, porém, que muitos dos gestores públicos eram ideologicamente contra as empresas públicas, e que o seu papel não era tanto o de gerir o bem comum mas o de criar condições para que os bens públicos fossem alienados e colocados nas mãos da iniciativa privada, tida como virtuosa. Foi uma campanha persistente, incansável, uma campanha, na verdade, triunfante. Grande parte dos bens e serviços públicos foram alienados para a iniciativa privada.

Os cidadãos – agora meros consumidores – começaram, desde muito cedo, a desconfiar das virtudes da gestão privada. A dita eficácia dos gestores privados cifrava-se – e cifra-se – em dois tópicos: despedimentos e encarecimento de produtos e serviços. A crise do Grupo Espírito Santo, adicionada às crises de outros bancos, representa, todavia, uma anomalia tal que o discurso prevalecente começa a parecer ridículo. A família Espírito Santo, na sua vertente empresarial, era apontada como o modelo da virtude da iniciativa privada. Em torno dela, entoavam-se loas e hossanas à superioridade dos empreendimentos privados sobre os públicos. Os resultados, por muito que se tente fazer chicane,  falam por si e mostram que a gestão privada é tão ou mais problemática que a gestão pública.

Não se pretende argumentar contra a iniciativa e a gestão privadas. Pretende-se desmontar a propaganda mentirosa e irresponsável que conduziu a que o país alienasse para os privados um conjunto de bens públicos, que seria de todo interesse que fossem controlados pelo Estado português. Pretende-se chamar a atenção para o facto de as empresas privadas não serem mais virtuosas do que as públicas, ou que estas, necessariamente, serem mais incapazes e corruptas do que as privadas. Uma comunidade política, organizada em Estado, precisa tanto de empresas privadas como de empresas públicas. Precisa, fundamentalmente, de não destruir os sectores estratégicos da sua economia. Ora a crise dos grupos bancários veio dar uma lição clara aos propagandistas para-liberais da virtuosidade única da iniciativa privada. Veio lembrar aos portugueses que alienar certos sectores públicos pode representar colocá-los na mão de gente irresponsável e que apenas persegue o seu interesse. A lição é dura e clara. Será que os portugueses a aprendem?