quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O romance e a expulsão do paraíso

Washington Barcala - Adán y Eva (1974)

Em tempos escrevi um texto sobre a ligação entre o romance, e a arte em geral, com a vida dentro da caverna platónica (ver aqui). Necessidade e ilusão, contrapostos à liberdade e à verdade, são os ingredientes da vida dentro da caverna. Por isso mesmo, são a substância da intriga romanesca. Esta intuição, contudo, foi sempre acompanhada por uma outra, sobre a qual fui adiando a escrita. O ano de 2015, no campo das minhas leituras, abriu com três romances de Michel Houellebecq e dois (enfim, estou a meio do segundo) de Karl Ove Knausgård. Estas leituras remeteram-me mais uma vez para essa outra intuição.

Há uns dias li uma entrevista de Houellebecq, na qual se afirmava que não se fazia literatura com bons sentimentos. Isto é, o que está em jogo não é a vida feliz – se é que a há – mas o sofrimento de se estar na existência. E é aqui que entra a tal intuição que complementa a da caverna platónica. Só há literatura devido à Queda, à expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden. O romance – e com ele a arte em geral – não fala de outra coisa se não desse homem sofredor que vive em errância fora do paraíso.

Sofrimento e errância enviam-nos de imediato, e para fugir ao universo judaico-cristão, para o destino de Ulisses. Da vida de Ulisses, depois de retornado à pátria, com Penélope não há literatura possível, mas da sua errância, do seu desejo frustrado, da sua dor e da sua vingança – o sofrimento dos pretendentes – há a Odisseia. Este caso exemplar mostra-nos a necessidade de complementar os ingredientes que compõem a intriga romanesca. Não bastam as dimensões da necessidade e da ilusão para que haja romance. É preciso que elas se entrelacem com a errância – na linguagem cristã, a errância é o pecado – e o sofrimento.

Não será excesso de imaginação dizer que o romance só é possível porque a humanidade foi expulsa do paraíso? Não se estará a contaminar a arte com crenças provenientes de uma esfera que lhe é exterior, a religião? Aparentemente, sim. Na realidade, não. O Génesis bíblico não é apenas o livro inaugural de várias crenças religiosas. É também um exercício literário que inaugura e determina o campo da literatura ocidental, dando-lhe dois temas – os do sofrimento e da errância – que não podem deixar de obsidiar aqueles que escrevem. Se toda a literatura pode ser vista com uma intriga dentro da caverna platónica ou fora do Jardim do Éden, então é natural que nem a verdade, nem a liberdade, nem a felicidade, nem a reconciliação possam ser os seus temas fundamentais. Fora do paraíso ou dentro da caverna a vida presta-se pouco aos eflúvios dos bons sentimentos. 

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