quarta-feira, 1 de abril de 2015

A fortuna e a húbris

Julia Hidalgo Quejo - La Fortuna (1994)

Se nasceram num país ou numa época em que não só ninguém aparece para matar as vossas mulheres, os vossos filhos, mas em que ninguém aparece também para vos dizer que matem as mulheres e os filhos dos outros, dêem graças a Deus e vão em paz. Mas mantenham sempre presente no espírito esta ideia: talvez tenham tido mais sorte do que eu, mas nem por isso são melhores do que eu. Porque no momento em que tenham a arrogância de pensar sê-lo, aí começa o perigo. (Jonathan Littell, As Benevolentes)

Nos tempos que correm, motivados pelo excesso de abstracção e de racionalidade trazido pelo triunfo da modernidade, esquecemos, com demasiada facilidade, aquilo que os antigos tinham por essencial: a fortuna e a hýbris (desmedida). A nossa vida e os nossos empreendimentos dependem mais do que do planeamento racional do gestor, essa figura quase-divina da nossa pobre mitologia, da boa fortuna e da limitação da hýbris, da desmedida.

É isso que o narrador de As Benevolentes lembra ao leitor. Se este não cometeu excessos na guerra, isso não se deve à sua bondade pessoal, mas à boa fortuna que lhe concedeu um tempo e um lugar onde a guerra não se intrometeu. No entanto, a boa fortuna deve ser lida não como um simples acaso mas na sua conexão com a hýbris. A desmedida, a arrogância de exceder a sua medida, acabará por atrair a má fortuna.

Quando a filosofia deixa de nos ensinar estas coisas, a literatura está aí para as trazer à nossa memória. Tem ainda a vantagem de nos fornecer quadros de leitura da espúria realidade que nos cabe. Vejamos por exemplo a má fortuna que atingiu personagens como Sócrates, os Espírito Santo e outros do mesmo jaez. Quem poderá afirmar que foi apenas a má fortuna que ditou a sua queda? Em toda esta gente, que por momentos pareceu favorecida pelos deuses, a húbris não deixou de fazer o seu trabalho. Não, o planeamento racional e a atenção à gestão das coisas não bastam para levar o barco a bom porto. Os deuses são muito susceptíveis à desmedida dos mortais.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.