quarta-feira, 8 de abril de 2015

A grande literatura

Jorge Carreira Maia - Em formação. V. N. Barquinha (2007)

Tudo em branco, assustadoramente branco, excepto o sangue que tudo manchava, a neve, os homens, a minha capa. No céu, grandes formações de patos bravos voavam tranquilamente para o Sul. (Jonathan Littell, As benevolentes)

Uma pergunta: o que é a grande literatura? Todo o caminho para uma definição é uma perda de tempo. Prefiro descobrir sintomas do que fazer taxionomias e entregar-me a processos classificatórios. O pequeno excerto de Littell é um sintoma dessa doença que é a grande literatura. O sintoma tem a sua origem na incomensurabilidade entre os dois períodos do texto. No primeiro, está desenhado o terrível da condição humana espelhado na brancura da neve. Esse sangue que a tudo sujo vem daqueles que são executados por serem judeus, ciganos, comunistas ou outra coisa qualquer. Mas não é apenas a tragédia daqueles que morrem, é também o drama insuportável dos alemães que matam, das suas consciências atormentadas pela analogia que estabelecem entre a mulher que executam e a sua própria mulher, entre as crianças que matam e os seus próprios filhos. A grandeza literária nasce, contudo, da descrição que vem a seguir. Aos patos que voam para o Sul, tudo o que se passa na terra é indiferente, tão indiferente que a sua tranquilidade em nada é afectada pela dor desmedida dos homens. Mas os patos não são apenas patos, são deuses que habitam os céus. A convulsão dos homens é contraposta à tranquilidade da natureza e ao silêncio divino perante o horror que uns sofrem e outros praticam. E toda a grande literatura está aqui neste tornar manifesta a condição dos homens e a indiferença e silêncio com que ela é acolhida.

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