domingo, 11 de outubro de 2015

A Fonte Luminosa

Manifestação na Fonte Luminosa (1975)

Anda um espectro pela Europa — o espectro do Comunismo. Todos os poderes da velha Europa se aliaram para uma santa caçada a este espectro, o papa e o tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e polícias alemães. (Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, 1848)

De um momento para o outro, os velhos poderes fácticos (os dos partidos do arco da governação e os dos negócios com o Estado) foram tomados por um grande terror. Parece que um espectro vindo dos séculos passados está assombrar a vida tranquila com que políticos e gente dos interesses se entretinha na destruição das classes médias e na privatização dos elementos estruturais do Estado social. O espectro – uma verdadeira aventesma, como se sabe – não é outro senão o espectro do comunismo, que agora se manifesta nessa estranha possibilidade de comunistas e bloquistas poderem participar num governo de coligação com os socialistas. Hoje em dia os velhos poderes fácticos já não podem apelar ao Tsar, pois o seu tempo acabou há muito, nem ao Papa, pois este parece pouco preocupado com os delírios dos poderosos, resta-lhes apelar à memória dos socialistas e a esse momento crucial de 1975, que foi a grande manifestação na Fonte Luminosa, onde Mário Soares fez frente ao PC e à extrema-esquerda. Isso terá algum sentido? Tem do ponto de vista da manobra política, mas é irrelevante quanto aos perigos que possam vir por aí.

Em 1975, no início da democracia portuguesa, havia, de facto, uma confrontação entre dois modelos de sociedade e havia ainda um mundo dividido pela Guerra Fria e o Muro de Berlim. De 1975 para cá, muita coisa mudou e a percepção do que é possível e desejável também mudou. Do ponto de vista internacional, o bloco soviético desfez-se como se fosse um castelo de areia, o capitalismo financeiro tomou conta do mundo e a globalização quase pôs fim ao mundo industrial na Europa e, consequentemente, à classe operária, pretensamente revolucionária. Não há na Europa, mesmo dentro da esquerda dita radical, quem acredite na possibilidade do comunismo ou de uma qualquer revolução popular. Do ponto de vista nacional, também a situação de hoje nada tem que ver com a de 1975. Nesses dias, jogava-se o caminho que o país seguiria. Hoje em dia, os caminhos estão traçados e são sólidos (enquanto a União Europeia não se desfizer). Mesmo aqueles que advogam a saída do Euro sabem que não há espaço para o fazer. Resta ainda dizer uma coisa. Se em 1975 o PC e a extrema-esquerda (aquela que deu origem ao Bloco de Esquerda) se portaram fora do âmbito daquilo que seria expectável numa democracia parlamentar e representativa, a verdade é que depois do 25 de Novembro, a sua conduta é exemplar, cumprindo escrupulosamente as regras da democracia e contribuindo, como os outros partidos, para o seu desenvolvimento e consolidação. Note-se, ainda, o papel absolutamente moderador da contestação social que o PC tem tido nos últimos quatro anos. Sem a disciplina e organização do PC, muita contestação social poderia ter tomado rumos violentos e de desafio à legalidade. O que aconteceu, porém, foi outra coisa. O PC – através da sua influência sindical – conduziu sempre a contestação às medidas governamentais dentro do espaço da lei e da ordem, foi um factor de equilíbrio e moderação social, contribuindo para dar vazão às tensões sociais que o governo gerou. Vir agora falar na Fonte Luminosa é, do ponto de vista da situação histórica onde nos encontramos, um disparate sem pés nem cabeça. E este disparate acaba por ocultar aquilo que é essencial no caso, meramente hipotético, de um governo de coligação à esquerda.

O que é então essencial, do ponto de vista nacional, assegurar para que seja possível, em teoria, um governo de coligação à esquerda? Em primeiro lugar, que o PC e o BE aceitem cumprir todos os compromissos internacionais de Portugal e abandonem, enquanto partidos da governação, a retórica que pode pôr Portugal numa rota de colisão com as instituições europeias. Há que aprender com a experiência do Syriza na Grécia. O que está em jogo não é a verdade científica sobre a melhor forma de gerir a dívida (aí Varoufakis tinha razão). O que está em jogo é a questão política e a real situação do país. Portugal não tem qualquer possibilidade de ter uma política de confrontação com as instituições, portanto a melhor maneira de atingir os objectivos (diminuir o sofrimento dos portugueses e relançar a economia e o emprego) é tentar fazê-lo por dentro das instituições, dentro das regras em vigor (não temos força para mudá-las) e chegar a acordos sólidos, sem gritaria e sem irresponsabilidade. Tanto o PC como BE devem ter aprendido muito com o equívoco do Syriza na Grécia. A humilhação imposta foi de tal ordem que até os mais distraídos devem ter percebido a realidade. Em segundo lugar, o PC e o BE devem ter uma atitude reformista ao nível da organização do Estado, visando-o torná-lo mais eficiente, mais neutro e mais imparcial. Devem pugnar também por uma economia de mercado mais saudável e mais inovadora.

Dirá o leitor: mas para tudo isso não são precisos o PC e o BE, o que é que eles poderão então realizar no governo e que esteja de acordo com os seus programas? Para além de poderem dar um contributo importante na reforma do Estado, já que não estão comprometidos com as práticas de corrupção e compadrio correntes, deverão concentrar-se na defesa do Estado social. Defesa da Segurança Social, da Saúde Pública, da Escola Pública e do desenvolvimento do aparelho científico nacional (tão atacado pela actual maioria). Isto, para mais de 80% da população, incluindo muita que vota PSD e CDS, não é pouca coisa. É muito, e a qualidade de vida dessas pessoas depende da defesa desses bens sociais. E isso é necessário porque a direita coligada tem como objectivo a sua destruição, entregando os dinheiros dos impostos a interesses privados, cujo fim é o lucro próprio e não a segurança, a saúde e a educação das pessoas. Este seria o programa de uma coligação de esquerda. Sem qualquer utopia, vincando uma faceta social-democratizante, participando, com responsabilidades efectivas, na defesa daquilo que, enquanto oposição, defendem. Se os socialistas chegarem a um acordo com comunistas e bloquistas que contemple todas estas facetas, não há qualquer razão para que não haja um governo de coligação de esquerda, pois esta é maioritária no parlamento e na sociedade.

Deixemo-nos, portanto, de idiotices sobre a Fonte Luminosa, o perigo do comunismo, os tanques soviéticos, o Gulag e outras parvoíces que se escrevem por aí. Isso aconteceu, mas o mundo mudou e, tirando a mente da direita alucinada e de alguns socialistas à procura de espaço para chegarem ao poder dentro do PS, toda a gente sabe que o espectro do comunismo já não assombra ninguém, pois o próprio espectro morreu de susto ao ser assombrando por outro espectro que anda por aí agora e, ao que parece, bem vivo. Hoje a Fonte Luminosa ficaria praticamente vazia. A única coisa que interessa é saber se PC e BE estão dispostos a abandonar uma parte das suas ideias (que são minoritárias no país) para defender aquelas ideias que, sendo suas, são também de uma  parte substancial dos portugueses. O resto ou é alucinação ou uma tentativa para ser poder, mesmo que não se tenha maioria para o exercer. Uma coisa, contudo, é verdade, há muita gente que está em pânico com a possibilidade de se introduzir um corte naquela ligação especial entre os partidos do poder e o mundo discreto dos negócios. E é esse pânico que está a mover os ditirambos à Fonte Luminosa.

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