terça-feira, 31 de março de 2015

Impressões XXVII - o cântico do silêncio

Camille Pissarro - Kitchen Garden at l'Hermitage Pontoise (1874)

xvii. o cântico do silêncio

o cântico do silêncio
no dia aprazado
a árvore que se despe
na terra vazia
o céu de cinza e sombra
no ritmo das horas
a promessa sonâmbula
no voo das aves

assim desce a loucura
e despida
amanhece no coração

(31/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

segunda-feira, 30 de março de 2015

Uma esperança deceptiva

Salvador Dali - Araña de noche... Esperanza (1940)

Há qualquer coisa de doentio na crença de que a política pode trazer alguma benfeitoria à vida dos indivíduos. Isto não significa que todos os regimes políticos sejam iguais. A democracia é menos intolerável do que um regime ditatorial. Há governos menos ofensivos para os cidadãos do que outros. Refiro-me contudo a uma crença salvífica fundada no esforço colectivo em direcção a uma sociedade melhor e mais justa. Da experiência que há do mundo, nada suporta essa crença. Quando ela foi perseguida por via revolucionária, o resultado foi uma desolação sem fim, onde os indivíduos foram esmagados e as liberdades aniquiladas impiedosamente. Hoje em dia, continua viva a esperança de que, pela via democrática, se encontre caminho para uma tal sociedade. Este desejo de salvação parece irresistível. Um pequeno sinal (por exemplo, a vitória do Syriza na Grécia) é visto como prova irrefutável, mesmo que ninguém consiga perceber o que vai acontecer, e as contumazes evidências em contrário (por exemplo, a vitória do PSD na Madeira, ou o retorno em força de uma pessoa como Sarkozy em França) nunca chegam para matar essa esperança escatológica.

É possível que estejamos perante uma daquelas aporias em que a razão humana é fértil. Por um lado, ela tem o poder de gerar o descontentamento no coração de muitos homens, mostrando-lhe a natureza injusta da sua situação e, assim, fazer nascer, como contraponto, a esperança de libertação. Por outro, é demasiado frágil - tanto do ponto de vista teórico como prático - para encontrar e fazer triunfar um caminho que corresponda à esperança que os homens sempre depositam - mesmo que não haja razões empíricas para tal - nos poderes que a acção política traz consigo. Se nós combinarmos a crença salvífica nas possibilidades da acção política e a aporia que reside nela, somos conduzidos à compreensão do motivo pelo qual a decepção se segue a toda a esperança política: a fragilidade da razão torna impotente a expectativa que ela própria cria. Isto, por outro lado, diz duas coisas que a razão se recusa a aceitar: em primeiro lugar, que o mundo social, tomado na sua globalidade, não é o lugar onde a justiça se possa realizar; em segundo lugar, a acção política não visa, na sua natureza mais funda, realizar a esperança salvífica que os homens depositam nela. Sempre que a esperança se move no terreno do político, o mais provável é que ela esteja condenada a ser uma esperança deceptiva.

domingo, 29 de março de 2015

A paródia pós-moderna

Georges Seurat - Lady with a Monkey (1884-85)

A Condição Pós-moderna, escrita como uma encomenda oficial, restringe-se essencialmente ao destino epistemológico das ciências naturais - a cujo respeito, como Lyotard mais tarde confessou, o seu conhecimento era menos do que limitado. O que ele entreviu nelas foi um pluralismo cognitivo, baseado na noção - inédita para os públicos franceses, embora já há muito estereotipada para os anglo-saxonicos - dos diferentes e incomensuráveis jogos linguísticos. A incoerência da concepção original de Wittgenstein, muitas vezes notada, foi apenas acrescida pela afirmação de Lyotard de que tais jogos eram autárcicos e agonísticos, como se pudesse haver um conflito naquilo que não possui uma medida comum. A influência subsequente do livro esteve, neste sentido, em relação inversa ao seu interesse intelectual, quando se converteu na inspiração de um relativismo vulgar que, muitas vezes - aos olhos quer dos amigos, quer dos inimigos - passa pela marca do pós-modernismo. [Perry Anderson, As Origens da Pós-Modernidade. Lisboa: Ed. 70, pp. 39/40]

Esta mesma marca de irrelevância intelectual de um dos mais famosos livros sobre a pós-modernidade é assumida pelo próprio Lyotard: "Inventei histórias, referi-me a um rol de livros que nunca lera, aparentemente causou impressão nas pessoas, mas tudo se resume a um pouco de paródia... É o pior dos meus livros; quase todos são maus, mas este é o pior": [Lotta Poética, Terceira Série, Vol. l, N° l, Janeiro 1987, p. 82 (idem, pp. 39)].

Há, no entanto, qualquer coisa no livro de Lyotard que é pregnante. Essa força advém-lhe do próprio carácter paródico. Lyotard podia saber pouco do que falava no seu célebre relatório, podia ter inventado histórias, podia citar livros que nunca lera, mas isso não torna a sua obra menos significativa relativamente ao espírito pós-moderno. Pelo contrário, o livro como atitude intelectual parece ser o resumo da pós-modernidade, do carácter paródico em que a própria vida e o saber se tornaram. A pós-modernidade é esse momento que, após a solidez material do mundo moderno, tudo se dissolve, se torna leve e risível.

A risibilidade da existência só encontra o seu outro na risibilidade do saber, de um saber que cresce exponencialmente, mas com o qual os seres humanos são cada vez menos sábios e menos humanos. Um relatório sobre o destino epistemológico das ciências naturais pode ser um motivo tão válido como uma investigação sobre colecções de cromos da bola para evidenciar o carácter risível do mundo. Lyotard escolhe muito bem a palavra paródia, evitando a referência directa à comédia. Esta deve ser sempre pensada na sua relação ancestral com a tragédia. A segunda, no dizer de Aristóteles, trata dos homens superiores, enquanto a primeira trata dos homens comuns ou inferiores.

Ora a paródia pós-moderna trata da ausência dos próprios homens, superiores ou inferiores, do mundo da vida. Ela assinala o lugar onde o homem se ausentou de si mesmo, dissolveu-se, reduziu-se a uma condição onde inferior e superior apenas fazem sentido entendidos num contexto zoológico. No entanto, não se deve interpretar o zoológico como referência a uma ciência, ainda que taxionómica, como a Zoologia. Deve ser ligado àquilo que entendemos quando escutamos a expressão "jardim zoológico". Ali os animais são criados em cativeiro para exposição pública. A pós-modernidade refere-se ao momento em que o mundo da vida se resume a um jardim zoológico, onde diferentes espécies de macacos se exibem perante outros macacos. A paródia é o contexto da risibilidade do animal humano reduzido ao horizonte dos seus apetites naturais. Um deles é exibir-se paroxisticamente perante o próximo. A característica essencial, porém, da paródia é o seu carácter de reinterpretação de um original. Agora os animais humanos parodiam o homem que um dia foram. (averomundo, 2009/08/15)

sexta-feira, 27 de março de 2015

Sinal do tempo

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

O Papa Francisco tem simbolizado, através da virtude da misericórdia e da ideia de Igreja como hospital de campanha, o desejo de muitos cristãos e não cristãos de uma mais acentuada preocupação social e de uma abertura da Igreja às novas realidades morais. Se este programa papal tem atraído a simpatia de muita gente, a verdade é que está a gerar fortes reacções, embora semi-ocultas, daqueles católicos – socialmente, poderosos e activos – que não comungam destas preocupações sociais e, ao mesmo tempo, exigem uma moral pouco dada a acolher homossexuais e divorciados na comunhão crística.

Essa oposição ao Papa irá, por certo, crescer. A realidade social e política é-lhe adversa. Por outro lado, a onda de simpatia que gera não se traduz em conversões e numa resposta efectiva à perda contínua de influência do catolicismo. Francisco corre o grande risco de se tornar uma figura como a do Dalai Lama. A generalidade das pessoas respeita-o e admira-o, mas isso em nada contribui para alterar a posição da China perante o Tibete. As pessoas gostarão de ver e ouvir Francisco, mas não se sentirão movidas a mudar de vida, isto é, a converter-se. O que não deixará de ser aproveitado por quem se lhe opõe. A realidade factual impõe duros limites às pretensões dos homens, mesmo às de um Papa.

Estranhamente, contudo, existe a sensação de que muita gente sente o vazio da nossa época e anseia por uma experiência espiritual profunda e significante. E aqui reside, parece-me, os limites que Francisco, enquanto homem, traz consigo. Centrou o seu discurso e a sua acção em questões sociais e morais. Está a despertar um conflito em torno delas com os sectores mais conservadores da Igreja, acabando por encerrar-se em assuntos que, tendo uma enorme importância, não são decisivos para as pessoas que vivem num mundo vazio e em perda de sentido. Pessoas que anseiam encontrar uma significação espiritual para a sua estadia sobre a Terra, significação que não se resuma aos imperativos da moral ou às preocupações sociais.

Deste ponto de vista, a acção do Papa, apesar da sua bondade e da enorme admiração que suscita, pouco diz aos que andam perdidos e se sentem órfãos de uma verdadeira espiritualidade. Alguém dizia que Cristo não veio à terra para fazer cristãos (aqueles que adoptam o cristianismo como ideologia moral e social), mas para ser modelo de outros que, como Ele, possam fazer a experiência da sua autêntica natureza espiritual. Deste ponto de vista, a acção de Francisco acaba, pela sua natureza meramente moral e social, por ser um, mais um, sinal da doença que atinge a cultura ocidental: a perda dos seus fundamentos espirituais.

quinta-feira, 26 de março de 2015

O homem expulso do paraíso

Marlene Dumas - The white disease (1985)

Em vez disso, parte. O melhor é fugir para bem longe da vida que vivemos desde que nascemos. Instala-te em terras bem organizadas onde tudo é possível. Eu fugi, de facto. Apenas para descobrir, nas décadas que vieram, que estava enganada, que havia uma longa cadeia com elos enormes: o bairro estava ligado à cidade, a cidade a Itália, Itália à Europa, a Europa a todo o planeta. É assim que vejo hoje em dia: não é o bairro que está doente, não é Nápoles, é a terra inteira, é o universo ou os universos. A astúcia está em esconder e esconder de si mesmo o verdadeiro estado de coisas. (Elena Ferrante, Those Who Leave and Those Who Stay)

Esta doença que acomete a terra inteira, de que fala Elena Ferrante, e não apenas o lugar onde nasceu, parece conduzir o leitor para uma consideração de ordem social e política. A doença de uma vida que não se pode exprimir na sua plenitude porque a organização - ou a desorganização - social e a injustiça política o impede. Essa consideração, todavia, é muito limitada. Ao dizer que essa ideia atinge o próprio universo ou universos, Ferrante desvia o leitor de uma consideração meramente política e coloca-o perante a dimensão ontológica do mal, de um mal que atinge o mundo e que se manifesta nas relações e acções das pessoas.

Este desvio é significativo de uma coisa que me parece essencial. A arte - e o romance é uma forma de arte, a forma de arte especificamente moderna - está mais próxima da interrogação religiosa do que da moralidade política. A presença do mal no mundo é um assunto que diz respeito à arte, à filosofia e à religião, as três formas que, segundo Hegel, o espírito toma no seu caminho para si mesmo. E isto conduz-me a uma tese que já defendi várias vezes. O romance é a narrativa do homem expulso do paraíso. Com a queda e a expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden, o homem encontrou uma explicação simbólica para a entrada do mal no mundo. O cristianismo afirma o carácter glorioso da queda adâmica, pois ela permitiu a obra da redenção.

De um ponto de vista mais modesto, porém, podemos dizer que não há literatura sem essa queda e sem essa expulsão. O pior desta leitura, da minha leitura, é que ela desfaz todas as utopias sociais e políticas fundadas no desejo de construir um paraíso na terra. A terra está doente, de uma doença que não é possível curar através da política. Esta pode servir de analgésico, pode fornecer cuidados paliativos, mas a doença continuará a fazer o seu trabalho. A arte serve não para nos iludir sobre o verdadeiro estado de coisas com a promessa de um mundo melhor, mas para nos pôr em contacto, um contacto sensível e imagético, com aquilo que é. E aquilo que é, aquilo que nos questiona, aquilo nos põem fora de nós, é em primeiro lugar, antes mesmo do espanto pela grandeza do bem, a iniquidade.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Sabe quem eu sou?

Pablo Picasso - Mujer con casco de pelos (1904)

Por que razão Portugal não funciona? Esta triste história (uma entre milhões que ocorrem todos os dias) contada por um jornal finlandês explica tudo. O desprezo, por parte das elites nacionais, pelas regras gerais e universais e o recurso imperativo ao sabe quem eu sou? é, ao mesmo tempo, causa, sintoma e símbolo da nossa inultrapassável pobreza - material e de espírito -, da nossa ausência de qualquer futuro digno. O problema de Portugal não é o da falta de dinheiro para investir, não é a diminuta dimensão do seu mercado interno, não é a ausência de qualificação dos seus trabalhadores e quadros, não é a falta de espírito de abnegação das pessoas. O problema de Portugal está todo ele na paroquialidade das suas elites, no rancor com que olham as regras gerais, universais e neutras, na arrogância com que afirmam um direito privado contra a regra universal, no despudor com que o privilégio se afirma contra o direito comum. O sabe quem eu sou? é a mais desprezível forma de ataque com que uma elite inculta  e saloia esconde a sua contumaz incompetência sob a capa da prepotência. Não se pense, contudo, que este ataque às elites indígenas é o reverso do louvor das virtudes populares. Não é, porque, como se sabe, assim que um indivíduo ganha meia dúzia de tostões que lhe permitem sair da miséria acha-se, de imediato, no direito de atirar à cara dos outros o inevitável sabe quem eu sou? O problema é que sabemos bem de mais. E aquilo que sabemos não nos dá qualquer esperança de sair do lixo onde estamos atulhados. Há muito que descobri que há problemas que não têm solução.

terça-feira, 24 de março de 2015

Impressões XXVI - o teu destino sufoca

Armand Guillaumin - Crozant Landscape (c. 1900)

xxvi. o teu destino sufoca

o teu destino sufoca
no lago da verdade
essa palavra de fogo
rumor tóxico
a arder no ramal
rio de sombra
sem luz nem água
vento que se move
no silêncio da planície

(30/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

segunda-feira, 23 de março de 2015

Da dissolução da Pólis

William Blake - Behemoth and Leviathan

O lamento tradicional de que o marxismo carece de toda a reflexão política autónoma, tende a impressionar-nos como sendo uma força, e não uma fraqueza. Pois o marxismo não é uma filosofia política; embora exista, sem dúvida, uma prática marxista da política, o pensamento político marxista, quando não é prático, tem exclusivamente a ver com a organização da sociedade e com o modo de as pessoas cooperarem na organização da produção. A crença neoliberal de que, no capitalismo, só o mercado interessa é, portanto, um parente próximo da concepção marxista de que, para o socialismo, o que importa é a planificação: nenhum deles tem tempo para disquisições políticas legítimas. Temos muito em comum com os neoliberais, na realidade, virtualmente tudo - excepto o essencial! [Frederic Jameson, Postmodernism: Or, the Cultural Logic of Late Capitalism]

Para lá do carácter provocador ou chocante da afirmação de Jameson, há uma coisa que permanece um facto: tanto o liberalismo como o marxismo visam a destruição do político. Aquilo que marca a modernidade e a própria pós-modernidade é a aversão à dimensão política da existência humana e a proposição, explicitamente ou não, de utopias onde o Estado é dissolvido. Não esqueçamos o seguinte: toda a violência que o Estado exerceu, no chamado socialismo real, tinha por fim atingir a sociedade sem classes, onde o Estado desapareceria. Também a retórica liberal do Estado mínimo almeja a desarticulação do Estado e sonha com um paraíso onde só existam consumidores e relações contratuais livres entre consumidores. Liberais, socialistas e comunistas, de formas diferentes, todos eles visam a anarquia, a supressão de uma ordem onde as comunidades se organizam segundo estruturas políticas.

Contrariamente, porém, ao que pensa Jameson, aquilo que separa os neoliberais dos marxistas não é o essencial, mas o acessório, a organização da produção e da distribuição de bens. No essencial, estão unidos, pois a essência do homem é impensável sem a dimensão política. Esta não é uma excrescência, mas a condição de possibilidade da existência e persistência do humano. O que descobrimos assim é um longo projecto de desarticulação do homem, um projecto emergente na modernidade (talvez a visão mecanicista do homem que vai de Descartes a de La Mettrie seja um símbolo percursor), mas que a pós-modernidade vem deliberadamente acentuar. Mais interessante do que o debate sobre a ruptura entre moderno e pós-moderno, debate centrado, por exemplo, na diferenciação e autonomia das esferas (religião, política, arte, ciência) inerente à modernidade e na actual des-diferenciação e hibridação pós-moderna, é a reflexão sobre o pós-moderno como momento de intensificação paroxística de tendências dissolventes libertadas com a modernidade. Tendências essas que têm dois pólos particularmente significativos no marxismo e no liberalismo, independentemente das múltiplas formas que ambos vão tomando. Trata-se sempre de abater o velho leviatã, essa terrível e monstruosa metáfora usada por Thomas Hobbes para designar o Estado. (averomundo, 2009/08/19)

domingo, 22 de março de 2015

Meditações Taoistas (23)

Theodore Gericault - An Officer of the Imperial Horse Guards Charging (1814)

As corridas e a caça extraviam o coração do homem.
Os bens dispendiosos impedem a acção do homem.
Assim, o Sábio ocupa-se do ventre e não do olho.
É por isso que ele rejeita o além e escolhe o aqui.
Lao Tse, Tao Te King, XII

Depois de um tempo de desmedida e sem direcção, o guerreiro experimentado e maduro abandonou aquilo que era tido como digno de ser vivido. Travara duras batalhas e estivera frente a frente com a morte infinitas vezes. Perdeu a conta aos amigos que viu morrer. A guerra era a sua condição e não um acidente. Nos tempos de paz, ele que prosperara na guerra, entregava-se aos jogos que a caça e as batidas lhe proporcionavam ou aos prazeres que a fortuna ganha em combate lhe trouxera. Talvez o convívio com a morte o tenha obrigado a aprender a desviar os olhos e a concentrá-los no além, nesse lugar luminoso que fascina os sentidos de quem não suporta o sofrimento trazido por tanta perda.

Quando o tempo de paz cobriu o vasto império, percebeu que os seus serviços eram dispensáveis. Restava-lhe a dissipação dos dias e o esquecimento da sua condição. Lentamente, uma estranha força começou a germinar nos seus pensamentos, uma angústia sobre qualquer coisa que havia perdido. Não era a excitação da guerra, o ruído dos campos de batalha, o cheiro dos corpos. Não era sequer a vertigem perante a morte, pelo menos com a vertigem que rodeia aquele que, pela perícia com que maneja o tempo, decide se vai matar ou morrer. Havia nessa vertigem, porém, uma luz que se abria, na insignificância do instante, e era como uma planície tranquila onde reinava a serenidade, uma planície que chamava por ele e que ele sempre recusara escutar.

Despediu-se da família e dos amigos, e atravessou uma vasta região. Quando chegou ao cimo da montanha, onde possuía uma propriedade, procurou um casebre que tinha visto por ali em tempos de guerra. Instalou-se, esperançado que o inóspito do lugar afastasse curiosos ou algum viajante perdido. Na solidão do eremitério, iria confrontar-se com a serenidade que o chamava naquele instante em que a morte e a vida se decidiam.

Naquilo que mais tarde narrou, não consta qualquer nota sobre a família ou amigos deixados tão longe, não há vestígio de alguma nostalgia pelo tempo em que era um dos mais temidos senhores da guerra. A generalidade das páginas eram preenchidas com notas sobre os seus pensamentos. Durante muito tempo, o além, aquela planície serena que o chamava, parecia ser o grande motivo de onde nascia a meditação. Subitamente, porém, os temas, escritos com uma caligrafia mais serena e firme, passaram a ser mais prosaicos e ligavam-se à materialidade da vida, à fome que sentia, ao cansaço trazido pelas caminhadas, ao correr do sangue nas veias, como se, com o passar do tempo, fosse descobrindo que apenas o aqui lhe importava. Ao ler as duas últimas notas, o leitor não vê a descrição, que nelas constam, do bater do coração durante a noite. Sente apenas o seu coração a bater na noite, mesmo que seja meio-dia. Quando, volvidos dez anos, voltou a casa, os dias foram passados com os netos. Ensinou-os a atirar com o arco e a cavalgar como se cavalo e cavaleiro fossem um único ser sobre o solo que pisavam.

sábado, 21 de março de 2015

O cavaleiro que falta

Odilon Redon - A loucura (1883)

Terceira lição grega: muito provavelmente, a zona euro já passou o ponto em que ainda haveria esperança de reforma e correcção. A zona euro transformou-se num nó górdio, sem solução. E todos os dias, dentro de si própria, crescem as forças da desmesura e da desrazão que lhe darão, se não ocorrer um milagre, um golpe de misericórdia tão brutal, que talvez venha a ser ele a marcar o verdadeiro início do século XXI. (Viriato Soromenho Marques, Diário de Notícias)

O texto de Soromenho Marques sobre a situação da Europa profetiza, na ausência de um milagre (sic), o fim - um fim doloroso - da aventura do euro e, por certo, da União Europeia. O apocalipse seria trazido pelas forças da desmesura e da desrazão, as quais, devido à política da zona euro, crescem todos os dias. Que forças são estas? Quem são os quatro cavaleiros do apocalipse? Tudo indica que são as forças nacionalistas, a extrema-direita xenófoba ou movimentos políticos sem formatação ideológica, nascidos da decomposição dos sistemas partidários, atentos às pulsões nacionalistas dos eleitorados. Mas serão estas forças os verdadeiros cavaleiros do apocalipse? O problema é que o nacionalismo, a desmesura e a desrazão já governam a própria Europa, embora disfarçados com a ideologia do livre-mercado, do combate à outrance aos défices excessivos e da ausência de fronteiras. Quem manda na Europa - a Alemanha e alguns países do norte com ela alinhados - impõem sem dó nem piedade a presente política por motivos nacionalistas e xenófobos, como forma de atender às exigências de eleitorados já muito contaminados por um nacionalismo imperioso. O nacionalismo e a xenofobia não nascem fora dos governos europeus. Nascem dentro, nascem de uma política que visa pura e simplesmente alimentar eleitorados que vivem à custa, literalmente, da desgraça de muita gente. Os cavaleiros do apocalipse, as forças da desmesura e da desrazão, na linguagem de Soromenho Marques, não estão a crescer e a aproximar-se do poder. Já lá estão. Três (a fome, a morte, a conquista) dos quatro cavaleiros são facilmente reconhecíveis. Ao longe, quem tiver o olho apurado e fria atenção percebe já a sombra do que falta, a guerra.

quinta-feira, 19 de março de 2015

As multiplicações da senhora ministra

Philip Guston - Autumn (1950)

A senhora ministra das Finanças, durante uma sessão da JSD, terá dito, certamente com o ânimo expedito que a caracteriza, "vocês que são jovens multipliquem-se". Eu sei que uma reunião da JSD não é o melhor sítio para apresentar uma reflexão minimamente articulada. Também parece claro que Maria Luís Albuquerque não estará vocacionada para reflectir, ainda por cima sobre aquilo que a demografia simboliza. Na verdade, a pobreza simbólica de quem, hoje em dia, se dedica à política é tal que é inútil esperar alguma coisa de interessante dessa gente. Há duas coisas apenas que sabem fazer: atirar dinheiro, se ele existir, sobre um problema e dizer umas banalidades sem nexo, como foi o caso.

Se eu fosse político que pergunta colocaria a mim mesmo sobre o problema da natalidade? A questão seria a seguinte: que mensagem os cidadãos me estão a enviar quando desistem de se multiplicar, para usar a expressão da senhora ministra? A decisão de ter ou não filhos é do foro privado, mas quando essa decisão afecta a saúde ou mesmo a continuidade existencial da pólis, ela é, na verdade, uma mensagem política que a comunidade, através de uma espécie de inconsciente colectivo, envia para aqueles que a governam ou pretendem vir a governá-la. A superficialidade com que os agentes políticos olham para a vida reduz o problema da natalidade aos gastos com a saúde de um população envelhecida e à vexata quaestio da sustentabilidade do sistema de reformas. É desta superficialidade que nasce a injunção ministerial multipliquem-se.

A mensagem da comunidade é, todavia, muito mais profunda e toca no centro vital da própria realidade comunitária. Os portugueses estão, através da demografia, a fazer um hara-kiri político. Estão a dizer que não vale a pena que Portugal persista e se mantenha como nação, não vale a pena renovar as gerações e fazer com que esse velho sujeito colectivo que somos continue a existir. A pulsão de morte sobrepõe-se ao instinto de vida, como se esta tivesse deixado de valer a pena. Uma comunidade, em plena posse dos seus recursos intelectuais, está, através das deliberações singulares, a optar pelo seu desaparecimento. Se eu fosse político, e tendo isto em consideração, perguntar-me-ia, depois, por que motivo a minha comunidade quer desaparecer. Interrogar-me-ia sobre a responsabilidade que os dirigentes da comunidade têm na emergência desta decisão de um lento suicídio comunitário. A demografia é o principal problema político de Portugal, muito mais importante do que o económico ou o social. Os portugueses estão a dizer, de forma ostensiva, que o melhor mesmo é que Portugal acabe. Querem mensagem mais política do que esta?

terça-feira, 17 de março de 2015

Impressões XXV - a velha ponte de madeira

William Chadwick - The Orange Bridge


xxv. a velha ponte de madeira

a velha ponte de madeira
arde sobre as águas
sobre o rio de sangue
que se abre entre fráguas

a velha ponte de madeira
na noite de insónia
grita se a luz do inverno
se perde na memória

a velha ponte de madeira
rompe a paisagem
para que os teus olhos
não se cansem na viagem

(29/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

domingo, 15 de março de 2015

Horror Vacui

Salvador Dali - El eco del vacio (1935)

Com a doutrina de Newton, estabeleceu-se, para toda a Europa esclarecida, a nova representação do espaço. Astros, massas de matéria, movimentam-se - ao equilibrarem-se as forças de atracção e de retracção - segundo leis de gravitação num espaço infinito e vazio.

Os homens podem agora representar-se um espaço vazio, o que antes não podiam, mesmo que alguns filósofos tenham falado do "vazio". Antes, os homens tinham medo do vazio; tinham o chamado horror vacui. Agora, esquecem o seu medo e, finalmente, já não acham nada de mais em eles e o seu mundo existirem no vazio. Os escritores do iluminismo do século XVIII, e Voltaire à sua cabeça, sentiam-se até muito orgulhosos em relação a uma tal representação, passível de ser cientificamente provada, de um mundo num espaço infinito e vazio. Mas tenta representar-te efectivamente, por uma vez, um espaço efectivamente vazio! Não apenas um espaço vazio de ar, mas completamente vazio também da matéria mais fina e subtil! Tenta na tua representação, por uma vez, diferenciar efectivamente espaço e matéria, separá-los um do outro e pensar um sem o outro! Poderás então pensar o nada absoluto. Sobre aquele horror vacui riram-se muito os iluministas. Mas ele era talvez apenas o compreensível tremor diante do nada e do vazio da morte, diante de uma representação niilista e diante do niilismo em geral. [Carl Schmitt (2008). Terra e Mar - breve reflexão sobre a história universal. Lisboa: Esfera do Caos Editores, pp. 66-67]

Este belo livro, do controverso Carl Schmitt, merece ser lido. Uma breve mas funda reflexão sobre a História Universal, a partir da consideração dos elementos terra e mar, uma reflexão sobre a revolução espacial que subjaz à transição de uma geopolítica terrestre para uma geopolítica marítima. O que me interessa agora é, todavia, apenas um pormenor. Esse pormenor é o horror vacui, o horror do vazio. Até determinada altura da história da humanidade existia uma experiência fundamental, a do horror ao vazio. A partir, porém, de certo momento histórico esse horror desapareceu. O momento histórico é o do nascimento da Física moderna e a concomitante alteração da concepção de espaço. De Copérnico a Newton, passando por Bruno, Kepler e Galileu, a antiga representação do espaço, herdada de Ptolomeu e de Aristóteles, foi pulverizada. É esta nova representação que vai racionalizar a relação do homem com o vazio e, ao racionalizá-la, dissolver o horror que o homem sentia perante a possibilidade de vazio. Ora essa experiência de ausência de horror perante o vazio foi-se ampliando. Aquilo que é, primeiramente, um dado físico e cosmológico é transferido para outras instâncias, nomeadamente para a esfera da vida social e das valorações éticas e até políticas. O vazio do universo funda, deste modo, o vazio ético e o vazio das crenças políticas e sociais. Dito de outra maneira, a revolução científica que está na origem da modernidade ocidental é o alicerce do niilismo europeu, ao racionalizar a relação do homem com o vazio. Este é o principal problema que enfrenta, desde há séculos, a humanidade europeia, e por força da extensão da sua influência a todo o globo, a humanidade em geral. (averomundo, 2009/08/29)

sábado, 14 de março de 2015

Da frugalidade islandesa

Eduardo Úrculo Fernández - Algo impossível (1996)

Os islandeses reaprenderam a frugalidade (que é a austeridade voluntária da decisão ética, e não a pobreza imposta pela troika), mas apostaram mais do que nunca na defesa do seu Estado social, que em 2014 absorveu 43% da despesa pública. (Viriato SoromenhoMarques, DN)

É muito curiosa a distinção introduzida por Soromenho Marques entre a austeridade proveniente da decisão ética, a que ele chama frugalidade, e a austeridade imposta por terceiros, por aqueles que surgem como a voz dos credores. Os islandeses, perante a catástrofe trazida pelo sistema bancário, entre outras coisas reaprenderam a frugalidade. Os povos da Europa do sul tiveram de suportar uma austeridade imposta pelos credores, cuja finalidade foi empobrecer as pessoas para salvar os bancos alemães e franceses. Em linhas gerais, estou de acordo com o artigo de Soromenho Marques. No entanto, nele não resulta clara a ligação entre as opções políticas e as decisões éticas dos indivíduos.

Não terá a Islândia tido a possibilidade de resolver o problema da crise, na forma política como o fez, devido à predisposição dos seus cidadãos, num momento muito difícil, para reaprenderem a frugalidade, para viverem, por decisão própria, uma vida mais austera? O facto de a Islândia ser um país luterano é fundamental para explicar esta frugalidade e o importante papel da consciência moral dos indivíduos, inclusive na protecção do estado social. O modelo islandês não é transponível para os países do sul da Europa, onde o peso da subjectividade moral é muito menor e a frugalidade é um elemento estranho à cultura local. Os povos do sul sabem o que é a pobreza, mas não sabem o que é a austeridade como fruto de uma auto-limitação do indivíduo.

No caso das dívidas soberanas do países do sul há dois problemas. O primeiro é o da resposta política que lhe foi dada. Uma resposta idiota e destruidora, como se pode verificar pelos resultados dessa política. Subsiste, porém, um problema cultural. E é esse problema cultural que gerará, ciclicamente, situações difíceis. No sul, as populações vivem ora na pobreza ora na exibição. A ideia de frugalidade, de austeridade pessoal, de sacrifício do prazer imediato para criar riqueza no futuro não existe. O primeiro desejo de alguém que lança uma pequena empresa é comprar um automóvel topo de gama. E esta atitude é transversal à sociedade. O exemplo vem de cima, onde as elites são vorazes e exibicionistas. O princípio de inveja - estrutura central da consciência comum numa sociedade de mercado - gera a disseminação dessa atitude por todo o corpo social. Não vale a pena, por muito jeito político que isso dê, fazer analogias onde não há elementos para analogar. Precisamos de cortar com a política austeritária actual, mas também precisamos de mudar de cultura. Os países católicos do sul e a ortodoxa Grécia deveriam ter a capacidade para continuarem a ser católicos e ortodoxos e, do ponto de vista dos hábitos e da cultura social, tornarem-se luteranos, que é como quem diz fazer a quadratura do círculo. Algo impossível.

sexta-feira, 13 de março de 2015

A questão masculina

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

Mais que as questões de emancipação social e de igualdade da mulher, embora de primeiríssima importância, é a série repugnante de homicídios e o infinito calvário da violência sofrida pelas mulheres que me levam a escrever sobre a questão masculina. Os homens – melhor, alguns, talvez muitos, homens – estão a viver um pesadelo pela contínua alteração dos quadros mentais e das representações sociais acerca dos papéis da mulher e do homem. O facto de ser um pesadelo não significa que seja uma legitimação dos actos de violência ou sequer uma justificação. Pesadelo significa que estão a viver uma situação que não se enquadra nas suas concepções de normalidade.

A definição tradicional de homem como animal racional ainda nos será útil para pensar este problema, desde que lhe adicionemos um outro predicado, o da natureza histórico-social do homem. Que tem isto a ver com a violência sobre as mulheres? Muito, pois a dominação do homem sobre a mulher pode ter raiz na animalidade da nossa espécie. Mais forte fisicamente, o macho fez da sua preponderância física o princípio de dominação e de transformação da mulher em propriedade. Tudo isto dentro de relações sociais que o decurso da história naturalizou e transformou em tradições. São estas tradições que obsidiam ainda hoje a consciência de muitos homens e, perante a frustração do seu desejo, os conduzem à desesperada tentativa de, pela violência, repor a relação de animalidade, onde a mulher é propriedade do homem.

Os seres humanos, porém, são também seres dotados de razão. Ora a razão, contra a força animal e as tradições históricas de dominação, diz-nos duas coisas essenciais. Em primeiro lugar, todos os seres racionais são iguais. Em segundo lugar, como corolário, nenhum ser racional é propriedade de outro. E aqui está toda a questão masculina. Os homens não são donos das mulheres, mesmo que estejam casados com elas. Não têm nenhum direito de propriedade sobre elas nem sobre o seu desejo erótico. Terão de aprender a viver com a possibilidade de serem rejeitados. O homem que, perante a rejeição, violenta uma mulher não é mais homem por isso. É menos. Anula a sua racionalidade e transforma-se num animal humano, mas não num animal racional. Como professor, há muito que descobri que é difícil educar os seres humanos para a razão, talvez mais os rapazes que as raparigas, mas não há outro caminho. Os homens – os machos da espécie – terão de aprender, com a ajuda da lei, a submissão aos mandamentos da razão. Pesadelo ou não, esta é a questão, a questão masculina.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Impressões (XXIV) - calaram-se os pássaros

Paul Gauguin - Snow in Rue Carcel (1883)

xxiv. calaram-se os pássaros

calaram-se os pássaros
às primeiras neves
rasgaram a rua
e a dor era tão gélida
que a vida se deteve
a morte não voltou

dos ramos secos e frios
caíram bandeiras
aquelas que erguias
se o dia declinava
e a sombra descia
no alvoroço da noite

(28/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

quarta-feira, 11 de março de 2015

A pomba, a serpente, a ovelha e o lobo

Juan Soriano - Serpiente (1979)

Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos. Sede, pois, prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas. (Mateus 10:16)

No inconsciente colectivo existe um arquétipo do governante em democracia como pastor, o bom pastor. Espera-se que ele seja simples como as pombas, que esteja perto das pessoas, mas prudente como a serpente, que utilize a razão crítica para se olhar a si e às suas opções. Ora a virtude da prudência é uma coisa que, de há muito, parece arredada da esfera do poder. Todo este triste imbróglio do actual primeiro-ministro com os seus deveres contributivos é um exemplo - o qual é acentuado pela ferocidade luterana com que Passos Coelho tem agido sobre as débeis ovelhas do rebanho - de que a virtude da prudência há muito abandonou as preocupações daqueles que se dedicam à luta pelo pastorado. Podemos perguntar por que razão a prudência da serpente deixou de ser uma virtude essencial na política. Uma resposta aceitável dir-nos-á que os políticos não são prudentes como a serpente porque também não são simples como a pomba. E isso - apesar de se tratar, por norma, de gente simplória - não deixa de ser verdade. Mas a causa principal é que eles não se julgam como pastores e muito menos como ovelhas. Anseiam ser lobos no meio de ovelhas e a sua missão não é proteger o rebanho, mas dizimá-lo.

terça-feira, 10 de março de 2015

Da decifração romanesca

Pablo Picasso - Pareja de pobres (1903)

Há qualquer coisa malévola na desigualdade, e agora eu conheço-a. Actua na profundidade, cava mais fundo do que o dinheiro. O dinheiro de duas mercearias, e mesmo o da fábrica de sapatos e da sapataria, não é suficiente para esconder a nossa origem. A própria Lila, mesmo que tivesse tirado da caixa registadora mais dinheiro do que tirou, mesmo que tivesse tirado milhões, trinta, mesmo cinquenta, não podia esconder de onde provinha. Eu compreendi isto, e finalmente havia uma coisa que eu sabia melhor do que ela. Tinha-o aprendido não nestas ruas mas à saída da escola, ao olhar para a rapariga que se encontrou com Nino. Ela era superior a nós, apenas porque o era, involuntariamente. E isso é insuportável. (Elena Ferrante, The Story of a New Name)

Por que motivo um romance nos ajuda a compreender mais profundamente a realidade existencial dos homens do que a teoria? Veja-se a descoberta de Lenù, personagem e narradora do romance citado de Elena Ferrante. Ela descobre efectivamente o que torna a desigualdade social numa coisa insuportável. E aquilo que é humilhante na desigualdade, aquilo que é malévolo, não é a falta de dinheiro, os bens materiais e espirituais a que se tem acesso, os sítios onde se pode ir. 

O drama da desigualdade não é económico e social, mas estético. É um certo ar que sopra do sítio de onde se proveio, que nenhum dinheiro poderá comprar e que, por estranho que pareça, pode nem precisar de dinheiro. A forma como se inclina a cabeça, o tom de voz, o gesto que se desfaz no ar, as palavras que se usam, a confiança com que se pisa o mundo. Tudo isso que parece fazer de alguém um ser de outra espécie, de uma espécie mais elevada e quase imortal, é um exercício de diferenciação humilhante. E a humilhação atinge o paroxismo porque essa diferenciação não parece o efeito de uma educação mas o fruto de uma natureza radical e ontologicamente diferente. 

Ora eu posso especular sobre os malefícios da desigualdade, sobre a sua estrutura económica, social e cultural, mas nada disse me mostra aquilo que um romance é capaz. Enquanto a filosofia e a ciência vivem na desencarnação conceptual, o romance devolve-nos à vida, aos conflitos que atravessam as personagens, aos seus desejos e frustrações, o que nos permite perceber melhor quem somos e o sentido do nosso lugar do mundo. Por isso é inútil falar da morte do romance, pois este não é o resultado de uma deliberação racional fruto do livre-arbítrio humano, mas uma resposta à necessidade profunda de nos decifrarmos e de nos auto-confrontarmos através da mediação das personagens e das narrativas romanescas.

domingo, 8 de março de 2015

Da nostalgia da lentidão

Umberto Boccioni - A Futurist Evening in Milan (1911)

Talvez tivesse sido com o Futurismo que a humanidade ocidental celebrou de forma mais perspicaz a sua natureza moderna. Se a rejeição do passado, inerente à própria denominação do movimento, é um dos seus traços característicos, a sua dimensão profética derivou-lhe do culto da velocidade, da máquina e das grandes metrópoles. Aquilo que já era então visível tornou-se um destino consumado. Passado mais de um século do início do movimento, agora que a generalidade dos homens vivem em metrópoles desmedidas, que o dinheiro e a comunicação circulam à velocidade da luz, que os próprios corpos - homens e mercadorias - se deslocam, transportados por máquinas cada vez mais velozes, por que motivo olhamos para tudo isso de forma muito menos celebratória e uma estranha nostalgia se apodera da alma? Que nostalgia é essa? Não será a da ausência de máquinas, nem do passado que não vivemos. Não será sequer a nostalgia dos campos perante o horror da vida urbana. A nostalgia nasce de um desejo de lentidão. A velocidade cansa-nos e torna tudo mais superficial. Passamos pelas coisas e elas logo desaparecem. Abre-se assim, no fundo da alma, um vazio. É daí que nasce a nostalgia pela lentidão, e a crença que só ela - essa lentidão que o amor exige - pode preencher.

sábado, 7 de março de 2015

O sentimento de agonia

Arshile Gorky - Agonia (1947)

Talvez seja eu que estou a envelhecer demasiado depressa, talvez seja a própria natureza daquilo a que se convencionou chamar civilização ocidental e a sua tendência para a crise e para a regeneração. Talvez seja isso, mas o sentimento de agonia em que se vive não é apenas a expressão estética de um desgosto que se afirma através da náusea, de um enjoo com a transição da crise para a vida gloriosa. Não, hoje em dia agonia não significa náusea, enjoo. Tem antes um significado mais forte, um significado vital. O sentimento de agonia que parece colar-se a tudo - e não apenas no mundo ocidental - remete para a agonia como o período que antecede a morte, tempo marcado pelo enfraquecimento das funções que sustentam a vida. O que há de espantoso neste processo é que ele se desenrola perante os olhos de toda a gente e num tempo onde não faltam especialistas em salvação do mundo. Mesmo assim o podera para inverter o estado de coisas, para inverter o espírito do mundo, é tendencialmente nulo. Aquilo que foram os valores mais elevados tornaram-se risíveis e o corpo físico já entrou, apesar de ainda emitir sinais de vida, em putrefacção. Pelo menos, em muitos lados, o cheiro é nauseabundo.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Impressões (XXIII) - o velho lírio da tarde

Claude Monet - Blue Water Lilies (1916-1919)

xxiii. o velho lírio da tarde

o velho lírio da tarde
risco de tinta
na penumbra da água
incêndio de azul
nas ervas do matagal

que olhos pairam
sobre o paul
que mãos se escondem
no limbo da noite
na tua luz de cristal

(27/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

quinta-feira, 5 de março de 2015

A monstruosa complacência

Salvador Dali - Monstruo blanco en un paisaje angélico (1977)

Esta embrulhada contributiva de Passos Coelho é uma irrelevância num país como o nosso. Mal a coisa veio a lume, os amigos e os inimigos políticos do primeiro-ministro trataram de ocultar a natureza da coisa, ao transformá-la em facto político. A partir do momento que ela é um caso político, Passos Coelho respira de alívio, tem mesmo a possibilidade de se transformar em vítima dos seus inimigos, os quais, por pura ambição, o desejam ver pelas ruas da amargura. Na verdade, o caso é político, mas não no sentido que lhe damos, no sentido do conflito pela ocupação do poder. É político porque nos conta uma história acerca da nossa pólis e da forma como os actores que a dirigem se relacionam com os seus deveres para com a comunidade. Passos Coelho não terá cometido um crime fiscal, claro. Tem apenas uma relação difícil com as leis contributivas. "É um contribuinte relapso". Até aí não me parece que exista nada de monstruoso. Monstruoso é outra coisa. Monstruoso é o caldo cultural que acha normal que contribuintes relapsos possam governar a comunidade, que a representem, que não sintam qualquer pudor em entrar na vida política. Monstruoso é o facto de não sermos exigentes para com as elites políticas, pois essa falta de exigência é o reverso da nossa complacência para connosco. Uma monstruoso complacência com aparência angélica. 

quarta-feira, 4 de março de 2015

Uma história portuguesa

Luis Gordillo - Doble autorretrato de mi padre (1992)

Esta é a História de uma unidade construída pelo poder político através dos séculos. Por isso, a narrativa teria de ser estribada pela História política, o que não significa que tivesse de ser uma simples crónica de actos dos titulares da soberania - tentámos que não fosse. O grande problema deste género de História é pressupor, como agente, uma entidade que é o produto e não a causa: a nação, a identidade nacional. Em Portugal, com as suas velhas fronteiras na Europa e a sua actual uniformidade linguística e antiga unanimidade religiosa, é fácil presumir a existência de uma comunhão precoce e imaginá-la como a manifestação de uma vontade e uma maneira de ser homogéneas e preexistentes à História. [Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa, Nuno Gonçalo Monteiro (2009). História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, pp. III-IV]

O que a citação nos mostra é que Portugal não é o resultado de uma comunidade com identidade própria que se organiza enquanto Estado, mas o contrário. A nação e a identidade nacional são o produto de uma acção persistente das elites políticas. São elas que inventaram uma nacionalidade para poderem ter um Estado. Em momento algum nos deveríamos esquecer deste facto. Ele é o fundamento das ínvias relações que dizemos existir entre os portugueses e o Estado. Não foram os portugueses que produziram as instituições políticas, foram estas que produziram os portugueses. Daí, o carácter paternal com que o poder sempre olha os cidadãos, e a natureza filial, uma vezes temerosa e outras irresponsável, como os cidadão se comportam perante o seu criador.

Esta é a questão essencial do nosso carácter. Não é a inveja nem o saudosismo. O traço essencial dos portugueses é a menoridade perante um pai omnipresente, um pai que é visto como origem de todos os bens e, acima de tudo, do bem principal, a existência. Eis por que não há em Portugal correntes verdadeiramente liberais, exceptuando uns pândegos semi-distraídos ou semi-analfabetos.

O drama do presente, aquele que é representado pelos partidos e pelo Presidente, nasce aqui. Do PS ao CDS, passando pelo PSD e por Cavaco, todos acham necessário diminuir o Estado, pintar a vida política e económica de tons mais liberais, todos desejam mais iniciativa e gente mais empreendedora. O problema, que o analfabetismo generalizado das elites políticas não lhes permite compreender, é que essa não é a nossa tradição. O Estado ao criar os portugueses não os criou para serem livres do Estado, mas para estarem submetidos a ele. Para tal, educou-os sistematicamente na e para a dependência. Como é que um povo criado durante quase 900 anos para ser dependente, haveria de se tornar, de um momento para o outro, num conjunto feroz de empreendedores? Contra-argumentarão, e as descobertas não mostram a nossa capacidade empreendedora? Não, mostram a visão política e a capacidade de acção da elite política da altura.

Se as elites políticas querem um povo liberal e pleno de iniciativa, então terão de o criar de forma persistente e sem concessões, coisa que não está no espírito do tempo, nem é apanágio da lógica de quem ocupa o poder político. O drama a que assistimos nasce aqui, mas na verdade não é um drama, mas uma comédia de enganos. Só um pai severo poderia educar os filhos na feroz disciplina da liberdade, mas o pai não quer já ser severo – julga-se liberal – e deseja, a cada segundo, que os filhos façam aquilo que ele quer. (averomundo, 2010/01/04)

terça-feira, 3 de março de 2015

Poema 132 - um vestígio de sangue encerra o dia

Odilon Redon - O silêncio

132. um vestígio de sangue encerra o dia

um vestígio de sangue encerra o dia
e a solidão chega no inverno inacabado
trazendo uma rosa de púrpura
para cobrir as pústulas do silêncio

tivesse a vida a sombra de um desígnio
uma sílaba que trouxesse um imperativo
a ordem que transforma o fogo em pedra
e tudo seria como a seda do outono

mas entrámos no inverno que não acaba
a palavra suspende-se gélida na soleira
da porta que não abre nem fecha
no silêncio que cresce sobre o mundo

segunda-feira, 2 de março de 2015

A razão de Platão

José de Ribera - Filósofo, Platão

Nunca fui adepto, antes pelo contrário, da ideia platónica do rei-filósofo. Julgava Platão que só o governante que fosse sábio poderia ser justo. Eu pensava que deveríamos separar a sabedoria contemplativa do filósofo e a técnica da acção política. Começo, todavia, a alterar a minha posição. Olhando para as intervenções da generalidade dos actores políticos, é impossível, com raríssimas excepções, não ficar espantado com a imaturidade daquelas pessoas. O problema não é só português, mas em Portugal ele é demasiado evidente. Uma estranha combinação de imaturidade e de ignorância só pode conduzir um povo à desgraça. Nem quero apontar nomes, mas desde o governo à oposição não há falta deste tipo de pessoa, ignorante, criançola, a brincar à gente crescida, a fingir-se responsável, a mascarar-se de estadista. Começo a perceber que, de facto, Platão tinha razão. A justiça do governante depende muito da sua sabedoria e da sua maturidade  existencial. Oiço aquela gente a esforçar-se por mostrar que existe, a fingir dignitas e gravitas e só me dá vontade de rir. Platão, estás perdoado. Ou serei eu que terei de pedir perdão a Platão?

domingo, 1 de março de 2015

Aquilo que merecemos

Francesco Clemente - Memoria (1996)

Há um problema qualquer connosco. Sim, connosco. O anterior primeiro-ministro está preso por suspeita de condutas inaceitáveis. O actual esqueceu-se, durante anos, de regularizar as suas contribuições fiscais. Ao ler o artigo do Público, parece que Passos Coelho sofre ou sofreu de algum transtorno de memória. Eu não estou a afirmar que Sócrates é corrupto ou que Passos Coelho fugiu aos impostos. Não, não é isso que me interessa. Os tribunais existem para isso. O que me interessa é outra coisa: por que razão não conseguimos escolher gente para nos governar que não seja distraída e que esteja acima de toda e qualquer suspeita? Por que motivo as pessoas que são escrupulosas com o bem comum parecem estar completamente arredadas do poder? O problema não é dos políticos. É nosso, que os aceitamos, que votamos, que os legitimamos. E fazemos isso de tal maneira que eles sabem que as faltas de memória ou interpretações abusivas dos limites do poder nunca serão penalizadas pelos eleitores. Somos nós, portugueses, que criamos e alimentamos todos estes personagens equívocos. Depois, queixamo-nos, mas as últimas sondagens lá indicavam mais de 75% dos votos para os partidos habituais. Não merecemos mais do que aquilo que temos.