sexta-feira, 31 de julho de 2015

Impressões (LVI) - solto do labirinto

Edouard Manet - Corrida de toros (1865-66)

lvi. solto do labirinto

solto do labirinto
vai o toiro
a alma ferida

urra na clareira
túlipa negra
a fúria desmedida

(03/12/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Progressistas e reaccionários

Paul Klee - Angelus Novus (1920)

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (Walter Benjamin, Teses sobre o conceito de história)

É verosímil que Deus tenha amado os homens acima dos próprios anjos. Só esse amor explica tê-los poupado à visão angélica da história, dando-lhes assim o fervor de uma ilusão que os guia na vida. Tivéssemos nós a visão do anjo e saberíamos - não por mera reminiscência ou reflexão, mas por funda intuição - que aquilo a que chamamos progresso - seja qual for a tonalidade que lhe possamos dar - não é mais do que um amontoado de ruínas e uma infindável carnificina, da qual cada um de nós será também vítima, quando chegar a hora aprazada. Embora o anjo possa ser impotente para realizar o desejo de parar o progresso, e assim acordar os mortos e refazer o que ruiu, a verdade é que ele  é dotado de força suficiente para suportar tudo o que o olhar lhe revela.

Os homens, todavia, são demasiado frágeis e, por isso, Deus, do passado, apenas lhes dá a memória frágil e alguns traços dispersos, para que a sua visão se concentre na promessa da novidade e da glória do que há-de vir. A suprema arte divina joga-se toda neste tipo de cuidados paliativos, pelos quais nos faz ver como a suprema bondade da vida, o progresso, aquilo que não é mais do que a acção do negativo, o trabalho incansável da morte. Talvez por isso toda a vida política - que não é outra coisa senão a intersecção dos sonhos e das ilusões de cada um - se resuma ao conflito entre os progressistas, amantes ferozes do progresso, aqueles que, deliberadamente, trazem a ruína e a morte, e os reaccionários, inimigos contumazes desse progresso, aqueles que possuem, ainda que de forma velada, a sensação de que todo o progresso é um exercício de ruína e morte. Dito de outra maneira, todo o conflito político é uma luta entre duas ilusões incuráveis, para as quais não está disponível qualquer solução, a não ser a de que todos seremos levados, queiramos ou não, pelo vento que sopra do paraíso.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Uma questão de arranjo

Salvador Dali - Pareja con las cabezas llenas de nubes (1936)

Implorou: «Elisabeth, diz qualquer coisa», e Elisabeth respondeu lentamente, como se não fossem suas as palavras que dizia: «Não somos suficientemente estranhos um ao outro nem suficientemente íntimos.» «Elisabeth, vais deixar-me?» Elisabeth respondeu com voz doce: «Não, Joachim, creio que doravante caminharemos juntos. Não estejas triste, Joachim, estou convencida de que tudo se arranjará.» (Hermann Broch, Os Sonâmbulos, vol. 1 Pasenow ou o Romantismo, p. 164)

Estamos em finais do século XIX e poderíamos dizer que o oficial Joachim von Pasenow sofre de um excesso, o excesso de romantismo. A idealização da mulher e uma visão salvífica do casamento conduzem Joachim, na noite de núpcias, ao escrúpulo perante a natureza erótica do acontecimento e à incerteza relativa ao futuro do próprio casal. O mundo tinha, porém, mudado decididamente. O pudor de uma aristocracia culpada, tingida pelo romantismo, estava já deslocado perante o triunfo de uma visão pragmática da vida. É nas palavras de Elisabeth - em quem Joachim vê, equivocadamente, a consumação do ideal romântico de mulher - que esse outro mundo se manifesta em toda a sua crueza. Quando o oficial quer descobrir o momento de epifania do absoluto, de tal forma que implora que ela lhe diga alguma coisa, que lhe faça uma qualquer revelação, ela apenas responde com a prudência de uma razão que calcula: «não somos suficientemente estranhos um ao outro nem suficientemente íntimos». É esta suficiência - ou insuficiência - que arrebata a vida amorosa de uma dimensão absoluta e a faz entrar, pela natureza métrica do que é ou não suficiente, na relatividade onde o sexo se torna possível na pragmática da vida diária. E é através da dimensão do cálculo e da relativização do absoluto, transformados já em instinto num novo tipo de mulher, que Elisabeth pode dizer: «estou convencida de que tudo se arranjará.» O mundo tinha entrado na era em que tudo, mesmo o amor e o erotismo, era uma questão de arranjo. E fora isto, não havia qualquer outra revelação a fazer.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Sob suspeita

Arshile Gorky - Abrazo - Good hope II (Pastoral) (1945)

Com eleições marcadas para 4 de Outubro, temos pela frente dois meses e uma semana de penosa campanha eleitoral. Não vale a pena arrancar os cabelos - os portugueses sabem-no bem - por causa da encenação de mentiras e falsas promessas, de discursos aleivosos e práticas dignas de gente desqualificada. Poderá haver excepções, mas essas contarão pouco ou nada. É a natureza da coisa, a qual é reforçada pela verdura da democracia portuguesa (40 anos, numa história de quase nove séculos, é nada) e pela, cada vez maior, imaturidade dos actores políticos. O que me interessa é sublinhar um dos traços essenciais, talvez o mais categórico, pressuposto pelos regimes democráticos.

A importância da democracia estará menos no facto de ela ser, como é habitual dizer, o pior de todos os regimes com excepção de todos os outros. Também não é fundamental ela ser um método de escolha política com menos problemas para justificar a sua legitimação. Mesmo a sua conexão ao Estado de direito e à drástica limitação da violência política não são o essencial. Tudo isto é importante, muito importante, mas o decisivo, aquilo que fundamenta os traços atrás referidos, está em a democracia ser um espelho, no campo da acção política, da natureza falível e finita do homem. Na verdade, uma sociedade ao escolher viver em democracia adopta uma atitude humildade e faz uma confissão: somos todos seres falíveis, a nossa finitude e os nossos limites recomendam prudência e que assim relativizemos os ideais políticos que acalentamos. Nenhum deles espelha uma verdade ou uma mentira absolutas, mas apenas pontos de vista incertos, precários e, acima de tudo, merecedores de contestação.

A importância suprema da democracia reside neste auto-reconhecimento que os homens fazem de si próprios e da sua natureza. Reconhecimento que indica que, qualquer que sejam as ideias e os projectos de acção, todos eles têm a marca da finitude e da falibilidade humana. Não passam de uma visão perspectivística da vida colectiva, visão sempre enviesada pelos interesses dos actores e pela incapacidade estrutural do ser humano. Era bom que este traço - por norma, escondido - da democracia não fosse rasurado, nos próximos tempos, da consciência. E aqui não me refiro à consciência dos políticos e dos militantes, pois esta está toldada pelos seus interesses - políticos ou outros -, mas dos cidadãos eleitores sem compromisso partidário. 

Nós, cidadãos, devemos desconfiar das proclamações que se apresentam como verdades absolutas e relativizar o discurso dos actores em campanha eleitoral, a começar por aqueles que nos são mais próximos ideologicamente. A função dos cidadãos na democracia não é apoiar os partidos como se fossem clubes desportivos, mas exigir que eles - todos eles, a começar naquele em que pensamos votar - se moderem e compareçam, para usar um expressão de tonalidade kantiana, perante o tribunal da razão crítica. O que está em jogo, na democracia portuguesa, não é se o partido A ou a coligação B ganham. O que está em jogo é que os actores políticos sejam obrigados a perceber a sua natureza falível e a reconhecer que estão ali para servirem o soberano, isto é, os cidadãos. Em vez de abraçar causas absolutas e ter excessivas esperanças em homens finitos e mortais, devemos desconfiar e colocar o discurso político sob suspeita.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Impressões (LV) - a cidade tem um rosto

 Vincent Van Gogh - A las afueras de París cerca de Montmartre (1887)

lv. a cidade tem um rosto

a cidade tem um rosto
um cavalo rasgado
a paixão do silêncio

e na pedra de sangue
uma luz amotinada
a crescer do oriente


(02/12/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

domingo, 26 de julho de 2015

Fúria de Bravos - justiça e decência


Aquilo que chamamos o nosso pensamento tem raízes em lugares que, muitas vezes, nem suspeitamos. É preciso um acaso ou um longo trabalho de arqueologia para percebermos como certas ideias sobre o mundo se formaram em nós. Já aqui falei de duas (a Cow-Boy e a 6 Balas) de quatro colecções da Agência Portuguesa de Revistas que me ajudaram a passar muitas tardes no calor insuportável de Torres Novas. Hoje faço referência à Fúria de Bravos. Como as anteriores, esta colecção era composta por pequenos livros (8,5 cm x 12,5 cm) de 64 páginas, com texto corrido e apenas seis gravuras. Não se distinguia, tanto quanto me lembro, em nada das anteriores. Esta diferenciação de colecções não provinha de uma qualquer especialização temática. Respondia antes a uma estratégia editorial e de ocupação do mercado por parte da editora.

Se me perguntar onde se fundam, na minha visão do do mundo, o meu interesse pela justiça (tanto a retributiva como a distributiva) e uma desconfiança, por vezes radical, perante os fortes e os poderosos deste mundo, posso invocar, sem erro, a educação católica recebida por via materna ou o respeito pelos desafortunados do mundo nascido do agnosticismo - ou ateísmo - paterno. Contudo, estas pequenas colecções, aparentemente tão inócuas do ponto de vista social e político, não deixaram de se impregnar no meu espírito ainda não saído da infância. Invariavelmente, o herói confrontava-se com alguém poderoso que, aproveitando a fragilidade da lei, submetia uma comunidade aos seus interesses privados. Mais do que a retórica marxista da minha primeira juventude, é esta visão das aventuras do oeste que inflamou o meu espírito e o fez pender, decisivamente, para o lado dos fracos e dos derrotados da vida, daqueles que anseiam por uma justiça que, como sei hoje em dia, não é a deste mundo. A fúria dos bravos, a que vinha até mim nessas pequenas colecções, não era mais do que o desejo ardente de um mundo justo e decente.

sábado, 25 de julho de 2015

No Reino da Dinamarca

Jorge Carreira Maia - Itineraria. Copenhaga (2015)

Não tenho alma de turista, confesso. Talvez ela - a minha alma - seja paroquial e sedentária, pouco dada a nomadismos. Com isto justifico um desgosto pelo facto de viajar e a prática contumaz de o evitar. Numa época em que todos gostam, animados por um espírito folião, de se estrangeirar por uns dias ou semanas, eu estou assim fora do Zeitgeist. Sei, porém, que isso é uma ficção que construí por não poder fazer aquilo que gostaria de fazer. O meu problema não é viajar mas o não poder ficar, o ter de voltar, o ter de ser turista e olhar para as coisas e a vida com os olhos de turista que colecciona imagens e locais, roteiros e mapas. Não sou um coleccionador. Passar aqui e ali é uma coisa, outra é ficar, beber a vida do local, apossar-se da alma de uma cidade, de uma comunidade, espreitar-lhe para dentro e ver como funciona. Dito isto, nem sempre consigo furtar-me a uns dias estrangeirados e a sofrer no espírito as peripécias do turista. 

A última incursão levou-me a Copenhaga. Acompanhava-me a célebre frase do Hamlet: Algo está podre no Reino da Dinamarca. Eu sei que isso foi ficcionado e que não se deve levar os artistas a sério. Ao aterrar, na verdade, não me atingiu nenhum cheiro nauseabundo. As coisas podem estar podres, mas não cheiram mal. No entanto, se não há maus odores, se não há podridão, a minha visão de turista ocasional detectou, na superficialidade turística que era a sua, uma anormalidade. Estava numa cidade feita para os seres humanos. Num tempo em que homens e mulheres se repartem entre os seus estatutos de coisa que compra e de coisa que é comprada, onde são instrumentos da mecânica urbana, eu estava numa cidade que cumpria o imperativo kantiano que ordena que os seres humanos sejam sempre e simultaneamente tratados como fins e não apenas como meros meios. Não sei como vivem os dinamarqueses, qual é a alma do povo, o espírito da comunidade, mas tudo parece indicar que, aos olhos de quem planeia e decide, isto é, de quem os governa, eles merecem o respeito devido a todos os seres racionais. Agora volto para Portugal, quero dizer para o Hamlet.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Lições gregas

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

A humilhação a que o governo grego foi submetido pelos membros do Eurogrupo, com a Alemanha à cabeça, traz consigo duas lições fundamentais. Comecemos pelo lado do Syriza. Toda a gente que acompanha a vida política e a vida económica sabia duas coisas. Em primeiro lugar, que o Syriza tinha um programa social-democrata e que, apesar da origem política dos seus dirigentes e militantes, não havia nele vestígios de radicalismo revolucionário. Em segundo lugar, desde os alemães, passando pelo FMI e pela instituições europeias, todos sabiam que o Syriza tinha razão relativamente ao problema da dívida. Varoufakis contou, depois da sua demissão, que, nas reuniões, lhe chegaram a olhar nos olhos e dizer: tem razão no que está a dizer, mas vamos esmagar-vos na mesma.

A principal crítica a fazer ao governo grego não é a de ter capitulado. A principal crítica centra-se em ter confundido o poder da razão com a razão do poder. O Syriza não errou na análise económica, errou na análise política. Pensou que, através de uma argumentação sólida, poderia convencer quem não estava interessado em ser convencido. A única preocupação das instituições europeias foi a de impedir uma solução do problema grego vinda de fora da direita ou, no pior dos cenários, dos socialistas. E o Syriza deveria saber disso desde que chegou ao poder. O Syriza confundiu política com moral e arrastou, na sua queda, as expectativas dos gregos e as pretensões de toda a esquerda europeia que não se revê nas posições dos socialistas.

A segunda lição vem do lado dos vencedores, do lado do senhor Schäuble e dos dezoito governos que o apoiaram na liquidação da Primavera grega. A política, mesmo na versão democrática, não é o lugar nem da verdade nem da moralidade. O que está em jogo é o poder, e sempre que a verdade e a moral fazem perigar o poder, os políticos escolhem o poder, e fazem-no sem contemplações. Mesmo que isso implique liquidar a soberania de um povo (foi o que aconteceu com os gregos), mesmo que isso implique opções económicas absurdas e que, de forma reiterada, mostraram que não funcionam, mesmo que isso implique destruir o velho projecto europeu e transformá-lo no diktat da principal potência económica, a Alemanha.

A destruição de um governo democraticamente eleito teve como finalidade mostrar que a democracia deixou de existir na União Europeia. Uma segunda consequência foi tornar evidente que só a vontade e os interesses alemães contam. O corolário, um corolário paradoxal, extrai-se facilmente: os países europeus aceitaram perder a sua soberania, levados pela retórica do fim do Estado-Nação, para que um Estado-Nação, a Alemanha, reforçasse a sua soberania por cima dos despojos dos outros. A vida é o que é, e a política é o lugar onde a vida se manifesta na sua máxima potência.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Impressões (LIV) - o dorso felino do mar

José Salís - Alto Mar (1920)

liv. o dorso felino do mar

o dorso felino do mar
água bravia e branca
em sobressalto de azul
ali onde o animal
entra no labirinto
e grita na noite escura
na maresia que cai
na espuma que a areia
secou em teu coração

(01/12/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Bendita distância


Não há nada como a distância. A 1,6 milhões de quilómetros a coisa tem este aspecto. A Terra, o nosso querido planeta, parece não passar do devaneio de um abstraccionista cansado, não sabendo já o que fazer com cores, formas e luz. Isto permitiria entrar pelo esconso caminho dos predicados divinos. Deus para além de ser o Grande Arquitecto, seria o Grande Escultor e, neste caso, apesar de exausto, seria ainda o Grande Pintor. Mas o tempo não está para especulações sobre os atributo de Deus. O que me interessa é a distância e a esta distância, as grandes encenações da política mundial , para não falar das paroquiais, desaparecem, bem como os nossos dramas e desejos pessoais. Aquilo que o tempo faz, se olhamos as coisas de perto a partir da nossa subjectividade, fá-lo de outra maneira, de uma forma objectiva, o espaço. Tudo o que nos diz respeito fica reduzido à sua real dimensão, isto é, a nada. Restam umas manchas azuis e brancas, numa forma redonda sobre um fundo negro e insondável. Bendita distância.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Impressões (LIII) reclino a cabeça

Salvador Tuset - Anticoli (1913)

liii. reclino a cabeça

reclino a cabeça
perante a dor
enquanto
o tempo passa
e a cal arde
no branco
da parede
na luz breve
do teu fulgor 

(30/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

Utopia e crime

Rudolf Lutz - Utopia (1921-22)

Recupero um antigo texto meu,de 2009/02/17, a propósito do início do julgamento dos hediondos crimes do regime Khmer vermelho, no Cambodja. Não o faço porque a questão khmer tenha voltado à agenda, mas porque o euro, a ideia de moeda única no espaço europeu, é uma utopia e traz com ela tudo o que de mal têm as utopias políticas e sociais.

É muito corrente contrapor às perversões ideológicas, de direita ou de esquerda, a bondade da utopia. A sociedade e a política não podem, porém, ser objecto de utopias. Porquê? Porque a utopia é tudo menos uma coisa bondosa. O que significa a utopia? Significa que a imaginação se libertou da experiência sensível e dos ditames da razão. Um delírio apossa-se das pessoas e aquilo que é apenas uma imagem irreal pode tornar-se realidade. Como a experiência e a razão estão postas entre parêntesis, a imaginação determina a vontade na acção.

Sem qualquer imperativo moral que a coaja, a vontade é agora um veículo perfeito do delírio utópico. Facilmente se percebe como tudo isso se torna num empilhamento infinito de cadáveres. Se a realidade resiste, isto é, as pessoas, então a força fará o que tem a fazer. A palavra utopia, que a tantos corações generosos inflama, é apenas, ao nível social e político, a senha para o crime generalizado.

Isto foi escrito sobre o regime khmer vermelho, mas é a isto que estamos a assistir, ainda que de forma mais subtil, na civilizada Europa, de onde a democracia, para além do ritual formal, desapareceu arrastada pelo vendaval utópico. Sabemos todos, agora, que se a resistência à utopia monetária sobe, a subtileza desaparece de imediato. Falta-nos a experiência final. Se mesmo assim ainda houver alguém que resista, serão enviados, como nos tempos da União Soviética, os tanques?

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Os palhaços ricos

Georges Rouault - Clowns (1929)

Faça, pois um príncipe por vencer e por manter o seu Estado; os meios serão sempre julgados honrosos e de todos louvados. Porque o vulgo deixa-se sempre levar pela aparência e o sucesso das coisas; e no mundo não há senão vulgo e os poucos só têm lugar quando os muitos não têm em que apoiar-se. (Nicolau Maquiavel, O Príncipe)

A natureza da vida política é esta, mais coisa menos coisa. Entre o vulgo há, porém, duas categorias. Aqueles que são seduzidos pelas aparências e olham honestamente como boa a acção que, na verdade, é moralmente inaceitável. Há depois os outros, mais estultos que os primeiros. A estultícia destes reside no facto de que tomam, com ardor desmedido e ódio mal disfarçado, à sua conta os anseios do príncipe, uivando sempre que alguém, por inadvertência, ouse pôr em causa as pretensões dos poderosos. Estão do lado dos fortes porque, faltando-lhes a coragem para estar do lado dos fracos, sentem a necessidade terrível de compensar essa falta através do abuso da voz grossa. Utilizando a metáfora circense, temos a imensa massa de palhaços pobres e um pequeno exército de palhaços que, sendo pobres, se julgam ricos. O mundo é o que é e não seria agora que iria mudar.

domingo, 12 de julho de 2015

O Portugal do "6 Balas"


Uma das colecções de “livrinhos” de aventuras do oeste editada pela Agência Portuguesa de Revistas era a 6 Balas. Se olharmos para a capa descobrimos uma realidade distinta da dos nossos dias. A referência ao preço mostra um país que acabou há 41 anos. O Continente e o Ultramar. O Ultramar era composto pelas colónias portuguesas de África, mas também por Macau e Timor. Ultramar o que está para além do mar. 

In illo tempore, não era indiferente dizer ultramar português ou colónias portuguesas. O regime de Salazar e Caetano não falava em colónias, mas em ultramar. Vincava a ilusória continuação de Portugal do Minho a Timor. Já a oposição falava em colónias, para sublinhar o carácter colonialista do regime. Ainda hoje se pode detectar a proveniência ideológica do falante pela maneira como se refere ao antigo império português.

Para além da questão política ou mesmo ética, há uma questão estética. Há toda uma experiência estética que nos fala da arquitectura colonial ou do modo de vida colonial. As palavras colónias e ultramar, ainda hoje, contêm em si ressonâncias que fazem vibrar as cordas mais íntimas de muitos europeus. Se nos interrogarmos a causa dessa vibração, depressa chegamos à questão da liberdade. Por muito que os europeus se glorifiquem na sua civilização, esta nunca deixou de ser sentida como uma prisão. Para além dos interesses políticos e económicos, a aventura colonial ou a vida ultramarina nunca deixaram de ser sentidas como a libertação, como uma abertura para uma realidade mais ampla e mais decisiva do que a europeia.

Voltemos ao 6 Balas. Seja como for, colónia ou ultramar, o 6 Balas era distribuído por todo esse mundo. No Ultramar era mais caro, era o custo dos transportes e o preço da periferia. Ultramar ou colónias, Portugal não deixava de ser na Europa, esse lugar da liberdade sentido como prisão. O resto foi uma aventura cheia de equívocos e ilusões, aliás como a generalidade das aventuras coloniais europeias, algumas bem mais sórdidas que a nossa. Uma aventura que, apesar de tudo, não deixou de ser um longo devaneio sobre espaços de liberdade não carcomidos pela ferrugem da civilização. Mas sobre tudo isso ainda se está demasiado perto para que a História possa falar com alguma imparcialidade.

sábado, 11 de julho de 2015

Impressões (LII) desce ó grande noite

52 Camille Pissaro - Boulevard Montmartre - Night

lii. desce ó grande noite

desce ó grande noite
sobre a luz do mundo
pássaro de seda
leve tão leve
que as asas ondulam
sobre o mar profundo

noite ó noite que teces
o meu coração
deixa que te toque
para que o júbilo
contamine de água
as trevas e a solidão

(29/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

sexta-feira, 10 de julho de 2015

No reino da estupidez

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

Não sei qual vai ser o destino da Grécia e da própria União Europeia. Escrevo na segunda-feira. Quando o Jornal Torrejano sair já muita água terá passado por baixo das pontes. As leituras do referendo, com algumas excepções, são o resultado do posicionamento ideológico daquele que as faz. Pessoas de direita tendem a amaldiçoar o Syriza, as de esquerda vêem no acontecimento uma extraordinária vitória. Eu não sei, repito, o que o voto dos gregos vai trazer a todos nós. Quero, porém, falar sobre a estupidez, pois muito do que se está a viver é efeito de uma estupidez persistente, contumaz.

A estupidez começa com o facto de a intransigência da União Europeia ter feito cair quatro governos gregos (de centro direita (2), de centro esquerda e de tecnocratas) antes de chegar o Syriza. Foi a União Europeia que, não compreendendo o verdadeiro problema grego (a corrupção e a inexistência de um Estado central devidamente organizado e funcional), alimentou o Syriza, e o fez passar de um pequeno partido de 4% ou 5% de votos para o partido maioritário na Grécia. A estupidez continuou quando, em vez de aproveitar alguém não comprometido com a corrupção, fez tudo para derrubar mais um governo. Um desporto de estúpidos.

A estupidez continua com o desprezo da situação geopolítica da Grécia. Os credores, em todo este processo, visaram humilhar o governo e os governantes gregos, esquecendo que se está numa zona muito difícil na qual confluem os maus ares dos Balcãs – com a Turquia tão perto –, do Mediterrâneo e da Ucrânia. São os credores (de uma dívida cuja natureza está muito mal esclarecida) que, com a sua intransigência, estão a empurrar a Grécia para fora da sua natural aliança ocidental. Ainda não percebi se a senhora Merkel quer na Grécia uma guerra civil ou que ela se torne aliada da Rússia e da China.

O que mais me marcou, todavia, foi o ambiente na Praça Syntagma, na noite em que o Não venceu o referendo. Era um ambiente que parecia o de uma revolução, o do fim de uma ditadura. Marcou-me não por aquilo que o leitor pode estar a pensar. Marcou-me, mais uma vez, pela estupidez das políticas europeias. Como é possível que a Europa das liberdades, a Europa que apadrinhou a libertação dos países do sul das respectivas ditaduras, que incentivou os do Leste a libertarem-se, que comemorou esfusiante a Queda do Muro de Berlim, como é possível que essa Europa se tenha tornado, aos olhos de muitos europeus, o símbolo da opressão. Como é que a estupidez política, o fanatismo provocado pela ideologia e a subserviência ao dinheiro conseguiram transformar o espaço do sonho da liberdade no pesadelo de um campo de concentração?

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Escrever na terra

Pieter Brueghel el Viejo - Jesus Cristo e a mulher adúltera (1565)

No episódio biblíco da mulher adúltera (Jo 8, 1-11) há, para além da não condenação da mulher, uma outra coisa que me deixa perplexo e que merece meditação. Quando os Escribas e os Fariseus trouxeram a mulher apanhada em flagrante delito, disseram a Cristo que a lei mosaica mandava apedrejar tais mulheres e, de seguida, perguntaram-lhe: Tu pois o que dizes? A resposta de Cristo foi inclinar-se e escrever na terra. Só perante a insistência é que, endireitando-se, lhes dá uma resposta oral: o que estiver sem pecado, que seja o primeiro a atirar uma pedra. Depois, inclinou-se e voltou a escrever na terra. O que causa perplexidade é este escrever na terra. Como interpretar tal acto?

Esta escrita de Cristo só se pode compreender na relação com as personagens dos Escribas e dos Fariseus. Os primeiros eram doutores da lei mosaica, os segundos, defensores de uma aplicação estrita dessa mesma lei. Uma primeira leitura da escrita de Cristo é aquela que é mais corrente: a lei mosaica deveria ser substituída por uma nova lei, a que estivesse fundada no perdão. Há uma confrontação clara entre duas leis, dois discursos e duas regras morais para a acção. Mas aquilo que é problemático, na minha óptica, é o facto do discurso ser agora impresso na terra, no pó e não na pedra (símbolo de eternidade).

Isto abre uma outra perspectiva de confronto, porventura mais interessante: à lei eterna dada por Deus a Moisés contrapõem-se, agora e por iniciativa de Cristo, o filho de Deus, uma lei temporal, evanescente, mutável e adaptável às situações. A intemporalidade e eternidade das coisas terrenas desaparece, como desaparecem as palavras que escrevemos no pó da terra. A lei, inclusive a lei moral (Cristo não parece ser um kantiano), torna-se, pelo acto de Cristo, puramente histórica, algo que se escreve, mas que o tempo apaga. As leis que regem os homens não são eternas, mas resultam das circunstâncias históricas e do grau de consciência dominante em cada época (quem estiver livre de pecado, que atire a primeira pedra). Por este acto, Cristo rouba a humanidade à ciclicidade mítica, reflexo da imutabilidade e perenidade do divino, e fá-la entrar na linearidade histórica. É disto que nós, ocidentais, somos herdeiros: Cristo trouxe-nos a história e as suas metamorfoses. (averomundo, 2009/01/25)

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Erguer e derrubar muros

Muro de Berlim

O parlamento húngaro aprovou a construção de um muro, na fronteira com a Sérvia, com 175 km, para travar imigrantes (aqui). Um muro, mais um. Envelhecer é, em alguns aspectos, uma dádiva. Poupa-nos à indignação e ao entusiasmo. Eu sei que há coisas indignas, e que me causam asco, e sei que há coisas vibrantes, a que atribuo valor. Mas a idade torna todas essas coisas um pouco risíveis. Lembram-se, os que têm idade para isso, do entusiasmo com a queda do Muro de Berlim? Uma euforia generalizada. Não haveria mais muros no mundo, patati... patatá... Na verdade, esses entusiasmos são inúteis, bem como as indignações. Há um muro que cai mas, com a idade, sabemos que outro se erguerá num qualquer lado. Um triunfo das nossas ideias num sítio será, mais cedo ou mais tarde, acompanhado por uma derrota noutro. O avanço da idade traz a perda da energia, mas também traz a sabedoria com que descobrimos que entusiasmos e indignações são um fútil consumo dessa mesma energia. Hoje os húngaros erguem um muro, para que amanhã seja derrubado. E, enquanto se erguem e se derrubam muros, os homens andam ocupados. Na verdade, a nossa espécie é incorrigível e o melhor mesmo é que ela se entregue a uma contumaz austeridade energética. 

terça-feira, 7 de julho de 2015

O que está em jogo no caso grego?

Pablo Picasso - Minotauro y yegua muerta delante de una gruta y niña con velo (1936)

Por que motivo deve haver um acordo generoso entre os credores e a Grécia? Por que motivo é muito provável que não haja acordo nenhum? Para responder a estas duas questões precisamos de compreender a natureza do problema grego. Aparentemente, o problema grego é financeiro, a enorme dívida e a necessidade urgentíssima de dinheiro para o dia-a-dia. Isto é só a aparência do problema. O verdadeiro problema grego é político e tem duas vertentes. Uma vertente política interna e outra externa.

Internamente, o que se passa, neste momento, é que as instituições políticas gregas são muito frágeis. Dezenas de anos de corrupção, ausência de uma máquina fiscal a funcionar, o uso e o abuso do Estado e dos bens públicos de forma descontrolada. Este Estado viveu, um pouco como o português, do excesso de dinheiros europeus. O problema é que as actuais políticas financeiras da União Europeia não apenas ameaçam o antigo funcionamento parasitário do Estado grego, como ameaçam a própria existência de um Estado a funcionar. Elas estão a potenciar o aparecimento de um território caótico, onde o Estado de direito se torne uma miragem, ou então uma guerra civil, o que é a mesma coisa. O primeiro problema grego é político. Está a ser tratado com se fosse financeiro. Não o é. O problema financeiro é, em larga medida, o resultado do problema político. Por que razão os parceiros europeus não percebem isto? Já lá vamos.

Externamente, a Grécia é um lugar muito, mas mesmo muito sensível. Situada num vespeiro, os Balcãs ou a Península Balcânica, a Grécia está próxima, demasiado próxima, do mundo muçulmano, tanto da Turquia como do mundo mediterrânico. Para tornar este lugar mais explosivo é preciso perceber que os ventos, digamos assim, da Ucrânia chegam à Grécia muito rapidamente. Para não falar, da comunhão espiritual entre gregos e russos, devido à Igreja Ortodoxa. A Grécia está num local para onde parecem convergir muitos dos problemas que preocupam o Ocidente. Imaginemos que a Grécia entra em convulsão. Que ela se torna um Estado pária, com as instituições políticas desagregadas. O que vai acontecer à Europa? Já imaginou? As políticas da União Europeia, desde que a crise foi declarada, já derrubaram quatro governos. Têm tentado derrubar, desesperadamente, o quinto. Este com mais fervor. Por que motivo? Já lá vamos.

Contra as pretensões do actual governo grego surgem dois argumentos. Um, de matriz popular mas posto a correr pelos políticos europeus, é o argumento moral: os gregos são uns malandros, não querem trabalhar, só querem viver à custa dos outros. Um segundo argumento está ligado à tentativa de impor uma visão do Estado mínimo, da destruição das estruturas do Estado social e de empobrecimento da população pobre e da classe média (os outros nunca são afectados, pois o dinheiro já voou há muito). É o argumento ideológico, o argumento que tenta impor uma visão da sociedade como se fosse a única possível.

Tudo isto, porém, são aparências. O que está em jogo, por parte dos parceiros europeus, é uma questão política pura e dura. O que está em jogo é a defesa de uma ideologia, claro, mas também dos poderes dos vários governantes europeus. Uns, na Alemanha e nos que ainda não caíram nas dificuldades do Sul, sabem que a ajuda à Grécia, a resolução de um problema complexo, lhes pode fazer perder o poder nos respectivos países. Outros, como em Portugal e em Espanha, sabem que resolver o problema grego mostra a natureza absolutamente injusta das suas políticas internas, da sua subserviência à Alemanha, e lhes trará pesadas derrotas eleitorais.

O que nós estamos a assistir não é a um problema financeiro, mas a um problema político. O governo grego tenta tirar partido da sua situação geopolítica, para resolver aquilo que foi criado pelos PSD (ND) e PS (PASOK) lá do sítio com a cumplicidade da União Europeia. Os parceiros europeus tentam desesperadamente que o Partido Popular Europeu não seja varrido dos governos onde está. A questão ideológica e o poder nos vários países são os únicos motivos que fundamentam a posição da União Europeia perante a Grécia. Não é a questão do dinheiro (todos sabem que os gregos assim ou assado nunca pagarão a dívida) nem a questão moral. 

É o poder, o santo poder em cada um dos países que está em jogo. E é este poder que, travestido de moralidade financeira, está a jogar o mais perigoso dos jogos: lançar a Grécia no caos. O que significa lançar os Balcãs na confusão e daí para a frente toda a Europa se pode incendiar. Portanto, cada vez que se fala da situação financeira da Grécia está-se a falar de outra coisa. Está-se a falar de política, de ganhar eleições, de não perder o poder. É por tudo isto que deve haver um generoso acordo com os gregos (a paz na Europa vale muitas dívidas gregas). Mas é provável que não haja acordo, pois o actor político persegue em primeiro lugar o seu poder pessoal, assegurar a sua eleição nacional, e não o bem comum. 

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Impressões (LI) - a rosa descai

Stanislas Lépine - Péniche sur la Seine (1870)

li. a rosa descai

a rosa descai
pura e límpida
sobre as águas

barco baldio
de onde avisto
as margens

se as pétalas caem
sobra a noite
sobra a viagem

(28/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

domingo, 5 de julho de 2015

A colecção Cow-Boy


Há um momento em que se dá, em mim, a transição da leitura de histórias aos quadradinhos (livros de cow-boys) para histórias em texto corrido. Mais do que as aventuras da Enid Blyton, a colecção Cow-boy, que apareceu em 1961, ainda antes de eu aprender a ler, fez essa mediação entre a literatura de raiz popular e as leituras eruditas. A colecção  era composta por livrinhos com 64 páginas, páginas pequenas com a dimensão de 8,5 x 12,5 cm, e 6 ilustrações. Li dezenas ou centenas, nem sei bem, de historietas destas, não apenas da colecção referida, como de outras que apareceram a partir do sucesso desta. Talvez um dia destes fale aqui dessas colecções.

Estes livros da Cow-Boy continham histórias do oeste americano, pequenas epopeias marcadas por um problema fundamental: o da justiça. Havia sempre um cow-boy justiceiro, um bandido malévolo, pessoa influente, por norma, e uma rapariga que casava com o herói, quando casava, pois este poderia bem ser um solitário cavaleiro errante. Nem sempre a justiça se casava com o amor, mas constituíam-se como ideias reguladores que faziam sonhar o leitor no início da adolescência. Era um mundo simples, o das histórias e o daqueles dias em que eu as lia. Às vezes, confundimos a simplicidade com a bondade, mas não é a mesma coisa. Naqueles tempos, não havia professor que não franzisse o sobrolho se descobria um aluno a ler este tipo de literatura. Eu lia e marcaram-me antes que Eça, Camus, Kafka, Proust ou os poetas chegassem. Seja como for, eu era feliz ao ler aqueles livros e isso basta. (averomundo, 2007/08/06, texto refeito)

sábado, 4 de julho de 2015

O camisola amarela

Andrés Nagel - Ciclista (1981)

O meu tempo de infância e de adolescência é um território povoado pela utopia desportiva. Não que eu fosse praticante de qualquer modalidade. Nunca tive qualquer habilidade ou capacidade para tal coisa. O mundo do desporto, porém, entrava-me pela casa dentro na figura do meu pai. Não apenas pelo seu benfiquismo mas por ter sido, por diversas vezes, dirigente desportivo. Tudo isto vem a propósito de ter começado hoje o Tour de France

A minha paixão desportiva tinha três modalidades alvo. O futebol - estávamos nos tempos de ouro do Benfica -, o hóquei em patins - eram as extraordinárias sagas dos lusitanos contra os castelhanos, mesmo que estes fossem catalães ou galegos - e o ciclismo. O ciclismo era o desporto de Verão. Não era o Tour, porém, que concentrava a atenção - isso só aconteceu com a chegada do grande Joaquim Agostinho, um sportinguista estimado por toda a gente -, mas a Volta a Portugal, o nosso tour bem à imagem do Portugal dos Pequenitos, essa conspiração do professor Bissaya Barreto e do Arquitecto Cassiano Branco.

Era uma corrida doméstica, quase amadora, onde os três grandes clubes nacionais continuavam a dura peleja  entre eles interrompida pelas férias do futebol. Enquanto lá fora os ciclistas corriam, como hoje, por marcas de frigoríficos, de canetas ou de cigarros, em Portugal as paixões desportivas incendiavam-se em tornos dos ciclistas do Benfica, do Porto e do Sporting. Quando a Volta passava por perto, o meu pai levava-me a ver os corredores. 

Era um momento mágico. Ouvia-se a informação no rádio e esperava-se, esperava-se, até que eles, envolvidos numa comitiva quase circense, se aproximavam, nas suas camisolas rutilantes, e, unidos numa teia a que se dava o nome de pelotão, passavam altaneiros diante dos meus olhos, numa velocidade vertiginosa, como se fossem a seta do tempo, aquela que só descobrimos quando envelhecemos. Eles vinham e iam-se num abrir e fechar de olhos, aquele que separa o sonho da vigília. Nem o camisola amarela eu conseguia ver.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

O homem e a máquina

Francisco Lorenzo Tardón - Robot (1984)

O estranho caso do robô que matou um homem. Eis um título digno de um romance policial de Earl Stanley Gardner. Segundo notícia do Público, na fábrica da Volkswagen em Baunatal, na Alemanha, um robô esmagou contra uma placa de metal o jovem operário que o estava a montar. Consta que a causa do acidente foi um erro humano. Seja como for, este evento não deixa de ter um peso simbólico devido aos intervenientes.

Não se trata de pensar uma possível revolta de máquinas, dotadas de pensamento e vontade contra, o ser humano. Trata-se de uma outra coisa muito mais insidiosa, pois é ao mesmo tempo visível e invisível. Os dispositivos técnicos, onde se incluem artefactos simples, máquinas complexas ou robôs que imitam o homem, são pensados e procurados como auxiliares do homem. E, no entanto, eles trazem neles um estranho potencial de esmagamento da própria humanidade.

O esmagamento do jovem operário da Volkswagem é apenas um símbolo do esmagamento que todos os dispositivos técnicos podem fazer ao homem. Desde as armas aos computadores, a técnica oferece um vasto leque de opções que anulam o homem, matando-o, ferindo-o, substituindo-o nas funções económicas, lançando-o no desemprego.

É esta capacidade de transformar o homem em coisa nenhuma que é difícil de pensar, pois os dispositivos técnicos são constituídos por uma ambiguidade central: são libertadores dos homens e, ao mesmo tempo, opressores. Por norma, a humanidade tende a saudar cada novo invento técnico com uma libertação do esforço e das necessidades físicas.

Por detrás desta nova liberdade vive oculta uma ameaça cujo poder destrutivo e opressor só é percebido quando se manifesta. Donde vem este poder? Da técnica? Não. Ele vem do homem, pois no dispositivo técnico concentra-se as aspirações humanas à liberdade e o desejo de dominar e, por vezes, aniquilar o outro. Os dispositivos técnicos são um espelho da nossa alma. (Texto também no Jornal Torrejano)

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Impressões (L) - a terra exaltada

John Singer Sargente - Olive Trees at Corfu

l. a terra exaltada

a terra exaltada
sobre a tarde
uma ilha onde
a dor te atravessa
e os anos passam
inscritos na luz
tronco a tronco
na sabedoria
que só as árvores
as velhas árvores
trazem consigo

(27/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Persistir no erro

Pérez Villalta - La ilusión permanente (1975)

É quase impossível não falar da Grécia, mas não é isso que eu quero fazer, apesar de citar um excelente texto sobre o assunto da autoria de Dominique Strauss-Khan. O que me interessa, neste caso, é o título On learning from one mistake's (Aprender com os próprios erros). O que me interessa é a incapacidade das pessoas e das instituições em aprender com os próprios erros. Por vezes, reconhece-se o erro mas as práticas mantêm-se inalteradas. Uma das razões pode ser o facto de se estar perante um hábito contumaz ou de uma tradição, os quais se transformaram numa segunda natureza, petrificada e regulada por leis necessárias, quase como as da natureza. 

Contudo a incapacidade de aprender com os próprios erros parecer radicar no orgulho da própria razão. Este orgulho, todavia, nasce de um medo. Mesmo quando a razão reconhece que errou ela fá-lo com reserva de consciência. Na verdade, não acredita mesmo que errou, pois a crença errada tornou-se a substância da própria razão, a sua verdadeira razão de ser, a sua identidade. O reconhecimento do erro, muitas vezes, não passa de uma tentativa de persistir no próprio erro, pois a razão sente-se ameaçada na sua própria natureza. Ela prefere a ilusão permanente, e persistirá no erro mesmo que desencadeie uma tragédia inominável.