segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Tempo de Outono

Nicolas Poussin - Outono (1664)

A minha crónica para o número de Novembro da revista A Barca.

O Outono tornou-se uma metáfora, talvez demasiado frágil, para os dias que nos estão a ser dados a viver. Escrevo enquanto a cidade de Bruxelas está em estado de alerta máximo e Paris tenta reerguer a cabeça, após os atentados do 13 de Novembro. O Outono é um tempo de indecisão, no qual a força solar do Estio cede, pouco a pouco, à queda da luz e se abre à noite invernosa. Ainda há pouco anos a Europa era o lugar luminoso que, grande parte do mundo, gostaria de copiar, o sítio no qual uma vida livre e despreocupada se aliava à capacidade de gerar riqueza e distribuí-la. Isso acabou.

Hoje a Europa começa a ser o lugar onde, lentamente, o medo se instala, onde as ruas se enchem de polícias e de militares, onde os cidadãos olham para o lado desconfiados. A Europa e os seus valores tornaram-se o alvo a abater. A monstruosidade sangrenta e delirante, o terrível dionisismo feito de sangue, morte e alucinação erótica, trazem-nos um pesadelo para dentro de casa e mostram-nos que os valores da civilidade não são dados adquiridos. Começamos a perceber que podemos ser expulsos do pequeno paraíso que nasceu, após duas guerras mundiais, do medo de nos matarmos de novo uns aos outros.

O carácter outonal dos nossos valores alia-se ao Outono da nossa demografia. E isto é um convite para aqueles que odeiam a liberdade, a igualdade entre homens e mulheres, que não suportam que cada um decida por si mesmo o que há-de fazer com o dom da vida. É um convite à intrusão do inimigo. Está a chegar o momento em que nós, europeus, teremos de decidir o que queremos. Já não se trata de distribuição de riqueza, de acesso a lugares e a reconhecimento. Trata-se, pura e simplesmente, de decidir se queremos continuar a ser europeus. Trata-se de tomar a decisão se este tempo outonal se vai transformar, ou não, no Inverno do nosso descontentamento.

domingo, 29 de novembro de 2015

O Cristo do Facebook

Juan Barjola - Ecce homo (1986)

Foi através do Público que cheguei a esta página do FacebookJesus Daily. A página tem milhões de seguidores e acumula likes como nenhuma outra. Se se perder algum tempo a ver as fotografias que pretendem representar Cristo, descobre-se o que resta do cristianismo e de Cristo neste tipo de manifestações. Uma moral vagamente consoladora das misérias humanas e um Cristo ao nível do terapeuta familiar. Embora este tipo de "religiosidade" seja uma marca das seitas protestantes, o próprio catolicismo, talvez devido à concorrência, alberga muitos impulsos no mesmo sentido. Entre o Cristo que oferece o sacrifício, o seu próprio, como modelo para um caminho de transformação e emancipação, e o Cristo dos milhões de likes nada há em comum. O cristianismo nunca pretendeu ser uma terapia de adaptação ao mundo, pelo contrário. Se os responsáveis das Igrejas cristãs, nomeadamente da Católica e das Ortodoxas, pensarem que tamanha profusão de comentários e de likes é o sinal de uma revivescência dos ideais cristãos, de uma aspiração ao retorno a uma sociedade dirigida pela inspiração crística, estão bem enganados. Estes fenómenos são o sintoma de uma decadência que já nada esconde. (averomundo, 2011/09/07)

sábado, 28 de novembro de 2015

Uma oportunidade para a direita

Porta Missé - Pensador (1981)

A derrota eleitoral da coligação PSD/CDS e o novo governo de António Costa são uma oportunidade para a direita – nomeadamente, o PSD – se repensar e se reposicionar no tabuleiro político. A direita, como quase todos nós, demorou muitas dias até perceber que tinha perdido as eleições, pois as vitórias eleitorais dependem do apoio maioritário no parlamento e não de qualquer outro critério. Percebida a situação, a direita entrou numa fase que mistura o desejo de vingança – ainda uma recusa da realidade – e o luto pelo poder perdido.

Os dias, porém, vão passar e darão lugar à pergunta fundamental para essa direita: por que razão perdeu as eleições, apesar de ter a seu favor praticamente toda a comunicação social e da manipulação sistemática que fez da realidade? Esta pergunta, que nunca será feita publicamente, pode gerar dois tipos de resposta. Uma resposta dirá que a direita não perdeu mas que o António Costa é um malandro e que só espera um apocalipse qualquer para retornar ao poder. Esta é a resposta que a esquerda mais gostaria que fosse dada.

Uma segunda resposta é aquela que obrigará a direita a olhar para dentro e perceber em si mesma a causa da sua derrota. Olhar para estes quatro anos e avaliar de forma fria e objectiva o que fez. E não me refiro ao que a troika impôs. Refiro-me ao modo escolhido para seguir a troika e às opções ideológicas escolhidas. Durante quatro anos, a direita entregou-se a um delírio ideológico fanático, sem ter qualquer consideração para com a realidade do país. Combinou uma espécie de vingança com a herança do pós-25 de Abril com a ideia estulta que poderia abandonar uma política moderada e centrista e tornar Portugal um paraíso liberal. O resultado foi extraordinário: além de perder 700 mil votos e a maioria de que dispunha, conseguiu esse feito inimaginável de unir os três partidos de esquerda.

Quando a direita perceber que a causa do seu afastamento do poder não está em António Costa nem na Constituição, nem em mil delírios ressentidos que povoam as redes sociais, mas naquilo que fez, as coisas mudarão. Nessa hora, ela pode desenhar um novo projecto político mais moderado, onde combine um incremento do espírito liberal no país, sem atacar o Estado Social, fazendo deste não apenas a almofada da liberalização mas um dos motores dessa mesma liberalização (foi isso que a Alemanha fez depois da II Guerra Mundial e já tinha feito no século XIX). Então a direita estará pronta para voltar ao poder sem que isso seja o prenúncio de uma catástrofe social, sem que isso signifique a destruição das nossas frágeis classes médias e o descarado apoio aos mais poderosos, sem que isso tenha que representar um pavor para parte substancial da população. 

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A bondade moral da mentira a si mesmo


Um estudo (link desactivado) publicado na revista Nature chega a uma interessante conclusão. Possuir uma visão adequada da realidade é uma desvantagem competitiva. Os indivíduos que possuem excesso de confiança, quando em situações de competição por recursos cujos benefícios sejam suficientemente grandes em relação aos custos, têm vantagem competitiva sobre os que têm uma visão adequada da realidade. Por outro lado, quando se está perante conflitos com um custo elevado, a selecção favorece aqueles que têm uma visão subavaliada das suas capacidades. Em caso algum, aqueles que possuem uma auto-avaliação realista e adequada são seleccionados.

Deste ponto de vista e contrariamente à moral tradicional, a auto-ilusão e a mentira sobre si mesmo são um bem, enquanto a perspectiva moral que ordena o auto-conhecimento induz uma desvantagem. O célebre oráculo de Delfos, que ordenou a Sócrates conhece-te a ti mesmo!, nada sabia dos processos de selecção. Não bastava a já velha diatribe de Nietzsche contra a verdade. Agora ficamos a saber que é melhor possuir uma imagem ficcional e desadequada da nossa própria realidade para podermos sobreviver. Assim sendo, o Nietzsche de a Origem da Tragédia tem completa razão. A preocupação do homem teórico, a preocupação com a verdade enquanto adequação do conhecimento à realidade, é uma patologia. (averomundo, 2011/09/14)

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Livro do Entardecer (28)

Edward Hopper - White River at Sharon (1937)

28. se a noite vinha sobre o rio

se a noite vinha sobre o rio
uma dor pairava no silêncio
suspensa sobre a água
presa na erva das margens

quando as flores secavam
e a luz do  inverno se velava
acendíamos uma vela
na tristeza que então nascia

(averomundo, 2010/01/26)

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Um lugar de punição

Samuel (imagem daqui)


Dá-nos um rei que nos governe, como o têm todas as nações. (I Samuel 8:5)

Se procuro na minha memória qual o texto que fundamentou, em última análise, a minha visão do poder político, descubro que o essencial deriva do capítulo oitavo do primeiro livro de Samuel (Antigo Testamento). Perante a insistência dos anciãos de Israel, Deus, por mediação de Samuel, dá um rei aos israelitas, mas, como se pode inferir da leitura de todo o capítulo, dá-o como um castigo. O poder político é um lugar de punição, de exercício da violência e do mal. É um texto fundamental para se perceber a política e não se ter qualquer ilusão sobre a sua natureza.

A modernidade - fundamentalmente, desde o século XIX, embora isso não seja uma novidade moderna - apresenta uma estranha ambiguidade acerca do poder. Por um lado, talvez por uma meditação deste mesmo texto de Samuel, gerou doutrinas de abolição (anarquismo e marxismo) do poder político ou da sua restrição até a um Estado mínimo (neoliberais e libertários de direita). Por outro, os defensores destas doutrinas - talvez com a excepção dos anarquistas - batem-se com um extremo ardor pelo controlo desse lugar de exercício da violência legítima. E batem-se, em contradição com a sua avaliação negativa do Estado, porque deixaram imiscuir-se, nessa visão arcaica do Estado como punição, a ideia de que ele seria um lugar de distribuição do bem.

Esta ambiguidade é o horizonte onde nos movemos ainda nos dias de hoje, é ela que aquece os corações e desencadeia as paixões políticas e o conflito político, seja este regulado por regras democrático-constitucionais, seja regulado pela força sectária presente nas tiranias. Mas se soubermos dominar as nossas paixões e deitar um olhar frio sobre a natureza do poder, sobre a essência da acção daqueles que lutam por o alcançar ou manter - mesmo daqueles que nós presumimos do nosso lado - não podemos deixar de voltar ao velho texto de Samuel. Isso não quer dizer que não seja consolador deixar que as ilusão sobre o poder nos invadam e tornem a nossa vida mais tranquila. Na verdade, foram os israelitas que exigiram ser castigados.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

António Costa

Santi di Tito - Nicolau Maquiavel (século XVI)

Creio também que seja bem-sucedido aquele (príncipe) cujo modo de proceder condiz com a qualidade dos tempos e, de modo semelhante, que seja mal-sucedido aquele de cujo proceder os tempos discordam. (Nicolau Maquiavel, O Príncipe,  cap. XXIV)

Terminou hoje uma parte dos trabalhos de António Costa. Como todo o político, o poder é o objectivo central, para não dizer único, da sua acção. A carreira do agora indicado primeiro-ministro é um caso notável de eficácia na luta pelo poder. O que é notável, no percurso efectuado, é a sua adequação aos tempos. Chegou a ministro ainda com Guterres. Foi também ministro com Sócrates, mas as eleições para a Câmara de Lisboa pouparam-no a um longo convívio governativo com um dos mais detestados primeiros-ministros de Portugal. Na Câmara de Lisboa construiu uma forte solução de poder que lhe valeu uma reeleição. A partir daí traçou um percurso, através dos mais inusitados meios, para alcançar o lugar onde agora chegou. Como um príncipe da Renascença, liquidou, de caminho, António José Seguro, encostou, através de resultados medíocres, Passos Coelho e Paulo Portas às boxes, infligiu a maior humilhação política a Cavaco Silva (ter de indigitar um primeiro-ministro que não só não é da sua área, como ainda por cima é apoiado pelo BE e pelo PCP), calou a recém-descoberta ala direita do PS e estendeu, disfarçado de abraço, um nó corredio à volta do pescoço do BE e do PCP. Até aqui, António Costa foi impetuoso e submeteu a fortuna e esta concedeu-lhe os seus favores.

Como nos ensinou Maquiavel, os trabalhos não acabam quando se alcança um principado. Há que mantê-lo. Para tal, e para além de saber cuidar dos aliados e ter bem consciente o conjunto de fantasmas sedentos de vingança que gerou pelo caminho, há duas coisas que António Costa, se não quiser ser um príncipe efémero, tem de ter em conta. Em primeiro lugar, estar muito atento aos tempos, ao que Hegel chamou Zeitgeist (o espírito do tempo). Esta atenção significa saber adaptar-se a cada novo tempo, ter a flexibilidade suficiente para não se pôr em desacordo com o tempo. E os tempos são muito instáveis, entregam-se a estranhas danças. Ao príncipe é exigido que seja bom dançarino. Em segundo lugar, dar atenção à Némesis, essa deusa encarregada de abater todo excesso, toda a desmesura, todo o orgulho do príncipe. Pior e mais perigoso do que haver muitos esqueletos nos armários é a falta de medida do governante. Talvez Costa tenha aprendido com a desmedida de Sócrates e de Passos Coelho, talvez. Os deuses concederam-lhe o poder, mas António Costa, se não quiser despertar a ira desses mesmos deuses, tem de perceber que é mortal; isto é, saber qual é a sua medida. Veremos se a sua ascendência bramânica lhe mostra os limites que são os seus.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Acção livre

Filippo Tommaso Marinetti - Action (1915-16)

A partir do Renascimento a natureza activa dos homens tornou-se uma obsessão. Primeiro, na Europa; depois, um pouco por todo o lado. Não é que anteriormente os homens não se entregassem à acção, mas davam-lhe um lugar subalterno perante as diversas formas de contemplação. Este endeusamento da acção - do carácter activo e transformador do homem, endeusado pelas ideologias do liberalismo e do socialismo - acabou por amalgamar num único conceito aquilo que é estruturalmente diferenciado. É diferente a acção que é praticada como resposta a uma necessidade puramente fisiológica (agir para comer ou para satisfazer as pulsões sexuais) daquela que é praticada para a realização de um projecto onde se vise obter alguma coisa de exterior (enriquecer, reconhecimento da comunidade, etc.). Diferente destas é a acção onde o agente se testa a si mesmo, onde procura afirmar e fortalecer a sua vontade. Por fim, a forma suprema de acção é aquela em que o agente não tem qualquer finalidade, não espera qualquer fruto da acção e não se liga aquilo que dela pode provir. O que distingue os três primeiros tipos de acção é a causa final, a finalidade que move o agente. A última é marcada pela ausência de causa final. Só ela é, na verdade, uma acção livre.

domingo, 22 de novembro de 2015

Livro do Entardecer (27)

Emil Hansen - Light Sea-Mood (1901)

27. um excesso de azul e céu

um excesso de azul e céu
esconde a manhã que passa
e deixa o brilho que te move
empalidecer na ilha
a que não mais voltarei

evitemos as confidências
basta estar sentado
sobre a cegueira das palavras
e ver o tempo declinar
no murmúrio das gaivotas

(averomundo, 2010/01/24)

sábado, 21 de novembro de 2015

O retorno de Diónisos

Nicolas Poussin - Midas e Baco (ou Diónisos) (1625)

Quase por toda a parte, estas festas tinham no centro um terrível frenesim sexual, cujos fluxos faziam submergir toda a instituição familiar e as suas regras mais veneráveis; nelas se desenfreava a bestialidade mais selvagem da natureza humana até ao ponto de se chegar àquela mistura horrível de prazer e de crueldade que sempre identifiquei como sendo «o filtro das feiticeiras». (Friedrich Nietzsche, A Origem da Tragédia)

Tem se dado pouca atenção, nesta história do auto-proclamado Estado Islâmico, à natureza orgiástica que rodeia a sua acção. Não há nos seus agentes apenas a bestialidade mais selvagem, uma bestialidade que derrama a morte por todo o sítio onde passa. Há também um frenesim sexual consubstanciado na instituição de escravas sexuais ou no cultivo imaginário das orgias futuras que no paraíso esperam os crentes. Esta presença do sexo, do sangue, da violência e da morte é, na prática, um enorme ritual em honra não do Deus das religiões monoteístas mas do velho Diónisos, que parece ter despertado de uma longa letargia. O prazer na morte e a volúpia que parece arrastar tanta gente é um sinal indicador de que o irmão de Apolo acordou e, metamorfoseado, chama os seus adeptos, prometendo-lhes não apenas um paraíso orgiástico no além mas a glória de ser a renovação na Terra, renovação que nasce da submersão de todas as instituições, incluindo as mais veneráveis. Esperemos apenas que o velho Apolo acorde, para que a lei e a ordem voltem ao mundo.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Um problema de conhecimento

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

Como é que o Ocidente não se apercebeu da emergência do fundamentalismo islâmico? – pergunta-se. A resposta que me parece mais pertinente centra-se na incapacidade ocidental para, primeiro, identificar o fenómeno e, segundo, para o interpretar e compreender, depois de o ter identificado. Esta impotência cognitiva, levou o Ocidente não só a descurar o fenómeno como a tornar-se um dos seus principais potenciadores.

O Ocidente ficou prisioneiro de duas narrativas e ambas tinham em comum a incapacidade para lidar com uma visão do mundo pré-moderna. Em primeiro lugar, no Afeganistão, preso à narrativa da guerra fria, o Ocidente, para combater os soviéticos, aliou-se a toda espécie de gente. Nessa gente estava já presente o desejo de não apenas derrotar os soviéticos como de impor a dominação de uma interpretação radical do Islão. Isto, porém, não foi compreendido.

Com a queda do Muro de Berlim e o fim da guerra fria, o Ocidente, liderado pelos neo-conservadores americanos, ficou preso à narrativa da exportação da democracia e da economia de mercado para o Médio-Oriente. Para tal, com os resultados que todos conhecemos, não hesitou em invadir o Iraque e em aliar-se a grupos fundamentalistas que destabilizaram outros regimes políticos da zona.

Em Dezembro passado o New York Times publicava declarações de um comandante de Operações Especiais  norte-americano que confessava não perceber o chamado Estado Islâmico. Os americanos não só não conseguiam derrotar a ideia por trás do movimento, como nem sequer conseguiam compreender a ideia.

Ora todas as alianças que o Ocidente fez com estes grupos – alianças movidas pela avidez económica, por ilusão ideológica e por motivos geoestratégicos – se fundamentaram nesta radical incompreensão. Onde o Ocidente via aliados estratégicos, estes olhavam para a aliança como uma forma de crescer para depois enfrentarem os próprios ocidentais.

Que ideia é aquela que está por detrás destes grupos? A ideia tem uma parte negativa e uma parte afirmativa. Negativamente, estes movimentos recusam, com a excepção da tecnologia, tudo o que vem do Ocidente. Recusam todos os valores nascidos com a modernidade: o papel do indivíduo, a igualdade entre homens e mulheres, a separação entre religião e política, a existência de liberdade política, religiosa, de expressão e de opções morais.

Afirmativamente, defendem a imposição de uma visão literal do Alcorão e das palavras de Maomé. Querem um mundo centrado na religião, onde toda a vida não seja outra coisa senão milícia para impor a palavra do Profeta. E é isto que, devido à sua estranheza, nós, ocidentais, não conseguimos perceber.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Um fundo sem fundo

Alexander Mikhailovich - Composição n.º 99 (1920)

Um texto de 2007 para os dias que correm.

Ter um pensamento profundo é não ter pensamento algum. Agarramo-nos à sensatez da razão, mas isso é apenas a máscara do nosso desespero, a recusa da vertigem, a negação do saber que reside no fundo de cada um, bem junto aos intestinos: sob o frágil tabuado da razão está um poço sem fundo. É nesse poço que, nos pesadelos nocturnos, sentimos que estamos a cair, a cair por toda a eternidade. Como nos sonhos, também acordados nos certificamos que esse fundo sem fundo é apenas a sombra de um sonho. Não é. (averomundo, 2007/10/10)

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Livro do Entardecer (26) o alvo

Odilon Redon - Desnudo, begonia y cabezas (1912)

26. o alvo

de que boca bebo a água que mata
e me rouba as palavras
que tenho para dizer

não há inocência nesses lábios
nem muro onde se oculte a voz –
sombria a natureza que te coube
erva queimada pela geada

sem casa ou bosque que te acolha
nem a flecha escura do desejo
de ti fará cobiçado alvo

(averomundo, 2010/01/24)

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Modernização e resistência

Mario Sironi - Composizione futurista (1911)

Um aspecto pouco focado nos acontecimentos de Paris, da passada sexta-feira, prende-se com a sua relação com os processos de hiper-modernização pelos quais passa o mundo. Para além da querela entre modernos e pós-modernos, convém salientar que estamos a assistir, devido à revolução tecnológica em curso, à elevação ao paroxismo de algumas características centrais da modernidade. Hoje em dia, as sociedades ocidentais - e muitas outras - são marcadas por um hiper-individualismo, por uma mobilização de pessoas e matérias-primas ilimitada, por um ritmo de vida marcado pela velocidade da luz e, como consequência, a contínua destruição de todos os laços comunitários, desde a família às próprias comunidades políticas, religiosas e sociais.

Quando o subjectivismo moderno se tornou, a partir da Revolução Industrial, um individualismo feroz, a grande reacção dá-se na emergência dos movimentos socialistas, anarquistas e comunistas, todos eles marcados por uma estranha combinação entre a nostalgia das massas proletárias pela sociedade anterior, marcada pela ordem clara, segura e imutável onde estava atribuído a cada um o seu lugar, e um sobre-iluminismo dos intelectuais que viam na ascensão da burguesia um passo decisivo, mas a superar, no caminho de uma nova ordem onde todos voltassem a encontrar um lugar seguro. De certa maneira, a reacção à modernização, nesta fase (séculos XIX e XX), foi o resultado de um compromisso entre o mundo antigo de uma tradição vinda da Idade Média (a memória nostálgica das massas deserdadas devido à Lei dos Cercados) e uma elite Iluminista que não se revê na visão individualista e burguesa do Iluminismo.

O desenvolvimento dos processos de modernização (poderemos falar de hiper-modernização) acabou por mostrar os limites desta primeira reacção, o que ficou simbolizado pela Queda do Muro de Berlim. Aquilo que parecia, contudo, a libertação dos processos de modernização ilimitada (ou de hiper-modernização ilimitada) de todos os constrangimentos e obstáculos acabou por gerar um novo antagonismo, no qual, com excepção do uso da tecnologia, foi evacuada qualquer ligação ao Iluminismo e à modernidade. Esta nova reacção - que se manifesta nos fundamentalismos religiosos, entre os quais o islamismo radical é o mais activo e espectacular - não propugna já um compromisso entre as antigas formas de vida comunitária e a modernidade. Pelo contrário, ela pretende pura e simplesmente retornar a uma tradição comunitarista, de onde sejam banidos todos os valores resultantes da modernidade: individualismo, laicismo do Estado, autonomia moral dos indivíduos, liberdade de opinião, de crença religiosa, de perspectiva política, igualdade entre géneros, respeito pelas orientações sexuais diversas, etc.

Aquilo que parece desenhar-se, se olharmos a história do mundo a partir do Renascimento ou do início da Modernidade, é que o desenvolvimento dos processos de modernização são cada vez mais rápidos e intensos, e, nessa crescente rapidez e intensidade, destruidores das formas tradicionais de vida, mesmo que estas sejam muito recentes e geradas pela própria modernização. Esta dinâmica interior à modernização (esta revolução permanente que lhe está na base)  gera aquilo que lhe resiste. E o que lhe resiste afasta-se cada vez mais dessa própria modernização. O radicalismo fundamentalista religioso, com a sua aspiração ao retorno a uma tradição pura, é a consequência dos actuais processos de hiper-modernização, como em tempos o anarquismo e o comunismo o foram em relação à modernização introduzida pela Revolução Industrial inglesa. Se assim for, poderemos esperar que a continuação da intensificação dos actuais processos hiper-modernizadores vá gerar formas de reacção ainda mais voltadas para o passado, formas ainda mais mostruosas, mas que têm de ser lidas como imagens especulares invertidas dos processos de modernização. 

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Morte colectiva (I)

Alfred Rether - Der Tod als Erwurger (1885)

Fala-se, hoje em dia, muito em morte colectiva, massacre, carnificina, genocídio. Mas não há morte colectiva, apenas mortes singulares: este, aquele, a outra, aqueloutra, num nunca mais acabar. (averomundo, 2007/09/12)

domingo, 15 de novembro de 2015

Paris, a razão e os pretextos

Paul Signac - Le canal Saint-Martin, Paris (1833)

Crónica publicada no Jornal Torrejano online.

Os acontecimento de ontem, sexta-feira, em Paris deixaram os ocidentais, mais uma vez, perplexos. E a perplexidade, tantas vezes repetida, é o sintoma, o terrível sintoma de uma profunda incompreensão do fenómeno com que estamos confrontados. O pior dos equívocos –  aquele em que muitos ocidentais, presos a categorias analíticas completamente desfasadas e anacrónicas, continuam a cair – é o que confunde os pretextos com a razão deste tipo de acontecimentos.

Os pretextos para estes acontecimentos podem ser quaisquer uns. A intervenção ocidental no vespeiro do médio-oriente, a avidez e o cinismo desses mesmos ocidentais na abertura de estradas para o mercado livre. Pretextos também podem ser as situações sociais de muitos imigrantes. Isso, contudo, são pretextos. Servem para detonar a acção, mas não são a razão última e fundamental. Mesmo esses pretextos são cada vez menos enunciados como causa da acção. Cada vez mais esta gente diz o que quer e ao que vem. Os ocidentais ouvem, mas não acreditam. Pensam que são loucos, irracionais ou outra coisa qualquer que permita explicar o terror sem ter de se olhar para os seus verdadeiros motivos.

A razão do terror e da violência reside num outro lugar, num lugar que nós, ocidentais, julgamos indisputável e, por isso mesmo, não conseguimos perceber que seja esse o alvo e a razão desta crescente campanha e desta guerra sem quartel. No cerne de tudo isto está a recusa absoluta da modernidade e dos seus valores, isto é, do individualismo, da igualdade entre homens e mulheres, da liberdade de expressão e de acção, do laicismo do Estado, da submissão de qualquer crença ao exame crítico do tribunal da razão. Estes valores são, para nós, tão inquestionáveis que pensamos que são universalmente respeitados. Esta gente, porém, não quer isto e quer impor ao mundo a sua visão e o respeito pela sua tradição. No cerne de todos estes acontecimentos está um conflito entre a tradição e a modernidade.

A partir da últimas décadas do século XX o mundo intelectual ocidental – o lugar onde se faz a interpretação dos caminhos que a vida e as sociedades trilham – abriu um debate feroz entre os defensores da modernidade e os defensores da pós-modernidade. A verdade, porém, é que já nessa época se movimentavam, na sombra e aproveitando o descuido ocidental, as forças da pré-modernidade, as forças anti-modernas, aquelas forças que, à excepção da técnica, não aceitam nenhum dos princípios sobre os quais construímos o nosso modo de vida.

Não apenas cresceram fora da Europa, como se instalaram no coração da Europa. Estão dispostas a tudo e, crentes na razão divina, estão convictas de que o tempo está a favor delas. O que estamos a assistir, há já muitos anos, é apenas ao início de um processo. Começa por semear o medo e a desconfiança no território do inimigo. E quanto mais tempo os ocidentais confundirem pretextos com a razão deste tipo de acção, mais fracos ficarão e mais facilmente este tipo de força crescerá no mundo. Esta gente sabe ao que vem, os seus dirigentes fazem leituras e conhecem a história. Fundamentalmente, sabem o que não querem e sabem o que querem. Como se viu ontem, mais um vez, não brincam em serviço e não têm medo de morrer.

sábado, 14 de novembro de 2015

Livro do Entardecer (25)

Salvator Rosa - Warrior

25. pálido e velho guerreiro

pálido e velho guerreiro
perdeste o fulgor
e os braços pendem-te
ao longo do corpo
ferido e sem alma

contra ti ergueu-se
a espada em alvoroço
rasgou-te a carne
e devorou a memória
para que a noite viesse

(averomundo, 2010/01/23)

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Derrotas adiadas

Anthony van Dyck - Portrait of Charles I of England (1635-40)

A observação persistente da vida democrática permitiu-me descobrir uma coisa que, porventura, já terá ocorrido a muita gente. Em política não há vitórias, mas apenas derrotas adiadas. Tarde ou cedo os vencedores de um dia serão os derrotados do outro; e caso não o sejam em campanha eleitoral, serão as suas ideias que, numa dada hora pareciam tão irrevogáveis, se perderão sob o brilho de outras. A democracia – todos regimes políticos, em última análise – é um produtor de derrotados. O talento de um político reside na sua capacidade de adiar o momento em que a sua derrota, ou a das suas ideias, se torne manifesta.


O adiar da derrota decisiva é uma estratégia complexa que passa pela a atenção a duas coisas. Em primeiro lugar, uma atenção ampla à realidade sobre a qual se governa. Esta atenção deve ser exaustiva, diria mesmo obsessiva. O governante é como o pastor que tem de dar conta de todas as ovelhas (o chamado poder do pastorado, na conceptualidade de Foucault). Assim que começa a desprezar a realidade, a derrota começa a desenhar-se. Em segundo lugar, uma atenção, não menos profunda, a si mesmo. Não é apenas a negação da realidade que é perigosa. Também a incapacidade de suster o narcisismo e a desmedida são mortais para o político. Na verdade, toda a vida política é uma luta contra si mesmo, uma negação dos seus impulsos mais fundos, aqueles mesmo que conduzem o político para a acção política.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

A expulsão do lar

Gustav Klimt - Palácio sobre a água (1908)

- Será que Sua Senhoria tem alguma intenção religiosa? – inquiriu Diotima.
- De momento, descobriu apenas que na história da humanidade não há retrocessos voluntários. O que dificulta as coisas é não termos também nenhum progresso aproveitável. Convenhamos que é estranha esta situação em que não podemos avançar nem recuar, e ao mesmo tempo vamos dizendo que o presente é insustentável. (Robert Musil, O Homem Sem Qualidades,  vol. I, p. 370)

A história da humanidade – que não é outra coisa senão o trabalho do negativo, para relembrar Hegel – parece ser um sítio infrequentável. Não por uma questão de pudor moral, mas por aquilo que Robert Musil coloca na boca de Ulrich. Para o passado não há regresso voluntário. O futuro também não é o lugar onde nos conduza um progresso aproveitável e o presente, bem o presente é, como sempre, insustentável. Poder-se-ia fazer deste excerto de O Homem Sem Qualidade uma quantidade de leituras políticas. Limito-me a constatar, contudo, que o ardor romântico com a História pode ser uma doença ou coisa ainda pior. Nós já não nos lembramos, mas houve um tempo em que os homens não se viam como ser históricos. Olhavam para o tempo não como uma linearidade que avança ininterruptamente do passado para o futuro, mas como um ciclo de eterno retorno, uma imagem plasmada da ciclicidade das estações do ano. Nós já não podemos retroceder a esse tempo, pois a História apossou-se de nós e obriga-nos a viver nela. Obriga-nos a viver nesse sítio infrequentável, no qual, a cada momento, nos sentimos vítimas de um decreto que nos expulsa da própria casa. A História, essa terrível invenção romântica, é o lugar onde o homem perdeu o lar, onde foi expulso da sua própria casa.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Hipótese excêntrica

Xaime Quessada - La guerra (1967)

Se fizermos um mapa dos conflitos que assolam o nosso pobre planeta, o que é que descobrimos? Comum a todas eles é a presença do Islão. Que saída poderá haver para uma civilização biologicamente pujante mas culturalmente falhada? Não vejo outra senão a guerra. A guerra que o Islão traz consigo não deriva tanto da religião como da biologia. Há sempre a possibilidade de interpretar os factos de uma maneira mais ousada, digamos: a natureza revolta-se contra uma cultura que a tem aniquilado e está disposta a pôr o planeta a ferro e fogo. O Islão seria não a voz de Deus, mas a dessa natureza rebelada contra a humanidade. Quantas vezes são as hipóteses excêntricas que iluminam o nosso caminho? (averomundo, 2007/11/04)

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Livro do Entardecer (24) espera

Pierre Auguste Renoir - Reclining Nude (1890)

24. espera

sob o astro da manhã
erguias madeixas
cabelos negros e frios
as mãos sujas suadas
um ar de devastação

juntavas naufrágios
eram belos – exclamavas
e sentavas-te no chão
à espera do inverno
coberta de sal e maresia

(averomundo, 2010/01/22)

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

O prazer da dialéctica

Alfonso Parra Domínguez - Realidad dialéctica (1977-1978)

Robert Nozick dirá pouco a muita gente. Se se quiser, porém, uma fundamentação filosófica do liberalismo radical (aquilo que na gíria política de esquerda dá pelo nome de neoliberalismo) então dever-se-á ler o seu importante ensaio, de 1974, Anarquia, Estado e Utopia, onde se encontrará uma defesa consistente do estado mínimo. Esta obra, a única que Robert Nozick escreveu na área da filosofia política, tornou-o muito conhecido na esfera da filosofia política, mas acabou por colocar na sombra todo o seu restante trabalho.  Ora tendo recebido hoje The Nature of Rationality, uma reflexão sobre a razão prática datada de 1993, abri o livro e comecei a ler a Introdução.

É logo no primeiro período do texto que Nozick sublinha o equívoco presente nesse estranho empreendimento a que se dá o nome de filosofia. Escreve ele assim: A palavra filosofia significa amor da sabedoria, mas aquilo que os filósofos realmente amam é argumentar. E, para que não restem dúvidas, termina o primeiro parágrafo com a seguinte asserção: Proclamações ou aforismos só são considerados filosofia se contiverem e delinearem argumentos.

E nisto resume-se o equívoco que arrasta muita gente para o campo da filosofia. Um desejo de alcançar a sabedoria num lugar onde se cultiva a paixão pela argumentação e o prazer da dialéctica. O desejo da sabedoria tem em vista a descoberta do caminho para uma vida boa e digna de ser vivida. Aquilo que a filosofia tem para oferecer é, porém, muito mais modesto: a capacidade de argumentar na defesa de certas opções e de contar-argumentar outras. Este treino dialéctico, fundado no uso válido da nossa razão, acaba por nada nos dizer sobe esse bem que faria da minha vida uma vida boa. Se alguém pensar que encontra na filosofia um caminho de salvação, então que se desengane. Ali é um lugar de paixões, de paixões por argumentos e contra-argumentos, de paixões pelo uso da razão, e não há nada como a paixão para levar os homens à perdição, como muito bem se sabe.

domingo, 8 de novembro de 2015

Uma iluminação de domingo

Roberto Matta - Disasters of Mysticism (1942)

Por vezes retiro do acaso uma luz especial que me ilumina, que me deixa ver a causa maior do desastre que eu sou. Poderia argumentar – e não me faltariam excelentes e abundantes argumentos – que todos nós, desde os que vivem uma vida no subterrâneo da existência até aos que ocupam o mais glorioso lugar, seja no mundo ou nos altares, somos um desastre. Mas com o desastre dos outros posso eu bem. Estava eu a meditar por que razão as tardes destes domingos de outono soalheiros, cujo meio-dia é tão promissor, são tão propensas à irrealidade da angústia e da melancolia quando, por um súbito impulso, abro o blogue de Francisco Louçã, no Público, e leio, para parecer um homem preocupado com os nossos sarilhos quotidianos, o post Tudo depende da perspectiva. Não me interessa, para aqui, o conteúdo do texto. O leitor, se interessado, é só clicar no link e ler.

Fiquei siderado quando li: tudo se podia resumir assim: os factos são os factos, mas tudo depende sempre da perspectiva. Não se pense que aquilo que me iluminou foi a combinação de um realismo que crê na realidade dos factos e da humildade de um perspectivismo que confessa a existência de infinitas perspectivas sobre essa realidade factual. Não. O que me raptou da melancolia do crepúsculo dominical foi a afirmação os factos são os factos. Está aí a chave do meu desastre singular, do sem sentido de toda a minha existência. Por muito que me esforce, falta-me este sentido de realidade que, com uma humildade perspectivística, é confessado por Louçã.

No fundo de mim, reconheço-o e confesso-o contrito, nunca acreditei que os factos são os factos. Dito de outra maneira, nunca houve em mim uma réstia de realismo. Sempre pensei – ou, para ser mais exacto, há muito que o penso – que os factos não passam de meras interpretações que unificam e sintetizam o heteróclito da experiência, mas que, na verdade, não existe essa coisa última a que todos nós, se movidos pelo sadio bom senso, chamamos factos. É evidente para mim, nesta hora sombria que antecede a noite de domingo, que não acreditar na existência de factos, não acreditar nessa coisa que é a realidade, não poderia trazer-me nada de bom e que, por isso, a minha vida, por decreto dos deuses da factualidade, não poderia ser outra coisa senão um grande desastre, o qual só é poupado aos homens bons que acreditam na existência de factos. Fez-se noite.

sábado, 7 de novembro de 2015

O tempo da sensatez

Jeroen Anthoniszoon van Aeken - Extracción de la piedra de la locura (1475-1480)

Volto à questão política. Platão, no final daquilo que se convencionou chamar a Alegoria da Caverna, diz que é necessário conhecer o Bem para se ser sensato (ou sábio) na vida privada e na vida pública, isto é, na vida política. Deixemos de lado a vida privada. Porquê a sensatez na vida política? Porque nesta a insensatez, a loucura, a embriaguez do poder é o que pior pode haver para uma comunidade. Todo o radicalismo - e há radicalismos que se aprumam em falas mansas e de aparência responsável (foi o que se assistiu nos últimos quatro anos) - é uma forma de insensatez, um sintoma de uma loucura que destrói os vínculos de uma comunidade. Ora esta sensatez adquire-se, segundo Platão, pelo conhecimento do Bem. Esta referência ao Bem não deve ser compreendida apenas dentro da economia do idealismo platónico. Esta referência é suscitada pelo poder que é, na ausência de sensatez e equilíbrio, o lugar do mal. Estamos, de novo, num tempo em que a sensatez é o mais precioso dos bens públicos.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Livro do Entardecer (23) palavras

Guillermo Pérez Villalta - Fuente de las palabras y los pensamientos (1988)

23 palavras

acabaram-se as palavras
roídas pela astúcia dos dias
chegavam e partiam
e acendiam a noite e as trevas
o fervilhar das águas
onde tudo então nascia

(averomundo, 2010/01/20)

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

A Europa e o Cristianismo

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

Raras vezes estive de acordo com a senhora Merkel. Há duas ou três semanas, porém, ela disse uma coisa com a qual concordo. Ao ser questionada sobre o perigo da islamização da Europa devido à vaga de refugiados, declarou que a melhor resposta ao perigo da islamização é os europeus terem a “coragem de ser cristãos, de fomentar o diálogo (com os muçulmanos), de voltar à Igreja, de se aprofundarem na Bíblia”. Eu não usaria estas palavras, mas diria que a única forma de defender a Europa, enquanto espaço de liberdade e de civilização, é o retorno ao Cristianismo.

Há coisas que a actual cultura relativista fez esquecer. Fez esquecer que a liberdade e a separação entre a Igreja e o Estado foram uma criação dentro da cultura cristã, sem a qual não teriam emergido. Fez esquecer que o cristianismo trouxe consigo avanços civilizacionais notáveis, nomeadamente a abolição de sacrifícios humanos e uma ética de amor ao próximo. Fez esquecer que os grande desenvolvimentos culturais do mundo moderno só foram possíveis pela existência do cristianismo e das suas Igrejas.

É verdade que a Igreja Católica tem períodos negros, como o da Inquisição ou o do alinhamento com regimes políticos sórdidos. É verdade que, vezes demais, as Igrejas cristãs foram muito pouco cristãs. É verdade que muitos valores que hoje estimamos como fundamentais foram defendidos por personalidades irreligiosas e ateias. Apesar disso tudo, é inegável o papel central do cristianismo na formação do que há de melhor na cultura ocidental.

No dia em que as nossas instituições políticas estiverem radicalmente cortadas do seu fundamento cristão, podemos crer que tanto a liberdade como a laicidade do Estado estarão já mortas. A defesa destes valores, contudo, não se faz pela adopção de um Estado confessional, mas através de uma sociedade civil em que os valores do cristianismo sejam vibrantes. Não de um cristianismo como o praticado no passado, mas de um cristianismo que responda aos anseios e à errância do homem contemporâneo, que o relembre da sua condição de ser mortal e da relatividade dos seus desejos, mas que não o expulse da vida espiritual.

Só um cristianismo que domestique o lobo – aquele que a competitividade das sociedades modernas acordou dentro de nós – tem capacidade para fornecer uma identidade aos europeus. Uma identidade que lhes permita perceber e dialogar com o outro, aquele que chega com outra crença e outros valores. Só sabendo claramente quem somos, quais sãos os nossos valores e aquilo de que não estamos dispostos a abdicar podemos integrar e dialogar com quem nos procura.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Como um pobre pateta

Francis Bacon - Crucifixion (1933)

O primeiro dever de um homem que acredita na necessidade e eficácia do verídico é a independência, quero dizer, o começo por si mesmo.  (Herberto Helder, Photomaton & Vox, p. 159)

Um dia também cri nesta máxima de Herberto Helder. Acreditei que o meu dever era a independência, o começar por mim mesmo. Hoje olho com nostalgia esse tempo de pura ingenuidade, fruto do engodo lançado sobre os homens no início da modernidade. Começar por si foi a doença que Descartes e Locke disseminaram no mundo. Um com o seu cogito o outro com a lenda da tabula rasa. A patologia, nascida na filosofia, propagou-se pelas artes, que é lugar de onde Herberto Helder fala. Eu posso crer na necessidade e até na eficácia do verídico - mesmo na poesia - mas não consigo compreender como pode o verídico provir dessa mentira que é a independência e o começar por si. Por mim, mas talvez seja a minha limitação congénita, sinto-me há muito na encruzilhada, crucificado entre caminhos que não comecei, que não resultam da minha independência e que riem de mim se, por acaso, perpassa no meu espírito qualquer pretensão de autonomia. Entre o orgulhoso cogito, ponto de partida da afirmação do verídico, e o pobre pateta do D. Quixote, que sonha continuar as aventuras de cavalaria, sei muito bem que o meu lugar é ao lado deste último.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Na vale da minha mudez

Rufino Tamayo - O homem perante o infinito (1950)

“Aquilo que é contrário é útil; aquilo que luta forma a mais bela harmonia; tudo se faz pela discórdia”. Neste fragmento do filósofo grego Heraclito, escrito há cerca de 2500 anos e recolhido por Aristóteles na sua Ética a Nicómaco, está toda a sabedoria do mundo. Tudo o que existe é tocado pela contradição, o conflito e a discórdia. Mesmo a mais bela harmonia nasce da luta. O mundo das coisas e dos homens é conflitualidade sem fim e a paz perpétua não passa de um belo mas infundado desvario.

A verdade deste mundo é crua, amarga e sem cura. Nessas horas em que tudo se torna assim tão nítido, há que voltar ao essencial. “Coloca uma palavra / no vale da minha mudez / e planta florestas de ambos os lados, para que a minha boca / fique toda à sombra.” (“Salmo 4”, in Tempo Aprazado).

Deixemo-nos instruir pela voz da poetisa Ingeborg Bachmann. Num mundo onde todos se julgam com direito à palavra, Bachmann mostra o silêncio como a nossa condição primordial (no vale da minha mudez) e a palavra que habita a nossa fala como uma dádiva vinda não se sabe de quem (coloca uma palavra /…). Esta é a humilde condição do Homem: condenado, na origem, ao silêncio, recebeu em sua boca, como um dom, a graça da linguagem. Na sua sabedoria, porém, a poetisa adverte: não te orgulhes do que te deram e não julgues ser tua a palavra que a tua boca profere. Por isso, os versos finais surgem como uma oração para que não se caia em tentação de afirmar seu aquilo que foi depositado em sua boca (planta florestas de ambos os lados / para que a minha boca /fique toda à sombra).

Colocar a boca à sombra e deixar refulgir a palavra; escutar em vez de falar. Eis, para os homens, a mais difícil das disciplinas. Já Heraclito o tinha compreendido quando, no fragmento 19 recolhido por Clemente, diz “eles não sabem escutar nem falar”. Ao perderem a disciplina da escuta, perderam a humildade essencial de quem se sabe devedor da palavra que usa, e tornaram a linguagem não no sinal que pacifica os homens pela comunhão do escutar e do dizer, mas numa arma de arremesso no eterno conflito que o animal humano entretém por toda a Terra.

No ruído que infesta o mundo, na multiplicidade de palavras com que os homens enchem o espaço público e escondem a sua verdadeira e frágil condição mortal, há uma rasura da verdade: a palavra, a fala, a linguagem, nunca é minha, nunca é daquele que fala, mas um dom que se recebe para se transportar até à próxima geração. A palavra foi-nos dada como sinal de um outro mundo para além do mundo onde o conflito, a discórdia e a contradição reinam. O orgulho desmedido do homem, todavia, apropriou-se dela como uma arma terrível contra o outro. Como o burro de Heraclito, escolheu a palha em vez do ouro.

Para além da sabedoria do filósofo há, porém, a sapiência do poeta. Não seria inútil colocar a boca à sombra e retornar ao vale da mudez. (Jornal Torrejano, Setembro de 2005)

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Livro do Entardecer (22)

Adolph von Menzel - Costume study of a seated woman (1848 - 1851)

22. e tudo ia para além da esperança

e tudo ia para além da esperança
o caminho que para ti me levava
um raio de sol na poeira do dia
o animal que na noite fulgurava

se o outono vinha e sobre ti descia
espalhando folhas nas tuas mãos
um incêndio crescia na floresta
onde ardia o fogo do  meu coração

(averomundo, 2010/01/19)

domingo, 1 de novembro de 2015

A tirania da mediocridade

Tom Wesselmann - TV Still Life (1965)

Toda a minha vida vivi rodeado de jornais e de informação. Quando nasci havia a imprensa escrita e as emissoras de rádio. A RTP dava os primeiros passos em Portugal. A televisão cresceu comigo, diversificou-se, secundarizou jornais e rádio, viu chegar a internet e o mundo da comunicação e da informação digitais. Os meios de comunicação foram aumentando e o ruído dessa informação cresceu à minha volta. Sempre fui condescendente e, por vezes, surpreendo-me com um espírito de coleccionador de inutilidades.

Na universidade aprendi que Hegel teria dito, talvez no início do século XIX, que a leitura matinal do jornal é a oração da manhã do homem moderno. Estaríamos perante uma meditação sobre os caminhos do espírito do mundo. As possibilidades de oração, de lá para cá, como referi em cima, multiplicaram-se. Há anos que não compro um jornal de papel, mas tenho quatro assinaturas de jornais em versão on-line. O problema é que, passadas tantas décadas de esforçada oração ao espírito do mundo, o deus a que a informação presta culto, descobri há muito, não é mais do que um ídolo, um ídolo com pés de barro.

Nos últimos tempos, uma voz obscura fala dentro de mim. Não fala, murmura. O murmúrio que oiço diz-me que é tempo de frugalidade e que não há maior frugalidade que a pura abstinência. Abstinência significa aqui libertar-se da tirania da informação, emancipar-se do culto do ídolo mundano. O ruído constante da esfera pública não é apenas um sinal da crescente – e ao que parece imparável – poluição espiritual do homem. É o exercício sistemático de uma ditadura. A ditadura dos media, a qual deve ser entendida como a tirania da mediocridade. A mediocridade que impõe as suas regras e lança um véu escuro sobre o olhar dos homens.