quarta-feira, 30 de março de 2016

Meditações Taoistas (25)

Salvador Dali - Las Tres Edades: la vejez, la adolescencia, la infancia (1940)

Ao nascer, o homem é doce e frágil;
Ao morrer, é duro e rígido.

Lao Tse, Tao Te King, LXXVI

Chego agora ao silêncio, aos dias resplandecentes que não pedem palavras, ao tempo em que dispenso todos os alfabetos que aprendi. Um longo caminho foi, por mim, inscrito no mapa, um trabalho minucioso de cartografia. Rios e montanhas, os lagos e as planícies, um labor sobre o mármore da vida, sobre os vidros estilhaçados das casas onde vivi, batidas por uma luz de silício, uma luz deslumbrante e mortal. Escrevo no limbo de todas as minhas ambições, no desejo de extinguir o fogo inextinguível das palavras, o terror precoce com que se apoderaram do meu corpo e, lentamente, o roubaram ao império da inocência, ao grande paraíso do desconhecimento, à noite onde todas as ciências dormiam no velamento da consciência.

Para trás, os dias em que o coração endureceu nas encruzilhadas, nas grandes travessias do deserto, o sol abrasador, a poeira arenosa da tarde, a flora acanhada e sem préstimo. Para trás, as grandes ilusões que alumiam as noites indormidas, o trabalho sóbrio sobre a dança branca da insónia, o rancor do coração perante a máquina estrídula, que retira o  mundo da imobilidade eterna e lhe alimenta, mecânica e frívola, a ânsia do movimento. Para trás, as tardes de ócio à beira-mar, o restolho das ondas sobre as areias, o rebotalho da vida numa ânsia de água e sol e corpos desnudados para a congeminação do desejo. Para trás, a vida calcinada nas labaredas do outono, nos grandes fogos do inverno, nas gárgulas de onde escorre fel e vinagre. Para trás, o meu corpo endurecido nos teus braços macios, na fertilidade ociosa do teu ventre, no algodão dos teus dedos em desvario.

Chego à terra sonâmbula da infância, à rasura da memória, para caminhar livre nas campinas do esquecimento. O sangue pulsa livremente no centro inominável da língua e rega um jardim de onde as palavras, ervas daninhas na seara do silêncio, se apagaram lentamente. Ecoam, agora, no fundo do poço, daquele poço onde, um dia, vi a minha imagem presa na fragilidade da água, na subtil fluidez do tempo que corre para desaguar no oceano trémulo de onde parti, numa caravela presa à inclemência dos céus, para desenhar um mapa celeste, a cartografia de um geógrafo preso ao sonho breve das constelações, ao desenho furtivo de uma ordem com a qual regi, vara de ferro na mão, o império a que, curvado e cândido, submeti os passos, os meus passos na terra virgem dos amores fervorosos e desordenados de cada dia.

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