domingo, 27 de março de 2016

The Astounding Eyes of Rita

Se dissesse que tinha comprado este CD devido ao título, mentiria. A música de Anouar Brahem é uma das que gosto há bastante tempo. A verdade, porém, é que aquela capa e aquele título, mesmo que não conhecesse o músico e o seu percurso, levar-me-iam a ouvir o disco, movido talvez pelo adjectivo astounding, por aquilo que se pensa nele, e pela conexão estabelecida entre o cenário da capa e esse adjectivo.

Olho para a fotografia e vejo a melancolia íntima de uma mulher. Ela olha para fora de si mas é um olhar que fica preso ao interior do compartimento onde se encontra. O mundo da vida, o mundo público onde se desenrola a existência prática, sofreu uma epochê, isto é, foi posto entre parêntesis, foi suspenso. Aquela mulher, só com muita relutância lhe chamaria Rita, está fechada no segredo do seu espírito e é de lá que ela olha.

Como do olhar desta mulher se chega aos olhos astounding de Rita? O que pensamos nós no adjectivo astounding? Pensamos múltiplas coisas. Por exemplo, o estar aturdida, o estar abismada, o estar aterrada, o estar espantada, mas ainda a natureza fantástica, no sentido de excepcional, desse olhar. Os olhos fantásticos de Rita revelam o seu estado de excepção, mas este provém do aturdimento, do terror, do abismo, de tudo isso que provoca espanto.

É aqui que se cruzam os olhos de Rita e aquela mulher que povoa o cenário que encapa o CD. Os olhos fantásticos de Rita são-no, de forma adjectiva, porque o seu olhar provém do espírito, e este é abismo e fonte de aturdimento e de terror. Mais poderoso que o mundo exterior, o espírito é causa de espanto. Os olhos de Rita são astounding, mas o espírito que os move é, verdadeiramente e simultaneamente, substantivo e verbo, é efectivamente astound, se o verbo, to astound, pudesse ser substantivado. A melancolia que vemos no olhar da mulher da foto é o indício da distância que vai do adjectivo ao verbo/substantivo, que vai do olhar ao espírito. A melancolia é sempre o sintoma de uma cisão, de uma separação. Entre os fantásticos olhos de Rita e o abismo que é o espírito há uma distância irreparável.

Será que a música, o universal sem conceito, no dizer de Nietzsche, dirá melhor tudo isto que a palavra fundada em conceitos universais? O melhor será mesmo ouvir um excerto e depois comprar o CD. Bom domingo de Páscoa. (averomundo, 2010)


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