sábado, 30 de abril de 2016

O fechamento em si

Francis Bacon - Portrait (1978)

O self (o “eu” ou o “si”) de cada um tornou-se a sua principal preocupação. Conhecer-se a si mesmo é agora um fim, em vez de um meio através do qual alguém conhece o mundo. E é precisamente porque estamos tão auto-absorvidos que é extremamente difícil chegarmos a um princípio privado, que explique claramente a nós mesmos ou aos outros o que são as nossas personalidades. A razão é que, quanto mais privada for a psique, menos é estimulada, e mais difícil é para nós sentir ou expressar sentimentos. [Richard Sennett (1974). The Fall of Public Man. London: Penguin, pp. 4, trd. nossa]

A brilhante análise de Sennett acerca da erosão da vida pública nas sociedades ocidentais foi publicada em 1974. Mas o tempo não lhe retirou nem brilho nem pertinência. Em 1974, certamente, a análise não faria muito sentido, se lida a partir de Portugal ou de Espanha. Países atrasados no concerto das nações do primeiro mundo, ainda sem democracia, ou em fase de parto, a vivência das sociedades modernas era algo afastado e nebuloso.

Mas a partir da consolidação da democracia e da entrada na normalidade, Portugal começou, apesar de tudo, a parecer-se com os países mais desenvolvidos. Fundamentalmente foi herdando todos os seus problemas. Aquilo que é descrito neste excerto, essa cultura do autismo, uma cultura narcísica de auto-absorção, vi-a nascer e desenvolver-se. Vi-a, fundamentalmente, a partir da escola. Vi como as famílias, levadas pelo espírito do tempo e a propaganda funesta de uma certa casta de psicólogos e psiquiatras, começaram a proteger os seus filhos de forma absurda, evitando ao máximo o choque com a dura realidade social.

Mas o que de mais tenebroso pude assistir foi à intervenção do próprio Estado, através do sistema educativo, na propagação do narcisismo, do autismo, da absorção das crianças e dos jovens em si mesmos. O que é notável neste processo de destruição da vida pública não é o zelo das famílias, o activismo nefasto das associações de pais e o apostolado de certos psicólogos e psiquiatras. O notável é o próprio Estado, que deveria estar preocupado com esta tendência de auto-absorção dos cidadãos, ter sido a principal alavanca do ensimesmamento a que se assiste. A destruição da vida pública nasce pela iniciativa dos responsáveis políticos, como se uma pulsão de morte os habitasse.

Não está já em causa que os responsáveis políticos defendam o bem comum. O mínimo que se lhes exigiria seria que fomentassem o comum, a vida pública, a necessidade dos indivíduos compreenderam a dura realidade do mundo social, com as suas regras e rituais. Ora quando uma civilização se entorpece no fechamento de cada membro em si mesmo, que leitura se poderá fazer? Quando é a própria elite política que promove esta oclusão narcísica dos indivíduos, o mínimo que se poderá dizer é que chegou o fim de um mundo. (averomundo, 27/02/2010)

sexta-feira, 29 de abril de 2016

A Noite e a Rosa - 1. Madrigal

Maruja Mallo - Rosa

1. Madrigal

Sobre a pedra fria da calçada
oiço tremente o grito do tempo
a voz cinzenta de um madrigal
o murmúrio no fundo do mar.

A rosa irrompe manchada de sol,
seca o verde nos campos de erva
e rasga e rompe a cidade sitiada
no voraz carvão do fim do Inverno.

Nas janelas poisam pássaros
de asas hirtas e inexplicáveis.
Incendeiam de sombra o mundo
no silvo silente do ruído da rosa.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Celibatários e comunismo

Albert Porta - Dorud Communism Collapse (1991-92)

Excepção feita de uma ou outra associação de celibatários, a história das tentativas comunistas apenas regista dissolução e ruínas. (Herbert Spencer (1891), Da Liberdade à Escravidão)

A frase citada de Herbert Spencer sobre a história das tentativas comunistas sempre me fascinou. Não porque o século XX tenha confirmado, de forma dolorosa e inequívoca, o acerto da análise de Spencer. O que me fascina é ideia de que há excepções a essa constatação geral do fracasso do comunismo. Isto não significa que eu julgue que o comunismo, enquanto forma de sociedade, seja possível. Diga-se de passagem que uma autora, prémio Nobel, como Svetlana Alexievich, que não poderá ser rotulada de amante do comunismo, profetizou há pouco o retorno do comunismo, agora, porém, num país rico. Duvido, mas voltemos ao que há de fascinante na frase de Herbert Spencer.

A excepção ao fracasso do comunismo residirá, segundo o pensador britânico, numas quantas associações de celibatários. O fascinante reside, assim, no facto de o comunismo só ser possível numa associação daqueles que se recusam a uma certa associação, isto é, ao casamento. A frase de Spencer não é uma mero dito espirituoso um pouco mal intencionado. É uma crítica subtil e devastadora das concepções comunistas da sociedade. Diz que entre elas e a vida em família há um conflito insanável. Facilmente se perceberá porquê. Se estou disposto a abdicar de ter uma família, também posso dispor-me a renunciar à propriedade. É um problema meu. No momento, porém, que se coloca o problema da família, eu já não penso em mim, mas na família, no interesse dos filhos. Aí cessa o direito moral de renunciar à propriedade.

Em tudo isto há, porém, uma ironia. O comunismo, tomado como forma suprema de altruísmo, só seria possível por uma acto de renúncia egoísta à partilha da vida com outra pessoa. Por seu turno, o egoísmo que conduz os seres humanos à defesa da propriedade privada assenta num gesto de renúncia ao seu próprio egoísmo em nome da pequena comunidade que é a família. É a tensão perante o destino da família que levará os adultos a lutarem contra a ruína e a dissolução que ameaça a cada instante a vida dos homens. A não compreensão disto, do peso inultrapassável que a defesa das novas gerações tem para os adultos, está na base dos fracassos de todas as experiências comunistas conhecidas até hoje.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Livro do Êxodo 5. Um povo de sonâmbulos

Umberto Boccioni - Group of figures related to scene of an urban crowd (1910)

Não celebrarás no deserto a festa, um dia, à sombra dos canaviais, a ordenaram. Tomado pela areia movediça, o corpo cede instante a instante e, no lento mover-se em direcção ao fundo, contamina-se de insectos. Multidões de varejeiras desenham uma prisão de asas, tão leve como as flores do nenúfar, e, nessa inquietação, sobeja ainda um sopro que de entre os lábios sai. A mão, assim lhe chamaram, acaricia as grades, e no vento por elas soprado há um frémito fatal que escurece a negra luz: sobre o mundo, ao arder, incendeia furacões, tempestades tropicais, as areias em convulsão, onde corpos, exaustos de tanto gritar, se tornam cediços, maleáveis, matéria friável a abrir-se à inconstância pegajosa dos sonhos.

Por aí caminha um povo de sonâmbulos, as nuvens tapam de folhas os que enfrentam as agruras sufocadas das areias, poeira solícita que ao alcatrão cobre e dos homens o escondem, como se ele, na síntese viscosa que o faz ser, cometesse um crime e em seu ser criminoso apenas velados espaços quisesse por morada.

Era um povo sem pátria nem castelos nem rios nem memória. Habitava a nudez e quando os homens se inclinavam para os seios das mulheres, estas olhavam a paisagem ao longe e deixavam a água escorrer dos cântaros de barro vermelho, cobriam de luto a cabeça e os olhos, olhos eram, fechavam-se à intensa cor do dia, agora um risco vazio num calendário de folhas ressequidas, herbário onde rosas, violetas e lírios se decompunham durante os meses de Verão, violentos meses eram.

Seguiam depois em frente, homens e mulheres, mas nem o deserto os acolherá nem lugar terão para a festa, um dia, na ordenação das coisas, ordenada lhes fora. Seguem calados o movimento dos astros, enquanto com os dedos desenham esfinges de água sólida sobre o silente fragor da terra.

terça-feira, 26 de abril de 2016

O mais fácil


Não há nada a fazer. Quando não sabemos como resolver um problema atiramos para cima dele com dinheiro. Ou com horas, que é outra forma de dizer dinheiro. Portugal é na Europa o país que tem mais aulas de matemática. Para o estudo referido pelo Público, esta carga horária pode estar associada à melhoria de desempenho dos alunos portugueses nos testes internacionais (PISA). Os tempos lectivos aumentaram 66% enquanto o incremento dos resultados foi de cerca 4,5%. Que avaliação fazer da eficácia deste aumento? Como em tudo no país, este hábito de pôr mais dinheiro, ou mais tempo, em cima de um problema tende a ocultar as questões que devem ser colocadas, nomeadamente, no caso da educação, que razões estão na base do desempenho escolar dos nossos alunos e na sofrível eficiência do sistema educativo. Pôr dinheiro ou horas em cima de um problema é o mais fácil.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 25. Terra sombria

Ferdynand Ruszczyc - Earth (1898)

25. Terra sombria

Assim escurecida,
a terra é um
rumor errante,
uma mancha
suave e sombria
que se perde
no silêncio
das estrelas
salvas pelo luar.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

domingo, 24 de abril de 2016

Um regime decrépito


Passam hoje 42 anos sobre o último dia do Estado Novo. A designação Estado Novo era há muito uma caricatura. Vivíamos num regime decrépito, incapaz de evoluir e sem saída. Tenho bem viva em mim, numa memória dos meus oito anos, a imagem dessa decrepitude. Estava-se no Verão de 1964, e acompanho a minha mãe no acto de matrícula na terceira classe. A delegação escolar era no palácio Mogo de Melo, na altura quase uma ruína, bem longe daquilo que, felizmente, é hoje. Ao entrar, deparo-me com um ambiente sombrio, abafado, talvez com duas secretárias, onde dois professores – que me pareceram ter quase 100 anos – , de fato e gravata e com mangas de alpaca, escreviam lentamente, atazanados pelo calor sufocante de Torres Novas, em enormes livros de registo. Quase oiço, ainda agora, o ranger dos aparos das canetas sobre o papel. Por detrás das secretárias, penduradas na parede, as fotografias de outros dois homens que aparentavam ser ainda mais velhos que os professores. Eram os retratos do Doutor Salazar, o Presidente do Conselho, e do Almirante Tomás, o Presidente da República. Por uma janela semiaberta, entravam raios de sol. Iluminavam a poeira no ar. Eu tinha oito anos e nenhuma interpretação política brotou, naquela hora, na minha consciência. A imagem de decrepitude e desconsolo foi, contudo, tão vívida que, mais tarde, se tornou para mim o retrato fiel de um regime que, apesar de já velho e exausto, caiu apenas dez anos depois. E caiu de velhice. Foram os alicerces – sim, os jovens capitães foram treinados para serem os alicerces do regime – que ruíram e o edifício desabou. Sem grande estrondo.

sábado, 23 de abril de 2016

Matemáticos ou músicos?

Guillermo Péres Villalta - El arte está a éste lado de la realidad

Uma antiquíssima distinção, proveniente da Antiguidade Grega, entre matemática e música pode ajudar-nos a compreender o drama em que vive a arte contemporânea. A matemática referia-se às áreas do saber que exigem um processo de aprendizagem e de instrução para que possam ser compreendidas. A música – e aqui era pensada, naquele tempo, a poesia, a retórica, etc., e podemos nós pensar todo o tipo de arte – referia-se ao que poderia ser entendido sem se passar por um processo de aprendizagem. Utilizando uma linguagem contemporânea, dir-se-á que as ciência e a filosofia exigem um processo de instrução para serem compreendidas. Estes saberes podem, na esteira da tradição grega, ser, por isso, denominados matemáticos. Os objectos artísticos, pelo contrário, podem ser entendidos sem que para tal haja necessidade de instrução. São objectos, por isso mesmo, musicais.

Os objectos artísticos abriam os seus segredos à intuição imediata e não esclarecida do consumidor (o conceito tem má fama, mas é abrangente) desses objectos, ao leigo que, nada conhecendo do processo de produção desses objectos, encontra neles um determinado prazer, ao qual se convencionou dar o nome de prazer estético. O que a arte do século XX, em todos os campos, vai trazer de novo é a ruptura dessa relação imediata entre o consumidor e o objecto artístico. Desconfia-se de um objecto artístico que estabeleça essa relação imediata e que culmina com o prazer estético. As artes, tal como evoluíram a partir dos finais do século XIX, vieram exigir um novo tipo de consumidor. Alguém que passasse também ele por um processo de aprendizagem e fosse, de certa forma, um especialista, um matemático da arte.

O resultado desta orientação foi o afastamento do público, mesmo do público culto, da generalidade das manifestações artísticas tidas como inovadoras. O público deixou de as compreender intuitivamente e afastou-se delas. Os poetas escrevem para outros poetas e para meia dúzia de especialistas. A música erudita do século XX atinge, dentro do já reduzido universo de amantes de música erudita, uma pequeníssima parcela. O cinema e o romance como formas artísticas, e não como mero entretenimento, atingem um público excessivamente restrito e idiossincrático. O mesmo se passa noutras artes, como a dança ou as artes plásticas. Por todo o lado, a ruptura entre o objecto artístico e a compreensão intuitiva pelo consumidor foi rompida, exigindo a arte um novo tipo de público, composto por aqueles que, de alguma forma, se tornaram matemáticos dessa arte.

A questão que se coloca do ponto de vista da arte e da sua produção é idêntica à da quadratura do círculo. Será possível restabelecer essa relação intuitiva da obra de arte com o público (e aqui refiro-me apenas um público culto e não à massa dos homens comuns)? Será possível compatibilizar a procura de inovação e de ruptura com o mundo visual, linguístico e auditivo corrente – mundo esse onde habita esse público culto que se recusa à arte contemporânea – com a produção de obras de arte abertas a um prazer estético intuitivo e que não necessita de aprendizagem? Este é o grande desafio que se coloca à arte do século XXI, fazer com que a autonomia das linguagens artísticas não se perca e, ao mesmo tempo, se abra para quem, fazendo parte do público, não as domina. Poderá a arte recuperar a sua natureza musical?

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Jogos do espírito

Francis Picabia - Figure triste (1912)

David Hume referia, entre os diversos princípios de associação de ideias, o princípio da semelhança. Por exemplo, um quadro sobre Lisboa conduz-nos a pensar na capital portuguesa. Este exemplo refere-se à semelhança entre objectos tidos como reais. Há outro tipo de semelhanças que não se refere à realidade, pelo menos à primeira vista, mas à linguagem. O quadro acima, de Picabia, tem por título Figura triste. De imediato, num espírito com um certo tipo de cultura, emerge a expressão cavaleiro da triste figura, o muito célebre cavaleiro andante D. Quixote de la Mancha. Esta associação, aparentemente arbitrária e pueril, não deixa de ter um efeito real. Esse efeito deve ser visto como um jogo a que o espírito se pode entregar para seu puro prazer. Um jogo de contaminação. 

Podemos olhar para o quadro cubista de Picabia e imaginar nele uma representação de D. Quixote. Podemos iluminar o espírito tortuoso do nosso cavaleiro manchego a partir das explorações geométricas e cromáticas da obra de Picabia. Esta aproximação entre objectos tão diferentes, proporcionada pela livre associação de expressões linguísticas próximas, não deve ser interpretada como um passo na descoberta de uma qualquer verdade, seja relativa à personagem de Cervantes, seja à do quadro de Picabia. Pelo menos da verdade compreendida como uma crença verdadeira justificada, tal como a concebeu, há muito, Platão. Trata-se apenas de um jogo onde o espírito se compraz. E é no puro comprazimento do espírito que a arte encontra o seu papel. Devemos, porém, ter sempre presente que, na vida dos homens, não há nada mais sério que o jogo.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 24. Manhã

Edward Hopper - Habitaciones junto al mar (1951)

24. Manhã

Chegava a manhã
num motim de luz
e abria a porta
escura e vidrada
para o quarto vazio
onde se escondia
o teu coração.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Livro do Êxodo 4. Ladrões de palavras

Anónimo japonês - Portrait of the poet Shinratei Manzo (1829)

Ao longe as sirenes ecoam na água da tarde, e um ruído de carvão atiça-se na estrada onde o viandante poisa, por instantes tão breves, um pé, logo de seguida o levanta, enquanto o outro, se outro ainda tem, desce em direcção à poeira branca e suja da terra. Assim caminham aqueles que caminham, talvez um santuário no fim da estrada exista, e dessa caminhada seja, quando a voz se afundar no peito, ponto final, denso e cerrado e agreste.

Os que caminham são ladrões de palavras. Roubam, na inércia do caminhar, os túmulos onde elas adormeceram, tão mortas, esquecidas de tanto hábito, gastas pelo vilipêndio dos dias, como se já não houvesse, no som que as animava, um segredo de flores pelo chão ou vacilantes cascatas ao cair da tarde, onde as aves do deus bebam a água derradeira antes de entoarem, pela tarde de cinza, o mais belo dos cantos, diz quem o escutou.

Talvez a vindimadora ainda não venha, a frágil foice em riste, cerzir com pétalas animais e terra metálica a fissura que da vida a morte desliga. Os ladrões, ao afastarem-se para ela vão, caminham na noite por estradas de palavras, sílabas desfeitas na oclusão do palato, na cercadura sempre fechada dos lábios. Avançam pregados à sombra e reviram os olhos se os ilumina o clarão de algum pássaro, ou da lonjura da estrada um carro, na pressa motorizada que ronca, os entontece de luz, encandeia e logo desaparece, sem que um destino para aquela chama o que caminha descubra, quando na noite ouve as sirenes e se afasta, cheio de palavras roubadas, dos túmulos de pedra e cal. Os deuses para elas os construíram nas manhãs intérminas, enlouquecidos, pois a vindimadora jamais a foice lhes estende.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Tornear o ponto

Frantisek Kupka - À volta de um ponto (1911-12)

O ponto é uma metáfora morta que se usa para designar aquilo que está em questão, aquilo que é importante e decisivo. Os povos relacionam-se com os pontos de duas maneiras. Há povos que se dirigem para o ponto e o tomam como o lugar gerador a partir do qual vão fazer alguma coisa, vão criar e gerar algo inédito. Outros povos, como o português, olham para o ponto, para as questões decisivas, como aquilo que há que evitar custe o que custar. Tornear o ponto torna-se, para esses povos, uma arte, um exercício no qual educam as novas gerações. O fundamental é aprender a envolver o ponto até que ele desapareça de vista. Trata-se de uma ascese da cegueira. O problema é que o ponto, mesmo que ninguém o veja, continua lá e não se compadece com aqueles que, de tanto contornar o que é importante, se tornam cegos para a realidade.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Brasil, Brasil

Joan Abelló i Prat - Pão de Açúcar, Brasil (1986)

Aquilo a que se tem assistido no Brasil (ler com proveito aqui e aqui) levanta, mais uma vez, o doloroso problema da viabilidade da democracia política em países onde a consciência cívica está longe de estar consolidada. A consciência cívica, porém, não se consolida por obra e graça do divino Espírito Santo. É necessário que aqueles que possuem o reconhecimento formal de cidadãos estejam dispostos a duas coisas. A primeira é assumirem-se enquanto cidadãos. A segunda é reconhecerem o estatuto aos outros. Aquilo que se tem visto - visto a partir daqui e muito longe dos problemas - é que nem uma coisa nem outra estão adquiridas. 

Pode ser grave que a actual Presidente seja politicamente incompetente e que tenha infringido regras processuais (as quais são, segundo parece, sistematicamente infringidas pelos detentores dos vários poderes no Brasil). Pode ser muitíssimo grave que uma câmara de deputados, onde cerca de 60% têm problemas com a justiça, votem a destituição de uma pessoa que não os tem. Grave, porém, é a ruptura do pacto social que faz com que todos queiram viver numa única nação. O mais grave é o manifesto desaparecimento do valor da cidadania, enquanto reconhecimento de si mesmo como cidadão e do outro como cidadão que partilha o mesmo espaço político e o mesmo conjunto de direitos e de deveres. 

Sem este reconhecimento, sem este querer viver entre iguais perante a lei, a democracia é uma miragem. O Brasil corre o risco de ser mais um caso que torna evidente que a democracia está longe de ser um valor político universal. O Brasil traz uma experiência dolorosa para aqueles que acreditam que o crescimento das classes médias é fundamental para uma vida democrática. Este sururu político não nasceu da corrupção nem sequer da incompetência política do PT. Nasceu do crescimento das classes médias e de como isso enfureceu as elites sociais brasileiras.  Convém, ainda, não pensar que a Europa está muito longe daquilo a que assistimos no Brasil. Se a situação social, económica e política continuar a degradar-se, assistiremos por cá, com outras motivações, ao que estamos a assistir no Brasil. 

domingo, 17 de abril de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 23.

Camille Pissarro - Boulevard Montmart: Nuit (1897)

23. Construíste o horizonte

Construíste o horizonte
num espelho quebrado
e uma paixão feroz
cantou-te na face.
Um vendaval de sangue
desenhou ondas de areia
sobre as águas do mar
e ao longe, muito ao longe,
no revérbero matinal,
o teu corpo estremeceu
sob os miasmas da noite.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

sábado, 16 de abril de 2016

Um exercício de purificação

John Everett Millais - Love, From Willmot's Poets

Esta notícia sobre as origem possíveis da monogamia trouxe-me à memória o recente sínodo da Igreja Católica sobre a família. Este foi assombrado pela visão do casamento monogâmico indissolúvel e pela dificuldade em lidar oficialmente com a homossexualidade. Que problema traz esta notícia para essa concepção? Um problema muito simples. O casamento monogâmico não resultou nem de uma opção moral nem de uma revelação divina, mas de uma necessidade da espécie para sobreviver, limitando as doenças sexualmente transmissíveis, em determinados ambientes sociais.

Não pretendo argumentar a favor de normas não monogâmicas de casamento ou de relação sexual. Quero apenas chamar a atenção para este tipo de informação. Ele vem relativizar aquilo que se apresenta, ao nível da religião, como um valor absoluto. A monogamia e a indissolubilidade do casamento são valores relativos, resultantes de uma necessidade específica posta pelo ambiente social. Esta relativização coloca, por outro lado, uma outra questão: que relação pode haver entre ciência e religião? Há uma visão, alimentada por certos círculos propensos ao ateísmo, de oposição absoluta entre este dois tipos de crenças. A esta visão, preconceituosa e ingénua, corresponde uma outra, não menos preconceituosa e ingénua, que pretende justificar a fé com a ciência.

As duas visões acima referidas ocultam uma terceira. A ciência pode ter um impacto purificador na religião e na vida espiritual. Como? Tornando evidente a relatividade daquilo que, na religião, pertence não à experiência espiritual mas ao domínio da vida social contingente, que, por isso, é relativo e mutável. A regulação da sexualidade e as opções matrimoniais não possuem um valor absoluto e, por isso mesmo, não são nem factor limitativo nem fomentador de uma vida espiritual plena e realizada. A ciência pode ter, deste modo, a virtude de ajudar as religiões a libertarem-se dos preconceitos e a concentrarem-se naquilo que é o seu núcleo essencial: a vida espiritual dos homens, a libertação das ilusões, a sua relação com o absoluto e a transcendência, com o mistério do ser.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Os Panama Papers

Antonio Tapies - Collage del papel moneda (1951)

A minha crónica no Jornal Torrejano on-line.

Panama Papers parece o título de um livro policial ou, talvez mais apropriadamente, o de um thriller de espionagem nos tempos da Guerra Fria. Apesar de terem bastantes ingredientes policiais e de não estarem destituídos de um certo sabor a espionagem, os Panama Papers são retratos muito realistas dos nossos actuais descontentamentos, para usar uma expressão do historiador inglês, já desaparecido, Tony Judt. O que retratam então estes arquivos?

Retratam, em primeiro lugar, como os poderosos, de diversos graus e de diferentes extracções, vão ocultando aquilo que sustenta o seu poder, isto é, o dinheiro. Mostram como o dinheiro legal (politicamente, declarado legal) convive em harmonia com o semilegal e o abertamente ilegal. Tornam ainda evidente, ainda mais evidente se tal fosse necessário, como tudo está montado para que as classes médias sustentem solitárias as máquinas fiscais necessárias ao funcionamento do Estado e que elas, juntamente com os grupos socialmente mais deprimidos, se afundem numa pobreza irremediável.

Estes retratos da corrente putrefacção social, contudo, não são os mais importantes. Os mais importantes são aqueles que nos mostram a grande traição dos políticos ocidentais. Não me refiro aos que, por um percalço do destino, foram apanhados nos incontáveis ficheiros agora trazidos a lume. Refiro-me a todos aqueles que trabalharam para permitir os paraísos fiscais e desregularam, tanto quanto puderam, o sistema de intervenção do Estado no mundo dos negócios e da finança. Refiro-me aos que criaram a possibilidade de tudo isto.

Legitimadas por maiorias populares, as elites políticas ocidentais trabalharam afanosamente contra quem as elegeu. Alimentaram uma cruzada contra o Estado social e, na Europa, declararam, através de Tratados nunca referendados, a ilegalidade da social-democracia. Nos países mais frágeis atiçaram, sem dó nem piedade e com o apoio explícito de políticos locais e de uma imprensa subserviente, os cães da austeridade. Tudo em nome da competitividade da economia, dessa economia cujos proventos foram postos a recato, bem longe das autoridades fiscais, como estamos a descobrir na novela exemplar dos Panama Papers.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Livro do Êxodo 3. Na ardência da tarde

Jan van Goyen - Landscape with Two Oaks (1641)

Tudo arde na brancura da tarde, uma chama acampa pelas terras áridas. As palavras crescem roídas de saliva, os dias a fazem aumentar, e a teus pés os rebanhos metálicos deitam-se vorazes, estradas cospem-nos terra fora. Os deuses procuram os bosques sombrios, onde as tardes cantam matinas e o fogo é agora um astro de sidra no solo da memória. Esfarelado, coberto de erva rala, pequenas poças de água tépida, restos de ramos e pássaros de olhos vesgos. Os cães latem, coçados na sarna, a zumbir entre canaviais e as desventuradas ruas da cidade.

Na ardência dos dias, os homens das coisas se apossam, correm funâmbulos, e na precipitação a tudo abandonam e à sua imagem de vidro erguem, em temor e súplica, as mãos. Na sombra ansiosa, espreitam entre relógios, horas e dias, um caminho ainda haverá, dizem, ruas de algas roxas pelos bordos, uma estrada de ruídos, insectos de cinza, plantas melíferas pelos matagais de fogo, e uma ardência, a tudo, no inquieto coração, se apega.

Eu não tenho uma mão forte, nem do ramo da oliveira construo bordão a que, no clamor da tarde, me encoste. Sigo preso no horizonte e, onde me levam aqueles que me levam, eu vou. Sem o caminho saber, eu vou, na ardência que me leva, eu vou, apenas porque alguém me leva, como se fugisse das lâmpadas da noite e dos vagos faróis com que, em estradas de colmo, automóveis tracejam, ímpios, a santidade da noite. Levantam-se então os amantes, vejo-os, os corpos despidos de carne. Gritam. Gritam pelo fogo que, um dia, tão ao de leve, teria ardido como restolho na fulguração da campina infectada.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 22.

Albrecht Dürer - The Bishop's Castle at Trent

22. Árduo o tempo que espreita das ameias

Árduo o tempo que espreita das ameias.
De cima, avistam-se os campos em volta,
a terra escalavrada, carcomida pelo estio,
um lago onde nascem bancos de areia,
barcos esmagados pelo peso da água,
a tua fortuna a rolar entre seixos.

Cansado, deito-me no vento da tarde
e entrego-me a um sono de ervas azuis
espalhadas nos interstícios do soalho.
Viagem após viagem, o sol deixa um rasto
calcinado e o mundo, já morto, recompõe-se
na noite que galga as escadas do coração.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

terça-feira, 12 de abril de 2016

Compreender o terror

Meyer Schapiro - War Allegory (1940)

A minha crónica da semana passada no Jornal Torrejano on-line.

A grande tentação, nestes dias de temor, tremor e terror, é compreender o que se passa no mundo através de ideias que tiveram a sua utilidade num tempo que já acabou. A entrada na cena política mundial do islamismo radical veio pulverizar a teoria, em voga na esquerda e também na direita, de que todos os conflitos radicam em problemas económicos. Esta explicação, popularizada por um certo marxismo, sempre sofreu de claras limitações, as quais agora se mostram impotentes para explicar o motivo pelo qual há pessoas que matam e se matam para impor um conjunto de crenças religiosas e uma forma de vida que nos escandaliza. 

Como em todos os conflitos, também naquele que vivemos, os factores económicos são importantes. São decisivos estrategicamente, mas não como causa final que determina o conflito. São importantes, pois podem ser decisivos para uma estratégia vitoriosa. Pensar, porém, que os grupos radicais combatem por causa do petróleo ou da economia é deixar-se enredar nos próprios preconceitos e recusar-se a olhar para a realidade. Por que motivo se resiste a aceitar que se está perante um conflito cultural e não económico? Um dos motivos deve-se ao hábito. Não estamos habituados a interpretar as guerras desse modo. Outro está ligado à posição política dos pensadores que defenderam que, no século XXI, os conflitos seriam culturais (o anti-semita polaco Feliks Koneczny) ou choques civilizacionais (o conservador norte-americano Samuel Huntington). A posição ideológica destes autores faz com que se rejeitem em bloco as suas teses em vez de analisar a sua consistência.

A teoria da causa económica dos conflitos não consegue explicar por que razão o Estado Islâmico toma decisões anti-económicas, como destruir o legado arqueológico da humanidade. Também não é possível compreender a motivação económica na atitude dos bombistas-suicidas ou no tratamento das mulheres pelos combatentes do Daesh. Todos estas actos obedecem a um sistema de crenças e os seus autores lutam pela imposição dessas crenças. Se olharmos com atenção para a história da humanidade talvez descubramos que nunca os homens combateram por questões económicas. Mesmo quando, em aparência, era esse o motivo, eles combatiam por aquilo que os bens materiais lhes poderiam proporcionar, isto é, pela representação que eles faziam da vida e do seu destino. Combatiam por ideias e crenças. Se quisermos perceber o que se está a passar, temos de compreender o sistema de crenças e de ideias daqueles que insistem em espalhar o terror pelo mundo.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Escola, desejo e impotência

Pieter Brueghel el Viejo - O asno na escola (1556)

Por um acaso li ontem três entrevistas sobre a questão educativa. Duas do espanhol Gregorio Luri (aqui e aqui) e uma do português José Pacheco, um dos fundadores da célebre Escola da Ponte (aqui). Em linhas gerais, a minha posição, até talvez devido à formação comum, está muito mais próxima de Luri do que de José Pacheco. No entanto, há uma coisa, dita por José Pacheco, que, devidamente matizada, merece ser pensada: com aulas ninguém aprende. Isto não é bem assim, mas cada vez se aproxima mais da verdade. Há alunos, ainda em número significativo, que aprendem com as aulas, mas, a  cada dia que passa, aumenta o número de alunos que, na verdade, pouco ou nada aprendem nas aulas. A minha percepção, a partir da observação diária, é que a aula, onde se deve ensinar e deve aprender, se tornou um lugar absurdo. 

Não tenho qualquer solução para a situação. Assisto há décadas a tentativas de reformas do sistema e a iniciativas de professores e escolas para enfrentar o problema e o resultado é sempre o mesmo: a aula mantém-se quase inalterada. Há apenas uma diferença: cada vez mais os alunos a desvalorizam. Esta desvalorização da aula tanto atinge aulas de professores pouco talentosos ou de professores muito talentosos. Por outro lado, apesar das injunções do ministério e das invectivas dos pedagogos, a verdade é que tudo está desenhado para que o ensino seja o mais tradicional possível: uma sequência de aulas expositivas, aqui e ali atravessadas por aulas pretensamente mais práticas. Toda  a retórica sobre a inovação pedagógica não passa disso mesmo, retórica. Retórica vazia. Tudo está pensado e organizado para obter os resultados medíocres que se obtêm.

As posições de Luri, ao enfatizar o esforço, e as de Pacheco, ao enfatizar o prazer, como motores da aprendizagem parecem-me, contudo, dois pólos de um falso dilema: ou o prazer ou o esforço. Talvez exista uma outra alternativa. Aristóteles inicia a Metafísica dizendo que todo o homem deseja naturalmente conhecer. Isto significa que a aprendizagem para obter conhecimento não apenas pertence à natureza humana como ela tem a sua raiz no desejo. Aprender é um desejo natural nos seres humanos. Aqui surge uma questão decisiva: por que razão os alunos - ou muitos deles - perdem este desejo natural? Por que motivo o sistema educativo, as escolas, as aulas matam o desejo de aprender e de conhecer? Por que motivo este desejo não procura o prazer, não se esforça por se saciar e acaba por enfraquecer e desaparecer? Dito de outra maneira: por que razão muitos dos nossos alunos, desde muito cedo, se tornam cognitivamente impotentes? Por muito importantes que questões como as da avaliação, dos currículos, da organização escolar, etc. sejam, sem a clara compreensão deste problema, todas as alterações na educação apenas contribuirão para aumentar o ruído, tornando os alunos cada vez mais incapazes de sentir o prazer que o esforço de aprender traz consigo.


domingo, 10 de abril de 2016

Indústrias de avaliação


Numa entrevista dada, em tempos, ao Público, Christophe de Dejours (psiquiatra e psicanalista, especialista em psicodinâmica do trabalho) referia o caso de um presidente de uma empresa que lhe dizia que o que mais odiava no seu trabalho era a avaliação dos seus subordinados. E acrescentava esse presidente: “a avaliação individual não ajuda a resolver os problemas da empresa. Pelo contrário, agrava as coisas”. Isto que para qualquer ser racional que pense sobre os seres humanos parece óbvio, não o é.

Vale, assim, a pena observar um aspecto. Se se sente que as avaliações individuais (tratam-se destas e não de processos de avaliação geral da organização) não contribuem para melhorar o desempenho das organizações, privadas ou públicas, por que motivo o método é tão propagado? Por que razão se tornou em prática central do senso comum organizacional? A explicação não é muito difícil.

Por um lado, porque se montou uma verdadeira indústria da avaliação. Aquilo a que se chama cultura de avaliação, um eufemismo miserável, não passa de uma indústria de natureza parasitária, com interesses próprios em diversos níveis da vida social, desde a academia até às empresas de avaliação e aos centros de recursos humanos das organizações. É um produto parasitário que encarece os custos, não fomenta a eficiência, mas alimenta um conjunto de pessoas e empresas.

Por outro, porque o que está em jogo, a maioria das vezes, não é a melhoria do desempenho, mas a legitimação da dominação de uns sobre os outros. A avaliação individual mais do que melhorar as organizações predispõe ao controlo da consciência e da liberdade dos subordinados, ao controlo da sua vida. A legitimação é feita, muitas vezes, através de um processo que conduz ao cálculo de uma nota, o que dá uma aparência – obviamente, falsa – de objectividade. Trata-se da mobilização de um algoritmo para justificar aquilo que se pretender fazer com os que são avaliados.

Estas questões ligadas à avaliação nas organizações não são as essenciais, mas mostram como estas coisas operam na vida quotidiana e contribuem para a tornar miserável e infernal. São sintoma de uma cultura de ruína que mina os laços de solidariedade que devem existir entre as pessoas e acabam por degradar as organizações e ter um impacto muito negativo na vida das comunidades. Um exemplo acabado do niilismo contemporâneo.

sábado, 9 de abril de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 21.

Edward Hopper - Sun in an empty room (1963)

21. 

Da terra sei a humidade e a secura,
a doença aberta na maturação dos frutos.
Dominado pela arquitectura do mundo,
entrego-me ao êxtase com o olhar cativo
e corro na luz fria e derramada
a clamar pelos favos que te adoçam
a boca imóvel na soberania da tarde.

Oiço, ao longe, um brado surdo,
uma voz esquiva debruada pela sede,
como se fora uma fonte de penumbra
ou a margem secreta do rio da infâmia.
Sobre o equívoco daqueles dias,
cresceram fogos-fátuos, atearam incêndios,
escureceram de terror a terra seca,
o indecifrável vazio que te escorre das mãos.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Livro do Êxodo 2. O peregrino fulgurante

Amadeo de Souza Cardoso - Cabeça (1914-16)

Em terra alheia sou peregrino e caminho ébrio pelo asfalto. As torrentes de ar incendeiam-me o rosto, as faces lívidas com que entro nesta cidade, e deixam aberto em mim o martelar furioso das pedras ígneas do silêncio. Não sei o preço da viagem, nem tenho nos bolsos moedas, ouro, prata. Algumas pedras da estrada, se as penso, tomo na mão e o peso verga-me o olhar para o alcatrão.

Às vezes, tão poucas, oiço vozes ao longe e sonho com prados de água seca e fogos frios de Outono, se transpira de cansaço. Tão gélido o fogo, o que me trazem para escutar, cor de cobre, metálico nas labaredas, na terra entram e ocultam-se. São fogos de Outono, a vergonha habita-os, e longe dos olhares procuram moradia. Pela calada da noite o seco véu do Inverno virá.

Do turbilhão dos músculos soltam-se passos infalíveis, o bater dos pés pelo chão, levam-me terra fora. Que dizer? Ao vê-los, riem crianças. A voz cala-se. Se o corpo caminha, ela, rouca, suspende-se, e só os olhos se agitam no repouso da paisagem, nova sempre vem, e entra por eles e filtra-se no cérebro do que caminha, passos errantes, a gerar riso de moscardo, cinzento, sem pétalas, gretado como as águas amargas dos que tiveram memória e dela foram despojados.

Desconheço as faces, o horizonte mas devolve, e não posso comprar pão e vinho. Há muito deixei de ter mesa onde os pousar e se regressar agora à casa branca, um dia disseram-me: esta é a tua casa, as paredes não me reconhecerão e naquela mesa, se mesa ainda tiver, não haverá para a minha sombra lugar, nem guardanapo, nem prato de barro esperará a ânsia da fome, haveria de a ter.

Resta-me caminhar, passar. As portas fechadas, cadeados quebrados, janelas corridas. Às vezes, tomam-me as sombras da tarde e a elas entrego o nada que me resta, os deuses mo deram. Perdida a ausência que me movia, ergue-se uma canção pura: delata-me à negra noite, aos terrores da infância. O coração descompassado esvai-se num grito, e logo o silêncio o arrebata e o devolve à planície da mudez. Ergo-me sobre as pernas e, preso a meus passos, retomo a viagem, olhos no horizonte, um saco de ervas e dois relâmpagos por bagagem.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Republicanismo da bofetada


O Ministro da Cultura, João Soares, achou por bem derramar a sua ira com os críticos e ameaçar distribuir umas "salutares bofetadas" por Augusto M. Seabra e Vasco Pulido Valente. É irrelevante discutir o mérito dos textos que desencadearam a reacção de Soares. Li ambos (ver aqui o de VPV e aqui o de AMS). Pelo menos o de Seabra é um texto crítico pertinente e merece ser lido com atenção. Isso, como disse, porém, é o que menos importa. O que importa é tentar compreender a etiologia do tique autoritário do ministro. Podemos sempre olhar para a questão do ponto de vista individual. A reacção deveu-se a uma idiossincrasia de João Soares. Certamente, será isso que o PS irá fazer. 

Seria bom, contudo, que os socialistas olhassem para si próprios e tentassem perceber se este tique autoritário - que se manifestou, embora de outros modos, em situações anteriores - não está inscrito no próprio ADN do PS. Contrariamente aos partidos socialistas, sociais-democratas e trabalhistas europeus, cuja origem se encontra nos movimentos operários e no reformismo social do século XIX e do início do século XX, o PS português tem a sua origem na burguesia radical que fez a primeira República e cujos tiques autoritários são sobejamente conhecidos. 

São estes tiques hereditários que, aqui e ali, com mais ou menos veemência, se manifestam com os resultados que vimos com o socratismo e nos comentários disparatados de Soares. O PS não pode querer ser ao mesmo tempo o campeão das liberdades, epíteto com que gosta de se apresentar, e ameaçar essas mesmas liberdades, como sucedeu neste triste episódio. Soares tem idade suficiente para perceber que não vivemos no século XIX nem nos anos conturbados da República. Na verdade, só há uma saída limpa para o actual Ministro da Cultura, a demissão.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

A atracção do Islão

(fotos daqui)

O Islão, ao contrário do que se pensa, exerce sobre o Ocidente uma forte atracção. O livro de Michel Houellebecq, Soumission (Submissão) (ver aqui a sinopse, em francês), corre o risco de deixar de ser um livro de ficção-política para se tornar uma profecia realizada. E realizada não pela violência do terrorismo mas pela suave submissão dos ocidentais. Dois casos interessantes, mas que configuram já aquilo que Houellebcq dá a ver no seu livro. Em nome do mercado (e nós, europeus tardios, só já conhecemos o deus do mercado), marcas ocidentais, como Dolce & Gabana, desenham as suas roupas (diga-se, de passagem, belíssimas) segundo códigos culturais islâmicos. Apesar da contestação, mais um passo para a submissão, em nome do grande mercado (ver aqui e aqui). O segundo caso, passa-se na Suíça, e é um novo episódio da correcção cultural em nome da tolerância. Na verdade, uma outra faceta da submissão a valores que nos são estranhos. Num distrito do Norte da Suíça, os estudantes muçulmanos foram dispensados - não sem contestação, diga-se - de cumprimentar as professoras com um aperto de mão, como é a norma corrente. Na prática, considerou-se que a norma islâmica tinha primazia sobre a norma suíça. Como se vê, não é preciso terrorismo nem violência. Os ocidentais, ao aniquilarem o fundamento cristão do seu modo de vida e os valores que dele dependiam, estão dispostos, em nome do conforto e do dinheiro, a ceder a tudo. O Islão não precisa de fazer guerra aos ocidentais. Basta comprá-los. Eles vendem-se sem qualquer rebate na consciência.

terça-feira, 5 de abril de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 20. Clareira

Jean-Baptiste-Camille Corot - La clairière, Souvenir de Ville-d'Avray (1872)

20. Clareira

Furtiva clareira,
respiração pura
na dádiva aberta
ao perigo da terra.
Sobre a tua luz,
caem violetas,
ervas de seda,
um véu negro
suspenso na hera.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

segunda-feira, 4 de abril de 2016

O Livro do Êxodo 1. As dispersas sementeiras

Claude Monet - Tulip Fields in Holland (1886)

Não há quem saia pela manhã a olhar as dispersas sementeiras, os campos invadiram. A mão crispou-se, é agora novelo de linho esquecido sob a luz da clarabóia. Não há seta que indique o lugar onde o desejo se quer e irrompe no crepúsculo matinal, entre corações desfeitos, a gotejar ervas, e as mãos presas à viagem, assim começada, para um deserto de páginas em branco, sem luz que as ilumine, sem cor que as incendeie, sem sílabas que lhes dêem por filhos palavras.

Não é um cântico de júbilo o que na garganta se forma, nem uma palavra tingida pela acidez dos dias. O arco-íris esbateu-se, mas as nuvens ficaram, cada dia mais opacas, quase sólidas, numa atmosfera de cactos, ruas vazias, faces atónitas, levemente estropiadas. Se cicatrizes ainda têm, nelas nasceu uma erva rasa, amarela, queimada pelo cálcio, a tudo devora.

Não é âncora o que ofereço, nem lenço para lágrimas, se lágrimas ainda te ardem sobre a pele rugosa, a face, dizes. Espelhos não fabrico, nem do vidro sei o segredo, nem das mãos o aconchego. Canto na escuridão para não morrer de medo, para me ouvir e adivinhar o que ainda sou. Nesta ilusão caminho estrada fora, pés no chão, e na cabeça, se ainda a tenho, o ar da noite preso a uma vela. Ao arder, ponho uma máscara de cera e se invoco o deus, oiço a voz de quem já de casa não sai a olhar as dispersas sementeiras que, no fulgor do passado, os campos invadiam.

domingo, 3 de abril de 2016

Impactos

Vicente Vela - Máquina (1999)

Há dois debates políticos que me parecem essenciais nos dias de hoje. Esses debates relacionam-se, de forma decisiva, com o futuro do nosso país, enquanto nação soberana. O problema da demografia e o impacto do conhecimento e da tecnologia sobre o mundo da economia, bem como as repercussões políticas desse impacto. Talvez o primeiro problema possa encontrar uma solução na forma como for enfrentado o segundo, e não apenas porque os seres humanos podem ser substituídos, no mundo do trabalho, pelas máquinas. Uma maior presença da tecnologia pode ser uma ocasião para repensar horários  e ritmos de trabalho e criar condições para uma evolução demográfica positiva. 

A discussão sobre o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e o seu impacto na sociedade é, deste modo, um problema político de primeira ordem. Na Austrália, por exemplo, leva-se isso muito a sério e pensa-se sobre o que pode vir a acontecer (ver aqui). Em Portugal, contudo, tudo isto parece ser um assunto para lunáticos ou uma cena de um filme de ficção científica. Os partidos estão mais preocupados com os seus dramas existenciais. Não se percebe que as omissões de hoje (e elas existem, e de forma muito acentuada, em todo o espectro político presente no parlamento) têm enormes repercussões daqui a 15 ou 20 anos. Como as têm nos dias de hoje aquelas que ocorreram há 15 ou 20 anos. Em Portugal, vivem-se intensamente os dramas do momento. E esta intensidade com que se vive a poeira dos dias aniquila qualquer capacidade de pensar. E este é outro dos nossos problema. Pensa-se pouco e, muitas vezes, mal.

sábado, 2 de abril de 2016

Constituições e nostalgias


Vale a pena escutar a lição de Fernando Rosas, no Público, sobre os 194 anos do nosso constitucionalismo. Uma sensação estranha apodera-se do ouvinte. O constitucionalismo, nos seus diversos momentos, emerge sempre como um drama constitucional, como se, na verdade, existisse ainda hoje - e isso foi patente com o governo anterior - uma nostalgia por uma ordem política pré-constitucional. As constituições escritas são um produto da Revolução Francesa e visam limitar a a arbitrariedade do poder. Foram contestadas pelos teóricos da contra-revolução, nomeadamente por Joseph de Maistre, talvez o mais brilhante inimigo da Revolução Francesa.

O que significa uma ordem pré-constitucional? Fernando Rosas, na sua lição, acaba por referi-lo, quando fala da suspensão da Carta Constitucional por D. Miguel e o retorno ao absolutismo régio. Esta nostalgia por uma ordem pré-constitucional, todavia, pode manifestar-se muito para além da questão específica do poder. O destino da Constituição de 1933 e as suas subsequentes revisões são o momento mais claro, mas não o único, dessa nostalgia. Esta manifesta-se na concepção organicista da sociedade. A sociedade não é vista como um somatório de indivíduos que interagem segundo os seus interesses, mas como um organismo onde cada um encontro o seu lugar. Deste ponto de vista, não há diferença significativa em relação ao absolutismo e as ordens sociais em que este se estruturava. Tão ou mais marcante que o anti-comunismo da Constituição de 33 é o seu anti-liberalismo. 

E na constituição de 1976 também está presente essa nostalgia de uma ordem pré-liberal? Aparentemente, não. Ela é a primeira constituição que, como explica Fernando Rosas, consagra plenamente a democracia. No entanto, podemos ainda encontrar essas nostalgia de uma ordem orgânica, pré-liberal, no texto constitucional. Não tanto na tutela da democracia pelo Conselho da Revolução, embora essa tutela fosse tudo menos democrática. Fundamentalmente, na inscrição dos direitos sociais no texto constitucional. Esta inscrição não significa um desejo de um regime político como o velho absolutismo, mas é sintoma de uma vontade de integração orgânica de todos assegurada pelo aparelho político.

A concepção organicista da sociedade da Constituição de 33 ou os direitos sociais constitucionalizados em 76 são, embora de formas diversas e com fundamentações muito diferentes, sinais de nostalgia de uma ordem orgânica na qual todos encontram, a priori, o seu lugar, o qual é cuidado pela acção benévola do Estado. São também a manifestação da dificuldade que, desde a primeira hora, o liberalismo encontrou em Portugal. De certa maneira, os portugueses pressentem que entregues a si mesmos - apesar das bravatas com que nunca deixam de se cobrir e de evidenciar a sua hiperbólica masculinidade ou galhardia - não saberiam encontrar o seu lugar na sociedade. Não perceber este pressentimento, este medo que se vai travestindo de inveja, de incapacidade de inscrição na realidade, de saudade, etc., etc., é colocar-se fora do país real. Quando isso acontece na política, é um passo para o desastre.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 19.

Odilon Redon - Beatrice (1885)

19. Acendias uma vela

Acendias uma vela
no centro da casa
e cantavas
dia após dia
à espera do calor,
do fruto calcinado,
do rancor incendiado
que trazia o Verão.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]