sexta-feira, 8 de abril de 2016

Livro do Êxodo 2. O peregrino fulgurante

Amadeo de Souza Cardoso - Cabeça (1914-16)

Em terra alheia sou peregrino e caminho ébrio pelo asfalto. As torrentes de ar incendeiam-me o rosto, as faces lívidas com que entro nesta cidade, e deixam aberto em mim o martelar furioso das pedras ígneas do silêncio. Não sei o preço da viagem, nem tenho nos bolsos moedas, ouro, prata. Algumas pedras da estrada, se as penso, tomo na mão e o peso verga-me o olhar para o alcatrão.

Às vezes, tão poucas, oiço vozes ao longe e sonho com prados de água seca e fogos frios de Outono, se transpira de cansaço. Tão gélido o fogo, o que me trazem para escutar, cor de cobre, metálico nas labaredas, na terra entram e ocultam-se. São fogos de Outono, a vergonha habita-os, e longe dos olhares procuram moradia. Pela calada da noite o seco véu do Inverno virá.

Do turbilhão dos músculos soltam-se passos infalíveis, o bater dos pés pelo chão, levam-me terra fora. Que dizer? Ao vê-los, riem crianças. A voz cala-se. Se o corpo caminha, ela, rouca, suspende-se, e só os olhos se agitam no repouso da paisagem, nova sempre vem, e entra por eles e filtra-se no cérebro do que caminha, passos errantes, a gerar riso de moscardo, cinzento, sem pétalas, gretado como as águas amargas dos que tiveram memória e dela foram despojados.

Desconheço as faces, o horizonte mas devolve, e não posso comprar pão e vinho. Há muito deixei de ter mesa onde os pousar e se regressar agora à casa branca, um dia disseram-me: esta é a tua casa, as paredes não me reconhecerão e naquela mesa, se mesa ainda tiver, não haverá para a minha sombra lugar, nem guardanapo, nem prato de barro esperará a ânsia da fome, haveria de a ter.

Resta-me caminhar, passar. As portas fechadas, cadeados quebrados, janelas corridas. Às vezes, tomam-me as sombras da tarde e a elas entrego o nada que me resta, os deuses mo deram. Perdida a ausência que me movia, ergue-se uma canção pura: delata-me à negra noite, aos terrores da infância. O coração descompassado esvai-se num grito, e logo o silêncio o arrebata e o devolve à planície da mudez. Ergo-me sobre as pernas e, preso a meus passos, retomo a viagem, olhos no horizonte, um saco de ervas e dois relâmpagos por bagagem.

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