terça-feira, 31 de maio de 2016

A Noite e a Rosa - 9. A morte é um sopro

Salvador Dali - Sin Título - Esa muerte fuera de la cabeza/Paul Eluard (1933)

9. A morte é um sopro

A morte é um sopro
quase uma argúcia
uma luz de água
a cintilar ao tempo
a crescer no corpo,
o animal animado
que fulgura preso
ao vento, envolvido
no vendaval do cio.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Livre-arbítrio e ordem liberal

Julio Gómez Biedma - Un grito: ilibertad!

Num artigo intitulado The FreeWill Scale, Stephen Cave, ao referir-se ao livre-arbítrio, considera que não estamos inclinados a atribuir uma grande dose de livre-arbítrio a quem vê apenas um possível curso de acção, especialmente em situações em que esse curso não está a resultar. Podemos pensar a situação dos países do Sul da Europa a partir daqui. A retórica dominante na direita europeia é a de que não há alternativa às políticas que são impostas e que resultam dos tratados que instituíram o Euro. A verdade, porém, é que essas políticas estão a falhar por todo o Sul da Europa e quanto mais falham mais se grita que não há alternativa e se impõe mais do mesmo. Este exercício parece longe de confirmar que a espécie humana é possuidora de uma vontade livre.

Quando se acredita que os homens são dotados de livre-arbítrio, acredita-se que eles são capazes de encontrar várias alternativas para poderem escolher a mais adequado ao bem que procuram. Aquilo que dizemos acerca dos indivíduos pode dizer-se das suas comunidades, ainda por cima se elas forem democráticas. Serão tanto mais livres quanto maiores forem as alternativas que consigam produzir para atingir os seus fins e alcançar os bens a que se propõem. O que está a acontecer na Europa, sob os ventos do neoliberalismo e do ordoliberalismo, é paradoxal. São os próprios defensores da ordem liberal que negam o livre-arbítrio e que, sob o desígnio do não há alternativa, impõem uma necessidade férrea em tudo semelhante àquela que vigorava nos países comunistas. Na verdade, o que nós assistimos na Europa é o crescimento, em nome do liberalismo, de uma atitude iliberal, negadora do livre-arbítrio e adepta incondicional de uma visão marcada pela necessidade determinista proveniente do velho mecanicismo nascido no século XVII.

domingo, 29 de maio de 2016

Livro do Êxodo 10. O endurecido coração

Jim Dine - Heart

Endurecido, o duro coração entrega-se às trevas da manhã, e no rasto sombrio ergue, tão alto, a vara de salgueiro. Encostado ao bordão de cinza, deixa-se flutuar, como se fora máquina de aço inoxidável, tão pura e tão inoxidável, tão tonitruante máquina era o coração. Árvores cobrem-se de folhas e, num prenúncio do tempo a vir, juncam de sombras, tão sombrias, o chão. Ali, naquele território sombreado, os cães arrastam-se, entre leves ganidos, em busca da floresta, da casa que um dia por morada tão demoradamente haverão de ter. O Sol, o cintilante astro de ruídos e tumultos, contrai-se, torna-se a cada dia que passa mais pequeno, arrasta pelos céus o perdido fulgor de forasteiro, aquele a quem nestas casas por hóspede não se quer.

Severas imagens assim se projectam diante do olhar, os jardins suspensos por cordas de sisal, ranúnculos, anémonas, jacintos-de-água e uma violeta de ferro vinda das terras da monção, negras praias de mar ondulante, um súbito tremor na tremura tremeluzente do horizonte. Se pudesse contar-te um conto de fadas, príncipes, leves princesas, se a minha voz se soltasse do silêncio, compreenderias a férrea violeta, nestes jardins à gravidade tão avessos. Acode-me uma palavra de névoa, mas logo a esqueço, e se me inclino para dizer o teu nome, suave delíquio atormenta-me a fronte, dobra-a em direcção à sombra e recolhe no segredo, no secreto sigilo, as palavras, todas as que tinha para dizer.

Em silêncio olho as falenas. Anunciam os odores que aos pés paralisam e os prendem às janelas, onde o tempo se vê passar, entristecido de a si se ter perdido no rio que não desagua, nessas águas tintas de sangue e grandes cardumes, os peixes que fogem das manhãs marítimas, da maresia que dissolve o mar e o deposita na areia da loucura, da imprudência de um coração endurecido, entregue à insensatez do excesso, às severas imagens que o olhar vê projectadas no ecrã da memória. Atravessado bem no centro por um triste, tão triste, caminhante, o coração, no duro pulsar dos dias, envolve-se na crosta, uma terra quebradiça e quase castanha, que o sangue ao secar, no processo lento da evaporação das águas, sobre ele faz cair, numa precipitação ruidosa, que até os olhos, tão serenos perante a estrídula tonitruância, se calam.

sábado, 28 de maio de 2016

Ali também estão os deuses

Marcel Duchamp - A Fonte (1917)

Uma brincadeira de um rapaz de 17 anos levou uma série de visitantes do Museu San Francisco de Arte Moderna, nos EUA, a admirarem um par de óculos colocados propositadamente (e provocatoriamente) no chão pelo jovem bem-humorado. As pessoas aproximavam-se respeitosamente da “obra de arte”, mantendo a distância convencionada. Houve quem tirasse fotografias (ler aqui). Li comentários onde se verberava a tolice dos espectadores. A verdade, porém, é que a brincadeira com a arte moderna – que não é a primeira e, certamente, não será a última – levanta um inusitado problema. Talvez o público reverente do par de óculos não seja tão idiota.

Quase cem anos antes, em 1917, Marcel Duchamp, sob o pseudónimo de R. Mutt, envia um urinol de porcelana (denominado por ele A Fonte) para a Exposição da Sociedade de Artistas Independentes de Nova Iorque. O Presidente da sociedade rejeita a obra, alegando não tratar-se de arte. Encontramos em Nigel Warburton a argumentação corrente em sentido contrário. A Fonte é arte porque o autor “pegou num objecto vulgar do dia a dia, colocou-o de modo que o seu significado útil desaparecesse sob o novo título e perspectiva – criou um novo pensamento para esse objecto”. É a reconceptualização do objecto, a alteração semântica e a concomitante mudança de estatuto ontológico que o transformam em arte.

Entre o episódio de 1917 e o de 2016 percebe-se que a atitude do público se alterou radicalmente. Da rejeição do Presidente da Sociedade de Artistas (que pode ser visto como um porta-voz do público) até à admiração respeitosa dos óculos farsantes, em 2016, vai um longo caminho. Se a proliferação de objectos ansiosos, como A Fonte, de Duchamp, no campo das artes, pretenderia questionar os limites do que é e não é arte, dessacralizando-a, retirando-lhe a aura com que a cultura a tinha investido, o efeito, contudo, não deixa de ser surpreendente. Não são os objectos artísticos que perdem a aura, são os objectos banais e quotidianos que a ganham, desde que entrem em certos espaços.

Aqui devemos mobilizar as velhas categorias de Mircea Eliade, o sagrado e o profano. Observe-se o comportamento do público perante o par de óculos (aliás, o comportamento normal num museu ou numa galeria de arte). Uma atitude reverente e de admiração, marcada pela justa distância que se deve ter perante o que é sagrado e uma aproximação suficiente para que a graça presente no objecto artístico transborde para a nossa compreensão do mundo. Ora, perante estas situações, a questão que se levanta é o que é arte e o que não é. O público intuiu pelo menos uma coisa. A arte não depende da intenção do produtor do objecto. É arte aquilo que entra no espaço sagrado, que é arrancado à dimensão profana da existência e, por ter entrado num certo topos, é sacralizado. O topos sagrado pode ser físico (um Museu, uma galeria, etc.), mas pode ser meramente conceptual. Um espaço mental, composto por conceitos, juízos e argumentos, onde se sacraliza como arte certos objectos que são de alguma forma atraídos para esse espaço.

Dir-se-á, então, que tudo pode ser arte. Só a ideia indispõe muita gente. A resposta a esta questão começou a ser dada logo no início da Filosofia, por Tales de Mileto: tudo está cheio de deuses. Tudo tem um carácter sagrado. Sendo assim, tudo tem em si a possibilidade de ser trazido para o espaço sagrado e ser reconhecido como objecto artístico. Não é a intenção do autor que dá o estatuto artístico a um objecto. É a unção que lhe é conferida, é o estar num certo espaço sagrado (museu, galeria, templos, etc.). O par de óculos jocosamente deixados no chão por um adolescente bem-humorado ganhou o estatuto de arte porque o espaço onde estava o investiu com esse estatuto. O objecto articulava-se sintacticamente com os outros objectos e integrava-se, já sem qualquer inovação, no campo semântico da arte. O que esta história tem de mais interessante é a revelação de que a autonomização da arte relativamente à religião é impossível. O sagrado volta sempre, nem que seja sob a forma de uns óculos provocatoriamente postos ali para testar o público. E o público respondeu compreendendo, como Tales e Mileto, que ali, naquele singelo par de óculos, também estão os deuses.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

A Noite e a Rosa - 8. Rio, gelo frio e fluido

Caspar David Friedrich - The Source of the River Elbe (1830)

8. Rio, gelo frio e fluido

Rio, gelo frio e fluido,
água nascente,
força hidráulica
e pura
a cantar na fonte.
Na fonte,
ao sol poente.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

O cartaz da JSD


Este cartaz da JSD suscitou uma indignação moral - aqui e ali - e levou mesmo Mário Nogueira ameaçar processar (ou a processar mesmo) a JSD. Eu votei na coligação de esquerda, não estou de acordo com alguns aspectos importantes da política educativa da esquerda (embora concorde com o governo no casos dos subsídios aos colégios privados) e acho que o facto de Mário Nogueira ameaçar processar a JSD é uma patetice. Seja como for, Mário Nogueira teve uma excelente oportunidade, mesmo sem cortar o bigode, de demonstrar que não é um adepto estalinista e que acha a comparação ofensiva. Em vez de processar a JSD, deve agradecer-lhe a oportunidade.

Do ponto de vista da eficácia política, o cartaz vale zero. É quase tão mau quanto o do BE sobre a dupla paternidade de Cristo (embora este fosse pior, pois era um tiro no pé). A generalidade das pessoas está-se nas tintas para o Mário Nogueira, muita gente não faz ideia quem foi Estaline e quem sabe tem discernimento suficiente para perceber que Mário Nogueira não é um proto-Estaline nem o ministro da educação é assim manipulável. Mesmo os anti-comunistas sabem que a ameaça bolchevique é uma coisa da história. O cartaz, porém, é bastante interessante pois diz muito do que são as juventudes partidárias. O cartaz não foi feito para ganhar eleitores (quem vai votar na direita por causa daquele cartaz?). O cartaz foi feito para irritar o outro lado. O espírito é igual ao das picardias de futebol entre os adeptos dos grandes clubes. Uma infantilidade. Uma graçola que deve gerar umas larachas lá na sede da congregação, mas sem qualquer relevo político.

O mais importante, porém, é sublinhar que a possibilidade deste tipo de graçolas virem a lume é um bem fundamental. Faz parte da liberdade de expressão. E este é, na vida em sociedade, o bem mais importante. O que me aborrece nestas coisas é que as partes atingidas (agora foi a esquerda, outras vezes é a direita) não têm fair-play e mostram-se sempre muito ofendidas, prontas para rasgar as vestes em público. Não há paciência para isso. Quem está na vida pública está sujeito a este tipo de coisas. Na política não há lugar para virgens que se ofendam ao primeiro piropo rasca. Depois, sabemos que o discurso político é sempre hiperbólico. A hipérbole é, num regime onde o conflito político se trava pelo discurso, a estratégia fundamental. Exageram-se os vícios dos adversários. Exageram-se as virtudes próprias. Acima de tudo, a liberdade de expressão é um bem intocável.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Não a verdade mas a razoabilidade

Nikolaas Mathijs Eekman - Le philosophe (1973)

Há, quando se olha para a política, um equívoco que vem desde o tempo de Platão. O equívoco centra-se na ideia de que há uma ligação entre verdade e boa governação. A figura platónica de Rei-Filósofo não é outra coisa. O problema é que a política não é um exercício epistemológico e a verdade não é a virtude dos sistemas políticos. Naquilo que há de essencial na vida política poucas são as coisas que não estejam sujeitas à controvérsia, aos interesses e às paixões que estes interesses suscitam. Não há nenhuma solução que seja a realização prática de uma verdade. As soluções são boas ou más conforme os interesses com que jogam. Para uns serão boas, para outros serão más. A mais das vezes são soluções de compromisso, que não agradam a ninguém, mas que amortecem os conflitos.

Isto não quer dizer, porém, que o debate político não melhoraria se ele fosse fundamentado mais substantivamente no conhecimento das teorias filosóficas que sustentam os diversos pontos de vista possíveis. Por vezes, as argumentações usadas pelas partes em confronto são de tal maneira frágeis que chegam a roçar a indigência. Fundamentar as crenças políticas não significa, porém, introduzir citações e referências de autoridade a cada instante. Significa que se tem uma teoria robusta com que se fundamenta a crença política proclamada, e que as tomadas de posição estão de acordo com aquilo que se diz defender.

Não quero com isto dizer que essa fundamentação torna a opção política mais verdadeira ou mais próxima da verdade. Quero apenas sublinhar que ela seria melhor argumentada, mais bem meditada e exigiria do outro lado uma atitude semelhante. Significaria ainda que os compromissos a que se chegasse trariam um grau superior de razoabilidade. E isso não seria pouco. O que está em jogo não é a verdade mas a razoabilidade da acção. Não precisamos de Reis-Filósofos, governantes com acesso à verdade, mas de políticos razoáveis que agem e se comprometem no território incerto e conflitual da vida política.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Instabilidade ortográfica


Tenho estado a ler textos na ortografia do português do século XIX. Mesmo nos romances de Eça de Queirós, ainda tão próximos de nós pelo Portugal que desenham, há uma ortografia que, aos olhos da actual, parece fantasmática. O leitor sente-se fora de casa, apesar da beleza gráfica que descobre nos lexemas. Ao olhar o texto, parece ter sido escrito noutra língua. Se comparo esses textos (ainda que de forma impressionista, pois não sou conhecedor da matéria) com textos franceses do século XIX e mesmo do XVIII, fico com a sensação de que a ortografia francesa é muito mais estável que a nossa. Existem diferenças, mas ao olhar para os textos, sinto-me em casa, aquele foi o francês que aprendi e que leio ainda hoje. Pode ser que seja uma ilusão óptica, mas até na ortografia vivemos em constante instabilidade. A coisa que mais me impressiona, porém, é a disponibilidade revolucionária dos portugueses para patetices como as reformas ortográficas. Um povo tão dado à quietude e tão remexido na ortografia é um mistério, ou talvez não. Talvez seja a quietude popular que permite estes arroubos desfiguradores de uma língua, este terrorismo contra o património histórico presente na ortografia. Não há governação que não se preocupe com a estabilidade governativa, mas quanto à instabilidade ortográfica não há quem ponha fim ao desmando. (averomundo, 2010/02/07, acrescentado)

segunda-feira, 23 de maio de 2016

A Noite e a Rosa - 7. No céu do norte

João Queiroz - Sem título (2007-2008)

7. No céu do norte

No céu do norte,
a noite é um lago
de madeira,
silente e frio,
um rumor
preso no céu
a luz luminosa
que em si caiu.

domingo, 22 de maio de 2016

Livro do Êxodo 9. As viúvas caídas

Francisco Arjona - Viuda (1978)

Os cálamos da noite deslizam entre mãos, e os farrapos do tempo, se o verde mancha a candura das colinas, são soprados eternidade fora. As vozes, as vozes calam-se no zumbido das trevas, e as mães, de cansada memória, repetem histórias de viúvas caídas na desgraça do dia, perdidas no horizonte onde são sombra silente e sombria, oculta sombra as habita. Nos céus, as viciadas viúvas vicejam lentamente, crescem para dentro da santidade, são máquinas abertas ao silêncio, fátuo silêncio as alimenta.

Um som sibilado toca a parturiente um instante e a criança chega: o esgar da face desvanece-se e o horror, pois horror é, toma do mundo a rédea. Cruza-se gente, vai e vem, os olhos rolam em direcção à terra; nela as pragas crescem, como se ainda um deus dos homens o destino, friável destino, soubesse, como se uma viúva virginal trouxesse, no anteparo da sua viuvez, um dragão puro e uma víbora de escamas e solidão.

Sobre a inconstância do coração nada se desenha: um rumor de espinhos une à vida a sombra disforme. Aí o que caminha tem o seu corpo e com ele cria um espelho de urtigas e ervas azedas, um vidro tão fosco como as colinas onde o Sol, cansado de iluminar a terra, se põe. No rosto da cidade, há carros embuçados, calam-se, quando tudo se desvanece na viuvez da tarde, nos olhos virginais que nos olham, no sexo húmido das viúvas inconstantes, viúvas caídas, pelos calámos da noite bebidas até ao vazio do último copo, do último corpo.

A virtude da humildade

Masaccio - A Virgem da Humildade

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Não quero deixar passar em claro a oportunidade, oferecida pela conquista do 35.º campeonato pelo Sport Lisboa e Benfica, para reflectir numa virtude que, no actual contexto cultural, parece ter sido completamente desvalorizada: a humildade. Se há um factor central no triunfo do clube da Luz, esse é a humildade, virtude encarnada na pessoa de Rui Vitória e que transbordou para toda a equipa e pessoal dirigente. Mesmo no momento da consagração, assistiu-se a grande contenção nas palavras e a nula vanglória.

A humildade significa o reconhecimento dos seus limites. Significa também a clara percepção de que, nos negócios humanos, aos quais o futebol pertence, nem tudo é controlável, e que uma parte do sucesso se deve, para além do trabalho duro, à fortuna, para falar à moda dos antigos romanos, ou à graça, se se quiser uma tonalidade mais cristã. O treinador do Benfica, sem nunca abdicar do empenho no que estava a fazer, pautou-se por uma atitude discreta e comedida. Evitou o pior dos males, aquele que os gregos diziam atrair, na figura das Erínias, a desgraça. Evitou a arrogância e a desmedida.

A humildade não é apenas uma virtude social, uma virtude onde a pessoa evita mostrar-se superior aos outros, sendo-o ou não. É também uma virtude pessoal que conduz ao reconhecimento de que não se é um deus e que, em tudo o que se faz, há uma enorme imperfeição. E é este reconhecimento da imperfeição das nossas obras que é o motor central para que se ultrapassem falhas, defeitos e limitações. Só aquele que tem a clara consciência da sua imperfeição julga ter de se ultrapassar.

Foi isso que se viu com Rui Vitória. Foi isso que, contra todas as expectativas, lhe trouxe a glória. É nisso que todos nós deveríamos meditar. Não está na moda ser humilde. O culto dos homens de sucesso é, por norma, o culto de egos inflacionados. As televisões e as redes sociais ajudam a essa inflação, divinizando, por curtos instantes, aquele que se deixa embalar no canto da sereia. O que a nossa sociedade precisa, porém, não é de gente com umbigo dilatado, mas de exemplos que nos ajudem a perceber que o caminho para melhorar passa pela humilde aceitação das suas imperfeições e limitações. Exemplos como o de Rui Vitória. Espero que não mude.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Da presunção de superioridade moral da esquerda

 Adolph von Menzel - The Iron Rolling Mill

Uma das coisas que mais indigna as pessoas de direita é a ostentação, pela esquerda, de uma presumida superioridade moral. Esta presunção não vem claramente do facto dos indivíduos de esquerda serem mais virtuosos moralmente que os de direita. Não é um problema de consciência moral singular. Também não vem de qualquer constatação empírica que, hoje em dia, possamos fazer dos regimes políticos não democráticos, onde só a esquerda governou. A história dos últimos três séculos ajuda, porém, a perceber o fenómeno. Ajudar a perceber um fenómeno não significa, todavia, que forneça argumentos suficientes para justificar a sua racionalidade. Três acontecimentos, da história mundial, são centrais na emergência e manutenção dessa crença difusa acerca da superioridade moral da esquerda. A história não justifica, embora ajude a compreender.

Comecemos por onde começou a divisão, a Revolução Francesa. Na Assembleia Nacional, os partidários do Ancien Régime sentavam-se à direita do presidente, os adversários estavam à esquerda. O carácter iníquo do Ancien Régime, pleno de privilégios para uns e de exacerbadas corveias para outros, de estatutos sociais completamente fechados, etc., colou-se, talvez de forma indelével, à direita, mesmo quando a direita é, pela sua própria natureza liberal, adversária do Ancien Régime. A iniquidade do Ancien Régime era de tal modo clara que mesmo revolucionários moralmente pouco recomendáveis, como depois se viu na época do Terror, pareciam um catálogo de virtudes morais e cívicas. A direita que estava em causa, porém, era uma direita feudal, digamos assim.

Um segundo acontecimento histórico chega-nos de Inglaterra. Está ligado à Revolução Industrial e, fundamentalmente, à forma como, através de expedientes legais (absolutamente imorais), como a Lei dos Cercados, se constituiu o proletariado que trabalhou nas fábricas da Inglaterra dos finais do XVIII e no XIX. A destruição dos velhos direitos medievais atirou uma quantidade incalculável de gente livre (uma ironia, livre do senhorio mas também da terra que a sustentava) para a proletarização e para condições de trabalho atrozes. Quando os movimentos operários nasceram, quando a esquerda social emergiu, a imoralidade dos processos de expulsão dos campos e da situação nas fábricas vai contribuir, também ela, para colocar o rótulo imoral à direita política que sustentou o processo e, ao mesmo tempo, dar uma caução moral aos partidos operários. A direita que está em causa, neste caso, aproxima-se já bastante da direita liberal, e pouco tem a ver com o caso francês.

O terceiro acontecimento está ligado à história do século XX e à subida ao poder dos fascismos e do nazismo. E estes movimentos subiram como forma de poder das direitas nacionalistas. Com carácter ora mais totalitário, como nos casos de Itália e Alemanha, ora mais ditatorial-paternalista, como no caso de Portugal, estes regimes, claros inimigos dos movimentos operários mas também da democracia liberal e do liberalismo clássico, tinham práticas políticas e sociais que feriam os princípios, por frouxos que fossem, de qualquer consciência moral. Embora por essa Europa fora as esquerdas não tenham sido as únicas forças políticas a oporem-se-lhes, foram, na verdade o grande motor de denúncia e de oposição. Em Portugal, porém, só as esquerdas se opuseram sistematicamente ao salazarismo, enquanto as direitas, com a exclusão da ala liberal de Sá Carneiro (um pequeno clube de meia dúzia de membros) durante o marcelismo, estiveram completamente comprometidas com o regime. Também isto contribuiu para esse sentimento de superioridade moral da esquerda, mesmo que o exemplo da Revolução Bolchevique fosse, desde o início, moralmente muito pouco recomendável.

Esta descrição histórica justifica a presunção de que a esquerda, hoje em dia, é moralmente superior à direita? Não, não justifica. Pois esquerda e direita são conceitos mutáveis, não é sempre a mesma direita que está em causa, nem sempre é a mesma esquerda que reivindica essa superioridade moral. Também sabemos que regimes políticos onde a esquerda eliminou a concorrência política se transformaram em regimes de grande abjecção moral. Embora a política nada tenha a ver com a moral, os movimentos políticos, por necessidade instrumental de legitimação perante a opinião pública, reivindicam para si posições morais. Num próximo post far-se-á uma análise das posições morais/imorais das direitas e das esquerdas que existem nos regimes democráticos.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

A Noite e a Rosa - 6. Um fogo, uma pedra

Luis Fernández - Rose (1961)

6. Um fogo, uma pedra

Um fogo, uma pedra:
sal a cantar na noite.
Se as mãos enunciam
o linho e o lírio,
o teu corpo, uma
casa submissa
sumptuosa e suada
no fogo do fogão
no cristal duma rosa.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Utopias e paranóia política

Simón Bolívar

A Venezuela é um caso exemplar de como a utopia e a eliminação da concorrência política conduzem a visões fantasiosas da realidade (ver aqui o devaneio conspirativo que se abate sobre o cérebro de Maduro) e, muito pior que isso mas no seu seguimento, ao desastre económico, social e político (ver análise aqui).  No caso venezuelano, aquilo que me interessa é a presença de dois elementos que parecem estar sempre presentes nos grandes dramas políticos. São, como referi acima, a utopia e a eliminação efectiva da concorrência política. A Venezuela é interessante não por ser um caso da governação de esquerda, embora o seja, mas por manifestar traços que fomentam a degradação da vida política e que estão presentes tanto à direita como à esquerda.

O primeiro problema da Venezuela nasce da constatação, por Chávez, de uma situação social profundamente injusta. É esta injustiça profunda que dinamiza o pensamento utópico. Todo o pensamento político utópico é um pensamento mágico. Vê na política um instrumento de rápida reconfiguração social. A realidade é desfigurada e faz-se uma reconfiguração, mas esta é sempre excessiva e deslocada do espaço e do tempo (é utópica). A política é assim uma varinha de condão que, ao tocar a realidade social, a transforma para melhor. O problema, porém, é que a realidade resiste. Raramente, a realidade se submete ao desígnio revolucionário. Aquilo que poderia ser um programa paulatino de reformas, de criação de forças sociais mais modernizadas e de uma atitude mais dinâmica da população, transforma-se num triste espectáculo. Caudilhos, conspirações, mobilizações populares, bandeiras ao vento, retóricas revolucionárias. Tudo isto fruto de uma utopia - a qual, no caso da Venezuela, transbordou para outros países da América Latina, sob a designação de bolivarismo -, de uma não coincidência entre o desejo e a realidade.

A deriva paranóica deste tipo de utopias leva ao segundo problema. Uma interpretação delirante da realidade, servida por uma sistematicidade lógica, conduz à eliminação da concorrência política. Esta eliminação pode ser total, como nos casos das ditaduras e regimes totalitários, ou parcial, onde a concorrência política não é formalmente eliminada, mas é limitada através de expedientes que contrariam as concepções de democracia, assentes na liberdade de organização e participação política e no respeito pelas minorias conjunturais. E foi para aí que caminhou a utopia venezuelana. Por muitas vitórias eleitorais que Chávez tenha tido (com Maduro já nem isso), um observador imparcial percebia que o regime era pouco democrático e claramente populista. Os resultados de tudo isto estão à vista.

Tendo isto em consideração, convém sublinhar duas coisas. Pode-se argumentar que ou a utopia populista ou a velha situação fundada nas antigas oligarquias. Isto, porém, constitui uma falácia, a falácia do falso dilema. Esta falácia lógica arrasta consigo uma consequência política, a da eliminação da prudência reformista na transformação paulatina das sociedades. Elimina o esforço sistemático de encontrar equilíbrios e de dar passos pequenos, mas decisivos, em direcção a sociedades mais justas. Em segundo lugar, estes casos, com todo o seu aspecto caricatural, têm a capacidade de revelar a natureza paranóica de todo o tipo de poder (à esquerda ou à direita), inclusive o que existe nas sociedades democráticas. Nestas, manifesta-se em expressões como "não há alternativa", as quais são outra forma de aniquilar a concorrência política e, de forma mansa, instaurar utopias delirantes, cujo resultado, como acontece sempre, é o da destruição dos equilíbrios, da prudência e da justa medida. 

terça-feira, 17 de maio de 2016

Uma educação liberal

Juan Botas - School (1989)

A educação deve ter um cariz liberal. O termo liberal aqui deve ser entendido como o era na Idade Média, em contraponto com a servidão. Nessa educação liberal, o fundamental é a conversação e o contacto com as grandes obras, os clássicos, e também com grandes professores. A educação deve servir para levar cada um a extrair o melhor que há em si. De certa maneira, não há educação que não vise uma certa aristocratização do educado. Deste ponto de vista, toda a educação deve ser nobilitante. Embora, a partir de um certo grau de ensino comum, os percursos se devam diferenciar conforme as aptidões de cada indivíduo. Mas desde que uma criança entra na escola deve-se-lhe propor como horizonte o tirar de si aquilo que tem de melhor, seja uma vocação científica, técnica, política, artística ou outra dentro do que é determinado como socialmente aceitável.

Só esta educação, que é verdadeiramente uma educação do carácter através da aquisição de um currículo, pode tornar os homens livres e capazes de iniciativa. Só uma educação liberal e democraticamente aristocrática, assim entendida, é capaz de gerar respeito pelos valores da democracia. Se se falhar nisto, em vez de homens livres, formar-se-ão escravos. Escravos dos seus próprios desejos, incapazes de uma satisfação diferida, e escravos dos outros a quem se venderam por falta de carácter e incapacidade de resistir a si mesmos. O actual debate sobre o financiamento público ou não das escolas privadas é importante. No entanto, o grande debate fazer é para que serve a educação. Qual a grande finalidade que deve estar presente, como orientadora, do investimento em educação. Isso deixou de ser claro, se alguma vez o foi, há muito.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Livro do Êxodo 8. O anjo aquático

Edward Burne Jones - O anjo (1881)

Feriu o pó e levantou as suas tremendas asas, erguendo-se. Não era pássaro, nem máquina que pelo engenho voasse, mas simples anjo, daqueles que desfilam em procissões de aldeia, vestidos de branco, o rosto coberto de suor e os pés exaustos, a tanta erva pisaram. Subiu, enquanto na terra alteavam-se vozes à luz vagarosa e sombria da macieira.

Nos outros dias, colava-se à parede e aí ficava, imagem era, tão estático, no rosto um medo se lhe desenhava, tomava conta das faces, invadia lábios, caía em borbotões pelo queixo, levemente recolhido, inclinado sobre o peito. Nas asas azuis tinha então escamas por penas; era um anjo aquático, habitava os poentes na fina dobra da praia.

Quando não havia procissão e assim se cobria de asas  escamadas de azul, envergava uma túnica de cíclames e cruzava as delicadas mãos sobre o peito. Nesses dias, não voava, nem procurava do mar as águas. Olhava, olhava, olhava para o indefinido ponto onde a geometria das horas nascia e traçava mapas em sua mente, trabalho de geógrafo perdido em funestas dunas já desfolhadas pelos desertos de areia.

À noite nunca o mensageiro dormiu. Por vezes, despia-se. Horroriza-o o vazio lugar do sexo e cobria com as mãos o rosto, espelho algum devolveria a cegueira da sua vergonha. Cansado, deitava-se em cama de pedras e sonhava com searas de trigo a secar sobre as águas marinhas, peixes de pão secos pela inclemência de um sol, a primavera o esventrara.

Um dia, veio de entre as algas um pássaro e olhou-o, depois inclinou tão ao de leve a cabeça e voou para norte. Um silêncio de carvão soltou-se do fundo da alma e o anjo, agora um querubim, pela primeira vez, sentiu lágrimas. Adormeceu sobre as pedras e quando acordou doíam-lhe as costas. As asas, um simples papel de seda, desprenderam-se. Quando despiu a túnica, a nenhum corpo a luz iluminou.

domingo, 15 de maio de 2016

A Noite e a Rosa - 5. Adormeço num olor

Egon Schiele - Two Girls, Lying Entwined (1915)

5. Adormeço num olor

Adormeço num olor
a raparigas verdes
pele branca sob flanelas.

Frágeis e oblíquas
ardem-me nos dedos
se as toco e repouso nelas.

sábado, 14 de maio de 2016

O respeito pela dignidade do homem

Edvard Munch - Workers Returning Home (1913-1915)

Trabalhadores obrigados a usar fraldas por não poderem ir à casa de banho. Não acredita? É o que se passa, imaginem, nos EUA, com quem trabalha em aviários (ver aqui). Por que razão os sindicatos e a esquerda são necessários? Não o são para trazerem um mundo novo, mas para enfrentarem a deriva desumana que habita, desde sempre, no coração do capitalismo. A ameaça da esquerda serve para civilizar um capitalismo que, tendencialmente, é propenso ao desrespeito pelos seres humanos. Desde a Revolução Industrial que se manifestou na economia de mercado uma faceta bárbara que substituiu a crueldade da escravatura pela crueldade inerente à consideração da mão-de-obra como uma mera mercadoria, isto é, uma coisa.

Tratar seres humanos como nos aviários norte-americanos ou nas empresas asiáticas infringe não apenas os direitos sociais mais básicos mas a dignidade última de um ser racional. Se a utopia ultraliberal triunfasse completamente, se a esquerda desaparecesse e os sindicatos fossem abolidos, se a desregulação fosse levada até ao fim, aquilo que se passa nos aviários dos EUA multiplicar-se-ia em todas as áreas do trabalho humano. Até as empresas exemplares nas relações de trabalho, e são muitas, seriam coagidas pela concorrência a tornarem-se bárbaras e impiedosas. A necessidade de uma oposição política e sindical a este desejo de retorno à barbárie não deriva, como os nossos candidatos a liberais julgam, da infestação doutrinária do marxismo. O que está em jogo não é Marx mas Kant.

O filósofo de Konigsberg, numa das suas fórmulas do imperativo categórico, definiu claramente aquilo que em qualquer tipo de relação entre seres humanos é inadmissível. Cito: Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio. Usar a humanidade de uma pessoa apenas como meio, como uma mera coisa ou um simples instrumento para lucro do empregador, é o que acontece quando se olha para as pessoas como uma mercadoria e só uma mercadoria, como mão-de-obra. Não se respeita a pessoa como um ser racional que tem valor intrínseco. E isto é moralmente repugnante e inadmissível.

Contrariamente ao que certa a direita radicalizada pelo fascínio do ultra-liberalismo pensa, a esquerda e os sindicatos não existem para trazer um mundo novo ou para destruir o espírito de iniciativa privada. Se um dia o pensaram como contraponto à barbárie da revolução industrial, descobriram já que não há nenhum mundo novo à nossa espera. Esquerda política e sindicatos existem para assegurar que a civilização e o respeito pela dignidade do homem não desaparecerão num mundo desregulado, onde os mais fortes pura e simplesmente liquidariam, para seu interesse, a humanidade nos outros homens. Não é a herança de Marx que a esquerda tem hoje para defender. É a herança de Kant, a herança de um mundo civilizado onde as pessoas são tratadas como seres racionais e não meras coisas. Um mundo onde adultos têm de usar fraldas (e que maior símbolo pode haver do que as fraldas para sinalizar a redução desses adultos à menoridade?), como se fossem crianças, porque as relações de trabalho lhes são completamente adversas. Não se trata de criar um paraíso na terra, mas de encontrar um equilíbrio entre o espírito de iniciativa e uma vida digna de ser vivida por todos.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

De uma linguagem a outras

Raymond Pettibon - He promised to teach me the language (1993)

Medito muitas vezes, por ónus da profissão que exerço, nas razões que estão na base daquilo a que se convencionou chamar, no calão educacional, o insucesso escolar. O problema é complexo e há razões para todos os gostos. No outro dia li um estudo que parece ser bastante consistente. Defende o referido estudo que a influência dos genes, nos resultados dos alunos, é muito pouca (ver aqui). Que a questão está mais do lado do meio do que do lado dos genes que a lotaria genética atribui a cada um. 

O meio implica a linguagem (aqui não vou entrar em distinções entre langue e parole, tomo-as em conjunto) e está aqui um dos problemas fundamentais da aprendizagem. Um bom domínio das linguagens (a natural, mas também cada uma das linguagens disciplinares) é o caminho para uma boa aprendizagem e para obter boas performances cognitivas. O domínio dos léxicos permite operar sobre a realidade e pensá-la. O domínios das diversas sintaxes permite articular os diversos aspectos e dar coerência ao que se pensa e à expressão do pensamento. 

Talvez os sistemas de ensino ganhassem muito em olhar para todas as áreas do currículo, e não apenas as línguas, da Matemática à História ou da Física à Filosofia, a partir de uma meditação sobre as suas linguagens, isto é sobre o léxico que usam e as articulações sintácticas que exigem. Esta meditação serviria para confrontar o que cada área de saber, enquanto linguagem específica, exige e a linguagem que os alunos ostentam. 

Talvez ensinar, seja o que for, não seja mais do que elevar, o que aprende, da linguagem que é a sua ao território estrangeiro de uma linguagem estranha pertença cada disciplina. Há, parece-me, um paradoxo: a grande facilidade com que os neo-natos aprende a língua natural envolvente e a grande dificuldade com que crianças e adolescentes aprendem as novas linguagens que a escola lhes exige. E este paradoxo deveria dar que pensar. Não dá.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Perplexidades de um muito antigo maoista



A Grande Revolução Cultural Proletária foi lançada faz, dia 16 de Maio, 50 anos. Resultado de uma tremenda luta pelo poder dentro do Partido Comunista Chinês, saldou-se por uma enorme tragédia. Contam-se por centenas de milhares os mortos em consequência da iniciativa de Mao Zedong (Mao Tsé-Tung). Deixo de lado, pois conheço relativamente mal, a realidade da tragédia chinesa e concentro-me numa outra coisa. No terrível fascínio que o acontecimento teve na juventude ocidental. Incluo-me, durante a minha pós-adolescência, no campo dos fascinados, embora me tenha afastado desse fascínio ainda nos verdes anos. Sobre esse fascínio de pelo menos duas gerações, há coisas que continuam a deixar-me perplexo. Há também coisas que aprendi com essa minha experiência político-ideológica.

O que me deixa perplexo é a cegueira desmedida que caiu sobre muitos e muitos jovens, por todo o Ocidente, que estavam bem longe de serem completamente idiotas. Como é que a razão, transtornada pela imaturidade e fascinada pela coreografia revolucionária, se tornou acrítica? Basta olhar para os materiais propagandísticos para perceber que aquilo tresandava a irracionalidade por todos os lados e que só poderia acabar mal. Como é que fotografias ou cartazes onde se viam grandes massas guiadas por um homem, o grande timoneiro Mao Tsé-Tung, seduziram tanta gente que detestava o espírito de rebanho e que não tinha qualquer disponibilidade para seguir um pastor? Como foi possível que a imagem de multidões de jovens a recitar o livro vermelho, como se estivessem numa madrassa comunista e em pleno ritual litúrgico, não fizesse soar o alarme?

Há uma resposta óbvia: a natureza religiosa do acontecimento. Uma religião que erguia um homem à condição de deus. Na verdade, tudo o que se via era encenações rituais e momentos litúrgicos em torno de um Mao Tsé-Tung mitificado, despojado dos seus traços humanos, como já tinha acontecido com Estaline, Mussolini, Hitler e, embora menos, com Lenine. Esta religião veio suprir nos jovens intelectuais a carência de Deus e da religião. Contaminados pelas vulgatas marxistas ou pelo zumbido nietzschiano da morte de Deus, estas gerações encontraram no maoismo um sucedâneo da aspiração mística ao absoluto que as animava. Isso também aconteceu, nas gerações anteriores de intelectuais, com o fascínio pelo comunismo soviético ou pelo nazismo e o fascismo. Ora o facto de as gerações anteriores terem fracassado, de se ter descoberto que aqueles apelos ao absoluto eram falsos e letais, não foi suficiente para a razão funcionar e impedir o fascínio. Porquê?

Haverá múltiplas respostas. Centro-me numa que combina um traço ontogenético ligado à idade e um traço cultural da modernidade ocidental. O que desencadeia a adesão maciça é a promessa do paraíso. O cartaz mostra-o claramente: a revolução cultural promete um mundo novo. Quando se está nos verdes anos é-se um juiz implacável do velho mundo. Aos nossos olhos, ele está condenado e é preciso, o mais depressa possível, substituí-lo por um novo, mais justo, mais belo, mais fraternal. Este é o traço ontogenético e diz mais sobre a imaturidade da pessoa do que sobre a maldade ou bondade do velho mundo. Há contudo um traço cultural que tem a sua raiz no início da modernidade. Trata-se do culto do começar tudo de novo. Os seus modelos cognitivos encontram-se no cogito cartesiano e na tabula rasa de John Locke. Estes modelos passaram do campo do conhecimento para o campo social e estão na génese do culto das revoluções (a gloriosa revolução, em Inglaterra, ainda no XVII, a revolução americana e a revolução francesa, no XVIII, e a revolução industrial, na transição do XVIII para o XIX). Este modelo cultural, baseado num começar tudo do princípio, e a imaturidade ontogenética explicarão, pelo menos em parte, o fascínio pela irracionalidade da revolução cultural chinesa.

O que aprendi com a minha breve passagem pelo maoismo nos anos quentes do pós 25 de Abril? Aprendi duas coisas essenciais. Em primeiro lugar, que não tinha como destino na vida fazer política. Apesar de ser um espectador comprometido e atento do espectáculo político, a política enquanto acção não me interessa para nada. Compreendo bem, demasiado bem, o fenómeno do poder e da luta por ele, mas não me interessa. Em segundo lugar, esta minha experiência conduziu-me a uma posição política a que costuma dar o nome de aristotélica. O importante é o equilíbrio, o meio-termo, entre as partes em confronto. A experiência de fascínio pela irracionalidade política tornou-me, como reacção e desde há muito, um anti-utópico inveterado. Utopias de sociedades perfeitas, através da mão invisível do mercado ou do planeamento central, fazem-me urticária. O importante é que os homens tenham opiniões contrárias e que, na vida prática, vão fazendo acordos. Acordos precários porque na vida tudo é precário e transitório. Não há nenhum mundo novo à nossa espera. A única coisa que nos espera é a morte.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

A Noite e a Rosa - 4. As pedras perdidas

Max Klinger - Noite

4. As pedras perdidas

As pedras perdidas
no musgo,
ruas onde a
rosa anoitecia.
Rugiam no rumor
das marés
nocturnas as
noites tão anoitecidas.

terça-feira, 10 de maio de 2016

Livro do Êxodo 7. A superfície das águas

Emil Nolde - Dark Sea (Green Sky)

Abriu-se uma ferida de sangue no sangue das águas, como se a dura pedra, a solidez a suporta, as tivesse tocado e em seu caminho continuasse, incólume, esquiva, suspensa na tecelagem com que o barqueiro, nos dias mais negros, a fabricara. Os ventos vieram e, ao tocarem a superfície das águas, arvoraram impérios circulares, pátrias de oclusas fronteiras, uma navegação incerta. Quando nelas se entra, passada a raia sempre movente, respira-se um gás tépido, emanação do furúnculo, que no centro do centro corrói cada momento, suspende-o, torna-o, em precária situação, visível, antes de o devorar com uma boca de algas roxas e dentes de sílex, afiados pelas areias da praia, vorazes areias tem.

Se de uma vara erguida na luz do ombro ainda fizeres um remo, talvez um barco venha solícito em busca do barqueiro. Não terá proa nem ré, nem sobre as águas se moverá. Ficará suspenso e, enquanto o remador olha o horizonte, deixando os músculos no ir e vir de quem no mar se afadiga, o barco ondulará, atado nas cordas, ao céu o prendem, ligado por cabos de salitre às escuras nuvens, o vento as impele, que correm de casa em casa, procuram os filhos há muito abandonados à melancolia da paisagem, a crosta da terra de cinza cobre. Tecedeiras urdem assim, com suas mãos, os afilados dedos, na água entram, pois o barqueiro, ferido de sangue, aí os devora.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

A crise europeia e o espírito aristotélico

Elmer Bischoff - Europa (1957)

O presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, afirma que a Europa ainda é uma bicicleta mas sem ar nos pneus. Com esta pobre metáfora pretende abarcar a policrise, como lhe chama, que atinge a Europa. A principal crise, porém, é que a Europa actual rompeu com o jogo de equilíbrios fundador. De certa maneira, a Europa foi fundada num espírito que poderíamos chamar aristotélico. A virtude estaria no meio-termo, a equidistância de ambos os extremos de uma dada equação política. Isso significou um certo equilíbrio entre a direita e a esquerda, entre o espírito liberal e o espírito socialista ou social-democrata. A irrupção do ordoliberalismo e do neoliberalismo como possibilidades políticas únicas fez inclinar a orientação política para um dos lados. A velha mesotês (meio-termo) aristotélica foi abandonado, de forma temerária. E é esse abandono do exercício da ponderação e da busca do equilíbrio que abriu a caixa de Pandora, da qual começaram a sair todas as crises que têm emergido. Schulz diz que a Europa, enquanto comunidade, vencerá "se a maioria silenciosa puder ser novamente mobilizada pelos ideais" europeus. Isto, porém, é tapar o sol com a peneira. A Europa poderá resistir se conseguir voltar ao espírito aristotélico que lhe deu origem e que tem vindo a ser rasgado. Talvez assim consiga, paulatinamente, voltar a colocar os males dentro da caixa e fechá-la. Talvez.

domingo, 8 de maio de 2016

Mercados e niilismo

Giovanni Doménico Tiépolo - La expulsión de los mercaderes del templo (1760)

Dois trabalhos no Público on-line tornam, mais uma vez, patente a natureza niilista das chamadas sociedades de mercado e da ideologia do radicalismo liberal, aquilo a que se dá o nome de neoliberalismo. Num artigo de opinião, Teresa de Sousa questiona, a propósito dos refugiados e das negociatas entre europeus e destes com o senhor Erdogan (cada vez mais impante e menos contido na sua natureza) se os valores se tornaram mercadoria. Numa entrevista, Henriques Gaspar, o juiz presidente do Supremo Tribunal de Justiça, diz não saber o que é isso da justiça estar ao serviço da competitividade e vais mais longe: “Não gosto de utopias neoliberais na justiça”.

Estas duas tomadas de posição acabam por ter o mesmo alvo, a ideia de que tudo se pode reduzir a uma mercadoria (o velho fetichismo da mercadoria) e que todas as relações entre os seres humanos são, em última análise, relações de mercado. A subjugação da política, da ética, da justiça e da religião à dinâmica da economia de mercado é um dos elementos centrais do niilismo – da desvalorização de todos os valores –, onde as nossas sociedades, desde que caíram nas mãos do terceiro estado, não deixam de se afundar. Vale a pena olhar para esse efeito e perceber como ele funciona.

O mercado, com a sua lei da oferta e da procura, tornou claro que nenhuma mercadoria tem um valor absoluto e objectivo. Perceber um determinado bem como mercadoria é compreendê-lo na inexorável relatividade do seu valor. O valor desse bem não depende dele, mas da competição que existe em torno da sua aquisição. Quando o que está em questão são coisas (naturais ou produzidas) o mercado é um bom expediente para resolver a questão prática do preço. O grande problema é quando não se trata de coisas. A questão do velho Marx com o liberalismo clássico, por exemplo, está centrada em torno do trabalho humano. Será que é moralmente digno aceitar que o trabalho dos homens é uma mercadoria entre outras? O problema, hoje em dia, é muito mais complexo do que no tempo de Marx. Não é apenas o trabalho que é compreendido como mercadoria. Tudo se tornou uma mercadoria.

Quando tudo se torna uma mercadoria, quando tudo se interpreta, mesmo que sub-repticiamente, à luz da visão que ordena os mercados na determinação dos preços, a política, a ética, a religião e a justiça perdem todo o seu valor intrínseco. Não valem em si e por si mesmas, mas apenas se houver disputa por elas enquanto bens a usufruir. Numa extraordinária inversão (que, curiosamente, estaria de acordo com a teoria marxiana das relações entre as infra-estruturas económicas e as super-estruturas ideológicas), a utopia neoliberal, como lhe chama o juiz Henriques Gaspar, liberta o mercado da sua submissão à ética, à política e ao direito, tornando-o, ao mercado com a sua lei de relativização de todo os bens, como a fonte última de todos os valores e instituições. A vitória do terceiro estado significa assim a aniquilação potencial de todos os valores. Seja o que for - amizade, justiça, compaixão, instituições jurídico-políticas - só vale a partir da demanda que o mercado faz delas. Por si, não valem rigorosamente nada. E como não valem nada, podem ser objecto de todas as manipulações. O mais puro niilismo.

sábado, 7 de maio de 2016

A Noite e a Rosa - 3. Casa vazia

Carlo Carra - Casa Abbandonata (1930)

3. Casa vazia

Canta o ar na casa vazia
e tudo se abre à luz
os teus olhos ao meio-dia.
               
No centro da casa
na tormenta dos mares
o sol desaguava-era um rio.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Poesia, para quê?

Albert Rafols Casamada - Nuevos proyectos de poesía (1968)

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

A poesia, quando entendida ao nível do senso comum, é vista ou como expressão de sentimentos ou como arma de transformação do mundo. Ela, porém, nada tem a ver com a expressão de sentimentos pessoais. Ainda menos é uma aliada dos transformadores do mundo e da história. Um poema é, como salientou Octavio Paz, uma máquina que produz anti-história. Esta ideia é fundamental para perceber essa estranha coisa que é criar textos que colidem propositadamente com a linguagem da comunicação e a visão corrente do mundo e da história. Textos obscuros onde o sentido vacila, apesar do ritmo sedutor que os habita.

A poesia é, mais que tudo, uma luta com o tempo, um corpo a corpo com o fluir da temporalidade. A idade moderna fez entrar na consciência dos homens a ideia de progresso. Progresso moral, social, tecnológico. A poesia resiste a louvar-se em tal ideia. Porquê? Porque o progresso implica o fluir do tempo, a sua passagem, aquele trânsito que nos há-de conduzir do pior para o melhor. Ora o fluir do tempo implica também a nossa morte. As sociedades tradicionais eram organizadas de uma forma cíclica. Valorizavam o eterno retorno das estações e celebravam-no. Era a sua forma de lutar contra a história e a morte.

As sociedades modernas perderam a consciência do tempo cíclico, do eterno retorno do mesmo, e a retórica do progresso – que ainda hoje anima alguns exaltados – desfez o véu ilusório, mas fundamental para dar sentido à vida, de um tempo que sempre retorna. Ficou a poesia. Ela é o dispositivo que resta na luta contra o tempo, na busca da experiência mítica, na reconstrução de um véu de ilusão que nos permite aceitar a vida e a morte. Por isso, ela luta com e contra a língua, destrói-lhe os hábitos, obscurece o significado, conflitua com a gramática, para que desça até aos homens uma linguagem mais pura e original, não maculada pela história, e lhes proporcione a ilusão que eles precisam para viver e para aceitar a sua inelutável mortalidade.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Livro do Êxodo 6. A canção oblíqua

Alexej Von Jawlensky - Song (1916)

Se ouvirem os gemidos dos filhos do mundo e nesse sopro uma canção então se erguer, cativem em vossas mãos, em sorte vos couberam, nuvens de quartzo, e se na hora a mais cálida a voz de um barítono se levantar por todo o acampamento, peguem nas máquinas e enterrem bem fundo o nome que vos deram. Dele já não sabereis a cor das sílabas, nem o sabor de cada letra, a vós vos disseram.

Sangrarão pelo esforço as falanges e delas se desprenderá pela noite a luz, iluminará de ervas ralas as bocas, a mão da cerzideira tão bem as trabalhou. Uma saraivada de remos pelas águas e a aurora virá, e tudo se revestirá de veludo negro; nem as abelhas o pólen delibarão, presas na ânsia, o cansaço a tece. Deixar-se-ão acorrentar na suada colmeia, se um Sol de neve declina no horizonte.

Não é tempo de sacrifícios; há muito os animais partiram, esquecidos do trabalho, os homens como destino lho deram. Apenas nos semáforos azuis haverá filas de insectos noctívagos, esperam a ordem, um anjo de cabelo ralo a ordenará. Oblíqua, a canção tomará por penhor as águas do poço, erguer-se-á sobre os restos calcinados do dia e, na escura noite, pela fúria hidráulica da roldana, astuciosa a lua renascerá.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Telenovelas noticiosas

Tom Wesselmann - TV Still Life (1965)

Sempre que vejo um telejornal sinto uma enorme náusea. Em tempos, os serviços noticiosos das televisões visavam informar, o mais objectivamente possível, os cidadãos. Inscreviam-se ainda numa visão do mundo consubstanciada na velha frase de Hegel “a leitura dos jornais pela manhã é a oração do homem moderno”. A informação sobre o estado do mundo era um elemento central para a tomada de decisão. A informação pretendia-se descritiva, sintética e, dentro do possível, objectiva, neutra e imparcial. Ela era dirigida à razão e pressupunha a capacidade de entender o mundo para além das emoções que os seus acontecimentos provocavam no agente racional.

Hoje em dia, os telejornais substituíram a descrição sintética dos factos pela narrativa. Não se dão notícias, produzem-se pequenas telenovelas, onde os jornalistas, obrigados a ocupar largos minutos de antena com um palavreado oco, funcionam como elemento concatenador que solda os vários elementos da intriga. Ouvem-se múltiplas pessoas e até, se possível, várias perspectivas sobre o assunto em questão. Dá-se a ilusão de uma multiplicidade de pontos de vista, assente na ideia de que a verdade do acontecimento resulta do jogo das intersubjectividades, cada uma das quais expressa a sua particular verdade. Seja um ataque terrorista, um acidente, uma greve, um acontecimento político ou desportivo, o modelo é sempre o mesmo.

Esta substituição da descrição sintética e objectiva da factualidade pela narração telenovelesca tem, como se pode constatar, uma consequência nos noticiários televisivos. Deixaram de ser informação e passaram a ser entretenimento. Péssimo entretenimento, mas entretenimento. O corolário disto é que os acontecimentos já não conduzem a qualquer tomada de posição nem de decisão. A informação deixou de orientar-se para a razão. O fundamental não é saber a verdade sobre os factos e o que se pode e deve fazer perante aquele estado do mundo, mas saber como evolui a intriga e acaba a história. Depois de consumida esta, espera-se pela próxima novela. O suporte informativo de decisões racionais foi substituído por uma máquina de produção de pequenas excitações e de emoções fáceis e de baixo custo.

Não se pense, porém, que tudo isto resulta de uma cabala tenebrosa para manter a população alienada. Haverá, por certo, múltiplos factores que conduziram a informação ao estado actual. Salientem-se dois. Em primeiro lugar, a tomada de consciência, pelos responsáveis informativos, da importância crucial, na vida dos homens, da narrativa, do contar histórias. O homem é um animal narrativo, tem paixão pela intriga e um prazer específico em descobrir como se desata o nó que cada acontecimento encerra. Em segundo lugar, a própria democratização das sociedades de massas criou um mercado para este tipo de telenovelas noticiosas. A degradação da informação em entretenimento não é uma conspiração dos poderosos, mas uma exigência das pessoas. São elas que constituem o mercado para o qual se orientam as televisões. Como em tudo, também na qualidade da informação – neste caso, na sua degradação em entretenimento – vê-se reflectida a natureza cultural e cívica da comunidade que a consome. Um estranho destino para a esfera pública burguesa nascida das exigências da razão crítica.

terça-feira, 3 de maio de 2016

A Noite e a Rosa - 2. Campestre nocturno

Vincent Van Gogh - Noite estrelada sobre o Ródano (1888)

2. Campestre nocturno

O pomar de sombras sombrias
cobre de rumores a terra,
semeia suores na face suada.

Nas vinhas, um sol de cobre
desenha rios de cristal
na noite nascida no nada.