sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Descrições fenomenológicas 11. O relógio

Pablo Palazuelo - Orto V

A luz da manhã entrava pela janela e desenhava uma fronteira entre o que logo era visível e uma zona sombria que obrigava o olhar a uma longa habituação. Nessa obscuridade pressentiam-se presenças, talvez de objectos, mas isso gerava no espectador um sentimento de incongruência, pois a primeira sensação que se tinha era a de vazio. Onde a luz incidia com mais furor, no centro da divisão, talvez um quarto, havia, no chão, uma gigantesca almofada vermelha, rectangular, do tamanho de uma cama de casal, guarnecida, nos topos, com faixas de pequenas cordões dourados que mal tocavam o soalho. Num dos cantos da almofada, o que mais próximo estava da janela, havia um enorme prato, daqueles que servem para reter a água que se desprende de algum vaso com plantas ornamentais, talvez uma aspidistra, tão em uso nessa época. Estava pejado de pontas de cigarros, papéis rasgados, chamuscados aqui e ali, uma velha esferográfica de plástico transparente, sem carga e sem préstimo, aparas de unhas e, incompreensivelmente, um relógio, misturado com a cinza. Sobre essa almofada gigante, que alguém desatento poderia confundir com um tapete, havia uma outra, minúscula, cor de pérola. Sustentava a cabeça de um homem moreno, de cabelo negro, com um bigode regular sob um nariz pequeno, dirigido para cima, quase feminino. As pernas, vestidas por calças de ganga, presas por um cinto castanho de cabedal, e os pés, com botas de carneira, estendiam-se sobre a almofada gigantesca. O tronco estava despido. Um relógio de mostrador negro, idêntico ao que jazia entre cinzas e pontas de cigarros, ornamentava o pulso do braço direito, que, como o esquerdo, se estendia inerte pelo chão. A luz da manhã, uma luz fria, mas intensa, desenhava um auréola naquele corpo. Do canto esquerdo da boca, corria um fio de sangue, encontrava o caminho entre a barba por fazer há vários dias, escorregava, deixando um mancha viscosa de encarnado no pérola da almofada, e fundia-se no mar vermelho do que era, naquele instante, um leito de morte. Uma porta aberta deixava pressentir uma ausência ou a sombra de uma solidão. Olhava-se para o homem, mas, de imediato, o olhar fugia, talvez assustado pela morte, saltitava pelas paredes vazias, vagueava entre a luz da janela e a obscuridade que se adivinhava para além da porta do quarto, para se prender, como que enfeitiçado, no relógio perdido no cinzeiro improvisado. 

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.