quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Descrições fenomenológicas 15. Duas mulheres

Wassily Kandinsky - Composición VIII (1923)

A mão branca e fina, de longos dedos, apoia-se na mesa. Dela, ergue-se um braço esguio que suporta um corpo. De pé, assim amparada, uma mulher, ainda nos verdes anos, deixa que a cabeça se incline para o livro que segura na outra mão. Lê. Circunspecta, deixa sair dos lábios um murmúrio suave e cadenciado. Um vestido branco, preso na cintura por um lenço cor de vinho, desliza pelo corpo, como uma onda de feno batido pelo vento suave da tarde. Dos ombros aos pés, toda ela se cobre de inocência, enquanto as palavras fluem dos lábios e ecoam na sala, que a dimensão desmedida faz parecer vazia. O rosto, tão branco, traz consigo um destino tempestuoso, marchetado por olhos de azul cobalto. O cabelo, cor de fogo, cai pelas costas, e reflecte-se, no espelho de cristal, em labaredas esquivas. Ao lado, outra jovem mulher, cabelos negros e uma face pálida e meditativa, acompanha a leitura. O longo vestido verde seco deixa perceber uma cintura fina. Abre-se, depois, em três largos folhos rodados, para sobrevoar rasante o chão, mal deixando perceber os pés. Cobre-a ainda um xaile cor de salmão, cortado por uma fantasia floral vermelha, onde esconde mãos e seios. Escuta as palavras da outra, enquanto olha, sonhadora, para o livro. Estão próximas, tão próximas que o seio da ouvinte roça por vezes o braço despido da que lê. Nesses instantes, a voz treme levemente e logo retoma a cadência, enquanto o seio se afasta. A voz canta nos ouvidos e brilha nos olhos de quem escuta. São poemas, mas a entoação traz com ela a volúpia de um encantamento, um terno chamamento que faz os dois corpos aproximarem-se, para logo se afastarem, num jogo regido pelo ritmo dos versos, pela música das palavras, pelo som que, como um íman oculto, os chama um para o outro, tão puros na beleza ainda não macerada pela desilusão. Por vezes, a mão poisada na mesa ergue-se, vira a página e logo volta ao seu lugar. O silêncio é então quebrado e os versos evolam-se, enquanto o seio oculto no xaile se aproxima do braço despido e o toca com pudor. O verso treme nos lábios, em disfarçada hesitação, e logo se recompõe, mais encantatório no chamamento, filtro poderoso que traça secretos laços na inocência dos corações. 

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.