sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Livro do Êxodo - 36. Um deus aquém do umbral

Rafael Alvarado - Apolo (2001)

Quando o cascalho rangia, o bolor tomava conta das faces e um soldado tocava, pela manhã de Outono, o clarim. Um deus invisível vinha sentar-se na esplanada, o vento a batia, por vezes alguns chuviscos, se chuviscava. O imortal olhava as mulheres, pequenas flores de oliveira, cigarros a arder e as palavras, tão soltas as palavras delas, fluíam, corrente sem freio, o café a esfriar e a boca, dentes tinha, a abrir-se para o ar. Se as mulheres fumavam, os soldados, ouvido o clarim, logo se reuniam e, então, recebiam ordens, uma voz de comando as dava, e logo tratavam de marchar. Esquerdo, direito, esquerdo, direito, e lá iam, espingarda no dorso, à procura do luar, a boca cansada de saliva, os pés trementes, ao embater no chão, um barulho de cascalho sob as solas, e as mulheres, café na boca e cigarro na mão, os viam passar, condoídas da sorte e da noite que os esperava.

Assim se entreteciam paixões, dedos orvalho dentro, a respiração entrecortada se o coração, dedilhado com sabedoria, se inclinava e deixava-se, sob a música marcial dos soldados que marcham, enredar nas armadilhas trazidas pelas borboletas, agora víboras poisadas ao sol, à espera de passeantes incautos, à espera da erva seca e de ramos de rosmaninho para as fogueiras de S. João. Depois, o deus murmurava, dentro do seu silêncio, ao ouvir o ronronar das mulheres e o troar dos carros na avenida, o pára e arranca nos semáforos, a chávena de café que se soltava de mão inábil e, com piruetas de funâmbulo, se despenhava no solo, estilhaçada, rios de café e cacos de loiça branca, agora suja, pelo chão. O deus então encolhia os ombros e deixava arrefecer a esperança, enganadora esperança, que trazia imaculada no imaculado coração.

A todo aquele a quem seu coração mover, que se chegue à obra para fazê-la, dizia de si para si o deus, perdido no lado de cá do umbral, como se a harmonia dos mundos fosse a obra de uma comovida emoção e não fogo de pétalas esfaceladas, presas à moeda caída em ruína, sem resgate nem intervenção miraculada. Ao longe, os soldados marchavam, guiados pelo estandarte, iluminados pelo clarim, sedentos de glória, ansiosos pela morte, em breve chegará. Ou talvez não. Talvez o imortal estivesse cansado e no peito sentisse a opressão da passagem e assim cedia ao fulgor das imagens, que homens, razão teriam, faziam nascer na cabeça das crianças, para as proteger do orvalho ou do voo das águias, do céu vinham para semear lodo e lama nas ruas, onde os pés não deixavam como marca uma pegada, nem um lampejo de cardos havia no cascalho, o bolor o esfarelava na treva; não há coração que o não seja.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.