segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 11. Fulgor

José Antonio Sistiaga - Fulgor (1963)

11. Fulgor

Fulgura uma colmeia azul
na carne ferida pelas mãos,
na boca cansada de pólen.

Fulgura um fogo de água
no voo cego de um anjo,
na quietação do anoitecer.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Juízos de gosto

Manchester no século XIX

“No seu entusiasmo pelo crescimento / verdadeiramente ilimitado / da indústria, o estadista / Disraeli considerava Manchester / a mais maravilhosa cidade / dos tempos modernos, / uma Jerusalém celeste / cujo significado só a filosofia / poderia avaliar.” Quem o diz é W. G. Sebald em Do Natural – um poema elementar. Esta é a primeira obra publicada do autor e, apesar de se apresentar em forma de verso, permite já, para quem fizer, como eu, uma leitura a posteriori, compreender aquilo que vai ser o modo dos seus romances. Mas não é de Sebald que quero falar.

Benjamin Disraeli foi um político conservador do século XIX. Nasceu numa família de judeus, embora o pai tenha entrado em colisão com a Sinagoga. Aos 12 anos, Disraeli converteu-se ao anglicanismo. Na sua longa carreira política ocupou, por duas vezes, o cargo de primeiro-ministro. Atribui-se-lhe uma frase que deveria estar inscrita em todos os parlamentos, por cima da cadeira da presidência: Nenhum governo pode ser sólido por muito tempo se não tiver uma oposição temível. Não é a sua vida política, contudo, que me interessa.

Paralelamente a esta, Disraeli teve também um carreira literária. As opiniões críticas sobre os seus romances, que nunca li, não me parecem particularmente entusiasmadas. Um crítico literário, Robert O’Kell, chega mesmo a dizer, não sem alguma ironia, que mesmo que se seja um Tory ferrenho, é impossível fazer de Disraeli um romancista de primeira água. Robert Blake, que escreveu uma biografia de Disraeli nos anos sessenta do século passado, diz-nos que Disraeli produziu um poema épico, inacreditavelmente mau, e uma tragédia em cinco actos, em verso branco, ainda pior, se isso for possível. E é aqui que retorno à citação inicial de Sebald.

Que sentido estético habitava Disraeli para poder afirmar, no século XIX, que Manchester – a Manchester do algodão e da Revolução Industrial – era a mais maravilhosa cidade dos tempos modernos? No início do século XVIII, Manchester, segundo Emma Griffin, tinha uma população de 10 mil pessoas. Nos finais do XVIII, inícios do XIX, já rondaria as 90 mil. Contudo, a explosão demográfica dá-se no XIX. Em 1851, vivem em Manchester 400 mil pessoas e no início do XX, 700 mil. Esta explosão demográfica está ligada a condições de vida e de salubridade terríveis, mas também ao desespero daqueles que foram sendo empurrados dos campos para as fábricas e oficinas. É esta amálgama de desespero, vidas insalubres, infâncias submetidas a ritmos de trabalho duríssimos que está por detrás do fervilhar industrial de Manchester.

O enigma – se enigma é – prende-se, aqui, ao que motiva a apreciação de Benjamin Disraeli. Por certo que a sua posição política é propícia para – de uma maneira muito pouco conservadora – conseguir encontrar na vida tenebrosa de Manchester do século XIX uma réplica da Jerusalém celeste. Poder-se-ia atribuir-lhe a visão cínica de que o paraíso de uns é, ao mesmo tempo, não o purgatório mas o inferno de outros, de inumeráveis outros, coisa que um estrangeiro, posteriormente muito famoso, Friedrich Engels, não deixou de notar. Isso, porém, seria avaliar politicamente um juízo de gosto. A consideração de Disraeli sobre a natureza maravilhosa de Manchester, no seu tempo, só pode ter uma origem estética. Na verdade, Disraeli, como salienta o seu biógrafo, escreveu um poema épico inacreditavelmente mau e uma tragédia ainda pior. Esta tendência estética para o inestético e o feio basta para explicar o juízo embevecido de Disraeli sobre a Manchester da Revolução Industrial.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Utopia Cinética

Luigi Russolo - Dinamismo en un automóvil (1911)

O projecto da Modernidade funda-se, por conseguinte, — o que ainda nun­ca foi claramente enunciado — numa utopia cinética: todo o movimento do mundo deve passar a ser realização do plano que nós temos dele. (…) Seria demasiado pouco dizermos que a Modernidade prometeu ser ela própria, doravante, a fazer a história humana. No seu núcleo ardente, ela não quer apenas fazer história, mas também Natureza. Enquanto este século du­ro se aproxima do seu fim, vai-se espalhando a noção de que a história a fazer era um pretexto. O tema decisivo dos tempos modernos é a Natureza que há a fazer. [Peter Sloterdijk, A Mobilização Infinita. Para uma Crítica da Cinética Política]

1. É dentro desta utopia cinética que deveremos compreender a retórica política dominante no mundo ocidental. Constantemente somos confrontados com um movimento que pretende mobilizar-nos para uma contínua reconstrução das instituições, funções, atitudes e até dos próprios gestos. Veja-se o que se passa nas instituições públicas e nas empresas privadas. A necessidade de inovação não é mais do que a narrativa legitimadora da mobilização infinita do homem até à reconstrução da sua natureza, ao homem novo, até que se possa dizer: Ecce Homo!

2. Observe-se, também aqui, como marxismo e liberalismo, socialismo e capitalismo se apresentam como as duas faces da mesma moeda. No marxismo, é a necessidade que empurra a mobilização militante até ao paroxismo; no liberalismo, é a liberdade que se realiza como movimento contínuo de diluição no futuro.

3. No antigo mundo marxiano, o movimento, ao fundar-se na necessidade, tornou-se mais rígido e duro. A mobilização militante conduziu directamente à sobreposição da dimensão militar.

4. No mundo liberal, o movimento, ao fundar-se na liberdade, torna-se mais plástico e mais maleável, mas também mais dissolvente das instituições e modos de vida. Para não perecer imediatamente, necessita do contínuo apelo à inovação. A produção do novo está para o mundo liberal como a mobilização militar estava para as sociedades marxistas: o véu que cobre o puro vazio. (averomundo, 2007/04/13)

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Bloco de Esquerda, uma patetice


O recente cartaz do Bloco de Esquerda (BE), posto a correr nas redes sociais e na internet, tem levantado, como é hábito sempre que se toca em símbolos religiosos, algum burburinho e permitiu mesmo uma reacção incomodada e afrontada dos senhores bispos portugueses. O evento merece ser analisado a partir de dois ângulos. O da liberdade de expressão e o da eficácia política.

Do ponto de vista da liberdade de expressão, o BE tem todo o direito de afrontar os símbolos religiosos que entender. Somos herdeiros - para o melhor e para o pior - do iluminismo e, como Kant referia, tanto o poder pela sua majestade como a religião pela sua santidade devem submeter-se à crítica. Portanto, do ponto de vista dos direitos fundamentais, o BE pode usar os símbolos religiosos como muito bem entender, mesmo que isso afronte as crenças de alguém, como parece ser o caso.

Do ponto de vista da eficácia política, a opção do BE não passa de uma patetice. Argumenta a congregação bloquista que quer "provocar o debate sem tabus" sobre a adopção por casais do mesmo sexo. Estranha estratégia esta que escolhe um caminho que vem acordar os tabus e as convicções mais arreigadas de uma parte da população portuguesa. Para além da analogia ser uma idiotice, não é provocando o desconforto - ou mesmo uma certa ira benevolente - de uma parte da sociedade portuguesa que se lança um debate sem tabus sobre a questão. 

O BE tem de escolher de uma vez por todas que tipo de organização política quer ser. Quer ser uma organização fiável e inteligente na defesa do seu eleitorado ou uma espécie de bando de adolescentes retardados que, para parecerem muito revolucionários ao mesmo tempo que votam um orçamento aplaudido pelas agências de rating, brincam às provocações religiosas? Repito, o BE tem todo o direito a fazer este tipo de cartazes, mas eles não abonam lá muito a inteligência estratégica de quem congemina tais coisas. Depois, há um coisa que o BE deve compreender: nos dias de hoje, tão depressa se tem 10% numas eleições, como nas seguintes o grupo parlamentar vai todo de táxi - num único, saliente-se - para o parlamento.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 10. Iremos

João Queiroz - sem título (2008-09)

10. Iremos

Deslizam palavras pelas ruas,
sílabas na poeira do coração.
Iremos tão longe na terra.
Iremos à casa do silêncio.
Iremos ao som esboçado
no velho rio da gramática,
na crina da névoa ao arder.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

A Europa e o Islão

Jorge Colaço - Batalha de Ourique

Existe um problema interno ao mundo islâmico, por razões de ordem religiosa, guerras terríveis entre xiitas e sunitas. E ao mesmo tempo uma consciência muito aguda de que o Ocidente representado pela Europa está em declínio, sentem a nossa fraqueza enquanto potência mundial e jogam o jogo que sempre se jogou na Humanidade, os mais poderosos, ricos, os mais empreendedores, os mais guerreiros, os mais violentos, têm tendência a impor a sua lei. (Eduardo Lourenço, ver aqui)

Por fim alguém disse claramente o que há para dizer. No mundo muçulmano há não só a consciência do declínio da Europa como a ambição de impor a essa Europa a cosmovisão islâmica. Este é o principal problema que afecta a Europa e não o défice estrutural dos países do Sul ou mesmo as desigualdades sociais. Tanto um como as outras são importantes, mas, perante uma civilização que, apesar de científica e tecnologicamente atrasada, tem um forte dinamismo demográfico, riqueza material e ambição de conquista, as questões do declínio ocidental e da sua crescente impotência são absolutamente decisivas a médio e a longo prazo.

O declínio europeu - esse declínio que constitui uma janela de oportunidade para o avanço do Islão - é marcado pela decadência demográfica, pelos sentimentos de exclusão nacionalista, os quais pululam na Europa e arrastam consigo conflitos entre os países europeus, e pela destruição do pacto social interclassista proveniente da segunda grande guerra, destruição motivada pela incidência crescente da ideologia liberal nas decisões europeias. Estes factores, porém, são apenas o resultado de um outro factor que, devido às nossas crenças modernas e iluministas, deixámos de ver: a decadência do cristianismo no terreno social da Europa.


O problema do declínio da Europa é, em primeiro lugar, uma questão religiosa, resulta do contínuo apagamento de um dos pilares - juntamente com a antiguidade grego-latina e a ciência moderna - que forma a nossa cultura, isto é, o cristianismo. E é o vazio deixado por este que está a abrir profundas brechas na Europa, por onde entram não apenas ideologias destruidoras dos consensos sociais  e nacionais necessários como as pretensões daqueles que querem substituir o vazio deixado pelo cristianismo pela submissão a uma outra religião. O pior de tudo isto é que muitos europeus - onde se encontra uma parte substancial de uma classe política leviana entretida com as dívidas, as regras, a mercearia - não reconhece o problema e aqueles que o reconhecem estão longe, muito longe de saber lidar com ele.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O fundo negro da razão

António Dacosta - Amor Jacente (1941)

À mesa, à direita do Dr. K, senta-se um velho general que está quase sempre calado mas por vezes faz umas observações de abissal profundidade. Uma vez levantando os olhos do livro que tinha sempre aberto ao seu lado, disse que, pensando bem, entre a lógica do plano de batalha e a lógica das informações militares, e ele conhecia tão bem uma como outra, estende-se um vasto campo de eventualidades impenetráveis. Insignificâncias, mas que, escapando à nossa observação, são decisivas! Foi assim nas maiores batalhas da história mundial. Insignificâncias, mas que têm o peso dos 50 000 soldados e cavalos mortos em Waterloo. Afinal, é tudo uma questão de peso específico. Stendhal viu isto melhor do que qualquer estado-maior e nos seus tempos de velhice tratou de estudar o assunto, para não morrer na ignorância. No fundo, é uma ideia peregrina pensarmos que, com uma volta ao leme, com a vontade, podemos influenciar o curso das coisas, quando na verdade elas são determinadas por interacções de uma extrema complexidade. (W.G. Sebald, Vertigens. Impressões)

Uma das crenças mais fundas da modernidade ocidental, uma espécie de fé de ateus crentes no progresso, é a possibilidade de penetrar naquilo a que o velho general chama “eventualidades impenetráveis” e, assim armados de conhecimento, podermos, pelo movimento da nossa vontade, individual ou colectiva, influenciar o curso das coisas. A surpresa, porém, está sempre ao virar da esquina. O curso do mundo ao depender dessas «interacções de extrema complexidade» acaba não apenas por frustrar os intentos da nossa vontade, por mais poderosa que ela seja, como por seguir uma via que ninguém previra e que, no mais das vezes, talvez ninguém desejasse.

Mas um cérebro mais potente, por exemplo uma espécie de fusão entre o cérebro humano e a máquina computacional, não terá capacidade de determinar a extrema complexidade das interacções e assim prever o curso do mundo? Esta é a ilusão que sustenta a crença na ciência e na técnica. Mas um cérebro desses, mais potente, ao fornecer um número sempre crescente de imperativos que conduzirão a vontade na acção, multiplica as próprias possibilidades e, dessa forma, em vez de fazer crescer a determinação dos acontecimentos acabará por multiplicar a indeterminação. Apesar da propaganda, se nós olharmos para o mundo hoje em dia, ao fim de 4 séculos de crescimento ininterrupto da ciência, o mundo está, para a espécie humana, muito mais indeterminado do que era no início da época moderna. Quanto maior é o poder da vontade humana fundada no conhecimento racional, singular ou colectiva, maior é a indeterminação em que a espécie vive, maior é a irracionalidade que a envolve.

Uma das experiências fundamentais da humanidade ocidental nos últimos séculos é o da natureza irracional da própria razão. São tantos os exemplos, que chega a parecer incompreensível que não se dê por eles. Observe-se a política. Observe-se como a razão planificadora, no nazismo, gerou a irracionalidade dos campos de concentração. Veja-se como a razão emancipadora, no comunismo, gerou sociedades asfixiantes e aniquiladoras das liberdades. Veja-se como, no mundo da economia, a necessidade racional de controlo está a tornar o trabalho destituído de sentido humano. Há um mistério na razão: a sua natureza irracional. Toda a razão é uma irrazão. É como se, deixada a si-mesma, a razão fosse impotente para travar a sua própria loucura. Os tempos modernos são a experiência do fundo negro da razão. (averomundo, 2007/04/22)

Revelações do invisível

Nadir Afonso - Lisboa

Um dos poderes da arte é o de revelar, através daquilo que visível, o invisível. Há neste poder qualquer coisa que o assemelha à religião, na qual também se manifesta o invisível. Uma experiência desse poder de revelação encontra-se no trabalho de Nadir Afonso sobre a cidade (ver aqui). A longa meditação do pintor sobre os centros urbanos acaba por tornar visível aquilo que os sentidos não captam. Podemos ler estas obras sobre múltiplas cidades como uma espécie de estilização daquilo que a experiência sensível capta. Mas se perdermos algum tempo a olhar, começa a emergir na consciência uma outra possibilidade. O que vemos não é o que fica como resultado de um trabalho de abstracção da realidade, mas uma outra coisa de natureza completamente diferente. O que Nadir Afonso revela é a condição de possibilidade (um a priori ou uma estrutura transcendental) da cidade, não aquilo que deriva dela, mas aquilo do qual a cidade deriva. O que descobrimos é o conceito invisível, agora sob a forma pictórica, que organiza a visibilidade do espaço arquitectónico e do espaço social. O que descobrimos é a ideia da qual a cidade é o corpo onde essa ideia encarnou. 

domingo, 21 de fevereiro de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 9. Memória

Amadeo de Souza-Cardoso - A casita clara – paysagem (1915)

9. Memória

Mundo sem sombra nem sol,
dedilhado sobre a noite,
imperfeito como um pretérito,
o passado aceso ao meio-dia.

Abrem-se ali rugas no calcário
e escaras no portão descaído,
uma rosa no vestido rasgado,
e fresco, o hálito da invernia.

Vou por uma rua esburacada,
iluminada de malmequeres,
seixos, a caliça nas paredes.

Lugar sem frutos, a poalha
entre campos, as mãos caídas,
caídas ao zunir da varejeira.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Grandes Armazens do Chiado


O fascínio do passado reside na sua imperfectibilidade. Eu sei que as nossas representações desse passado são perfectíveis, mas o passado em si é absolutamente perfeito e como tal impossível de aperfeiçoar. Quando nos deparamos com algo vindo do passado, a primeira coisa que damos conta é da sua absoluta superioridade relativamente ao presente. Nisto não há nostalgia, mas apenas a constatação de um facto. O presente não passa de um híbrido entre o que está concluído e o que está em aberto. O passado, pelo contrário, é um animal de raça pura, de pedigree assegurado, nele não há possibilidades em aberto, tudo está fechado, concluído, feito, perfeito. Por exemplo, estas imagens que recolhi no Beautiful Century  são a prova do que está dito. 

Comecemos então a digressão pelos Grandes Armazéns do Chiado, no ano da graça de 1910. A primeira imagem diz respeito à back cover do winter catalog. Em 1910, os Grandes Armazéns do Chiado eram um império distribuído pelo país fora. Aveiro, Braga, Faro, Coimbra, Evora (sem acento), Portalegre, Covilhã, Lisboa, Porto, Setubal (sem acento), Vizeu (assim mesmo), Funchal, Caldas, Beja, S. Miguel. Como se vê, a proliferação dos hipermercados não é uma importação do eng.º Belmiro de Azevedo. Já no tempo da Monarquia isso acontecia.

Uma viagem atenta pelos desenhos não deixa de ser particularmente interessante. Toda uma lição de sociologia pátria está ali inscrita. Atente-se apenas nas figuras humanas das imagens referentes a Lisboa e à Covilhã (ver aqui). O que me fascina, porém, é a ortografia. Falo menos na acentuação, muito diferente da nossa, mas da grafia de certas palavras. Por exemplo, paiz em vez de país, ou succursaes em vez de sucursais. Que distância e que distinção.


Já imaginou a inexistência do pronto-a-vestir? Talvez. Concebeu um mundo de alfaiates, modistas e costureirinhas a receber, nos seus ateliês particulares, os clientes. Sim, isso é verdade, ainda me lembro bem desse mundo ser praticamente dominante, mas em 1910 a vida material era já muito mais complexa. Veja-se esta página, a 33 do catálogo dos Grandes Armazéns do Chiado (ver aqui). Ensina a tirar medidas, para depois se efectuarem encomendas de roupa. A elegância era assinalável. O que se podia encomendar?

As senhoras, capas e confecções, vestidos, calçado, chapéus e luvas; os homens, camisas, casacos, collarinhos e colletes (o duplo "l" como sintoma de civilização), calça (no singular) e essa inesquecível peça de lingerie masculina que dá pelo nome de ceroulas, cujas medidas são as das calças. Também há fatos para os meninos e vestidos para as meninas.

Mas o supremo encanto da página é os plissés (mais tarde falava-se em plissados). Dois tipos de plissés, os Soleil e os accordeon (os primeiros com letra maiúscula e os segundos com minúscula), ou deitado. São executados nos ateliês da casa. Também há recortagem (mas aqui falta-me a cultura para perceber se diz respeito aos plissés ou não) à machina, o que é bem diferente de recortagem à máquina, coisa mais ligado à metalurgia e à metalomecânica, que a reforma ortográfica de 1911 acabou por introduzir.


A página 32 do catálogo de inverno de 1910, um catálogo imaginado em plena Monarquia e que entrou em vigor no início da República, traz-nos os edredons (ver aqui). Quase todos de setim liberty e com enchimento duvet francez. Quantos enigmas aqui? Hoje escrevemos cetim. A palavra chegou até nós vinda de França, onde se diz satin, e tem a sua origem no árabe zaituni referente à cidade chinesa Zaitun, onde o tecido era fabricado. E no simples setim temos uma prática ancestral de globalização que nos faz sonhar com desertos e rotas da seda, camelos e oásis, estreitas sendas e longos poentes.

Nada mais evidente, porém, do que a adjectivação do setim, liberty. Que propriedade, que não a liberdade, poderá vir ao espírito quando se pensa em setim ou mesmo em cetim? Um espírito liberal descia assim, leve e vaporoso, pelo catálogo. Um setim liberty com enchimento francez duvet. Duvet? Claro, duvet a palavra francesa para penugem, para o conjunto de penas que enchem o edredon. Uma coisa é ter um edredon de penas e outra, totalmente diferente, é possuir um edredon duvet, ainda por cima com setim liberty. Repare-se como a vida material é tão pouco material, como ela depende do espírito. Talvez não exista coisa mais espiritual do que a vida material.

Mas não deixemos passar em claro um pormenor significativo: o enchimento duvet, que já não é um enchimento qualquer, é feito segundo os preceitos da hygiene. Não é apenas a nobreza do "y" que nos cativa e que indica o caminho de degradação popular que vai da era da hygiene aos nossos rudes tempos da higiene. Há ali toda uma dedução de carácter kantiano, que pressupõe o imperativo categórico que impõe o respeito pela pessoa enquanto fim em si mesma. Se não, como explicar os preceitos que defendem essa pessoa através da hygiene do enchimento francez duvet. Que tempos!


Como já foi dito, nada há mais espiritual do que a vida material, e esta não é nada se não tiver em conta aquilo que nos alimenta (ver aqui). Por exemplo, lentilhas, ervilhas, favas e grão não levantam o problema da diferença ontológica. São o que são e não têm qualificativo. Diríamos que são transversais. Já o feijão é diferente. Há o feijão suisso (assim mesmo), ofrageolet, osoisson e o cabreiro, e por mais caro que seja o cabreiro, alguém de boas famílias o pedirá? Pelo contrário, um feijão frageolet ou soisson é digno de ser encomendado pelas melhores, apenas as melhores, famílias da pátria.

Novidade, ou quase, deveria ser o vinho engarrafado. O Carcavellos (só estes dois "l" são prova da qualidade), branco (150 réis) ou tinto (120 réis), era vendido em garrafões ou barris de 5 litros. Uma elegante garrafa enrolhada e capsulada automaticamente do Carcavellos branco custava 100 réis. A manteiga era vendida em lata, manteiga do Dão ou manteiga da Praia d'Ancora. O café Princeza vinha em lindas latas axaroadas (não sabe o que é? Bem, talvez se consiga lá chegar por acharoadas, de charão, um verniz à base de laca; seriam lindas latas lacadas). A página 31 do catálogo de inverno dos Grandes Armazéns do Chiado é uma introdução, delicada mas informativa, à dieta das classes médias no início da República ou no fim da Monarquia, conforme preferir.

Como se vê, o passado é absolutamente imperfectível, pois ele é belo e perfeito. E é de tal maneira perfeito que basta umas quantas páginas de um catálogo comercial para deixar manifesta a sua inexcedível beleza. O que nos dá a esperança de, quando formos definitivamente passado, a beleza – uma beleza irremediável e imperfectível – nos tocar, sob o olhar condescendente dos nossos bisnetos ou trinetos. (averomundo, 2009/07/03)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Um devaneio tipográfico

Claude Garamond

Duas coisas que me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim. (Kant)

Quem era este senhor? Tinha por nome Claude Garamond (1480-1561). O que faz aqui o seu retrato? Para dizer a verdade está no lugar de um outro, o de Jakob Sabon, que não consegui. Mas a que propósito vem isto? Para dizer a verdade, vem a propósito do romance de Vergílio Ferreira que li, na edição das obras completas lançada pela Quetzal. Na última página do livro, a editora coloca a seguinte nota:

«Em Nome da Terra, romance de Vergílio Ferreira, livro da série Obra Completa de Vergílio Ferreira, publicado por Quetzal Editores, foi composto em caracteres Sabon, originalmente criados em 1967 pelo alemão Jan Tschichold (Leipzig, 1902-Locarno, 1974) em homenagem ao trabalho tipográfico de Jakob Sabon (1535-1580), e inspirados nos tipos desenhados por Claude Garamond (Paris, 1480-1561), e foi impresso por Printer Portuguesa em papel Besaya/80 g em Maio de 2009, numa tiragem de 1500 exemplares.»

O que é a espessura da História? É isto mesmo. Um romance escrito no século XX é lido no século XXI, num livro composto em caracteres criados no século XX, em honra de um tipógrafo que viveu na segunda metade do século XVI, que se inspirou no trabalho de outro tipógrafo que viveu umas dezenas de anos antes. Contrariamente ao que pensa a leviandade que tomou conta do nosso tempo, tudo o que fazemos se perde na noite do mundo. A noite do mundo é a História na sua espessura infinita. Nesta pequena nota tipográfica da Quetzal Editores, há toda uma história da tipografia que se entretece com a história da cultura e com a própria História dos homens.

Não é apenas o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim que me causam espanto e admiração. Também esta noite do mundo, na qual se perdem sem rasto os nossos gestos, as nossas palavras, os nossos utensílios e as nossas instituições, é motivo de admiração e espanto. Se a contemplação do céu estrelado – ou mesmo a constatação da lei moral em mim – me conduz à vertigem, a percepção de que aquilo que somos se perde no fundo dos tempos não conduz menos o pensamento à vertigem, como se se estivesse a cair num poço sem fundo.

Quanto da minha identidade – e não há quem não preze a sua identidade – não é meu, mas pertence a esse fundo sem fim do qual faço parte? Basta um pequeno devaneio tipográfico para ser confrontado com a minha própria irrelevância. Também é isto que me faz sorrir das pretensões dos liberais, da retórica sobre a preeminência do indivíduo, das pretensões dos inovadores. Na verdade, tudo aquilo que fazemos, por inédito que pareça, tem uma dívida infinita para quem (e são incontáveis) veio antes de nós. Uma dívida que nem os mais liberais acham que deva ser paga.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Experiências de invisibilidade

René Magritte - As Férias de Hegel (1958)

Portugal é um país difícil, embora semi-ameno e, apesar das aparências, semi-amável, e isto é já ser tolerante. Quanto aos portugueses, estes têm dias. Às vezes, possuem o dom de fazerem poucas conexões neuronais. Também consta que possuímos o QI médio mais baixo da Europa Ocidental. Basta chegar a Badajoz e o QI sobe, por milagre, três pontos. Quando me sinto irritado – coisa que acontece mais do que devia – com o pouco uso que a variante portuguesa do homo sapiens sapiens faz das estimáveis conexões neuronais lembro-me sempre de uma ocorrência passada, há uns anos, num daqueles restaurantes de referência, garfo de ouro, à época, do Expresso.

Chegámos e entrámos para uma sala onde havia apenas outro casal. Fomos sentados numa mesa suficientemente longe desses comensais. Passado pouco tempo, ficámos sozinhos. Até que chega um novo casal, gente cinquentona como nós, acompanhado pela mãe dele. Falavam alto e nasalavam as palavras, marido e mulher por pouco não se tratavam por tio e tia. Evidenciavam uma boa instalação na vida e a frequência dos sítios certos. A mãe dele olhava para a nora com a habitual condescendência que se tem quando se acredita que os filhos não souberam escolher a mulher. O empregado teve a infeliz ideia de dizer “podem escolher, estejam à vontade” (foi aqui que eu comecei a desconfiar dos garfos de ouro).

Ora há um princípio essencial na vida em Portugal: um português nunca deve ser deixado à vontade. Entre as múltiplas mesas existentes na sala vazia, a única que interessou a estes extraordinários portugueses deixados à vontade foi a contígua à nossa, ali mesmo a uns escassos 50 a 70 cm do meu prato. A esta primeira amabilidade, que me fez acreditar possuir o poder da invisibilidade, acrescentaram, perante o silêncio constrangido em que tomámos a refeição, ainda as suas ruidosas opiniões sobre isto e aquilo e até sobre uma pessoa que, por acaso, conhecíamos muito bem de outras e longínquas paragens. Por vezes, penso que sofremos de um défice de qualquer coisa, ou de um superavit de estupidez. Não, não, nem sempre é fácil a vida em Portugal.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 8. Cidade despojada

Carlos Botelho - Lisboa (1962)

8. Cidade despojada

Uma luz fria tece-se
na cidade despojada,
grávida, olhos negros,
tantos os outonos.
Sobre o rumor das ruas
fumegam os despojos:
roubam à morte a cárie,
a vida oxidada nas praças,
nos bancos onde poisam
cansados os pombos
e as últimas varinas.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A língua e a ortografia

Javier Rodríguez Quesada - Degradación I

Com efeito, toda a degradação individual ou nacional é imediatamente anunciada por uma degradação rigorosamente proporcional na linguagem. (Joseph de Maistre)

Perante o acordo ortográfico de 1990, bem como diante da reforma ortográfica de 1911, pergunto-me, muitas vezes, sobre o que havia, na antiga ortografia, que causasse tamanha repulsa e tão grande furor reformista. Tanto em 1911 como em 1990 há uma simplificação da forma de escrever o português. Estas simplificações, todavia, não são mais do que meras degradações da língua e da linguagem. O grande inimigo dos simplificadores ortográficos é o passado, a sua espessura, as camadas sedimentares que se foram depositando nos vocábulos. A destruição - isto é, a simplificação - volta-se contra a presença visível da antiguidade clássica na língua. Essa presença torna-se visível - é preciso não esquecer que uma língua não tem apenas uma componente sonora, tem também uma componente gráfica - nas consoantes mudas ou que se encontram num processo de emudecimento. São elas que, na sua aparente inutilidade, lembram ao utilizador da língua as suas raízes ancestrais, a sua ligação com um passado que nos constituiu e nos instituiu. Rasurar a visibilidade do grego e do latim no português é como rasgar as fotografias dos nossos avós, apenas porque a morte os emudeceu. Esta rasura, porém, não é apenas a degradação da língua e da linguagem. Ela é, seguindo a lição de Joseph de Maistre, o sinal de uma degradação ontológica do todo nacional. Onde podemos nós encontrar essa degradação? Na simplificação. Simplificar significa destruir a complexidade, tornar tudo mais fácil, menos exigente, menos rigoroso. O que as elites políticas aprovaram em 1911 (já preparado no século XIX) e em 1990 não foi outra senão a confissão da sua descrença na capacidade dos portugueses para lidar com a complexidade, com o exigente e com o difícil. Aprovaram um programa de degradação nacional, o qual cresceu por todo lado e a tudo colonizou.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Justa distância

André Hambourg - La Conversation (1929)

Há uma palavra grega, aidos (Αἰδώς), que se traduz, por norma, como vergonha, modéstia ou humildade. Em todas estas expressões encontramos uma certa ideia de distanciamento, de tal forma que costumo interpretar aidos (Αἰδώς) como a justa distância que deve separar os seres humanos, para que eles possam viver com um módico de dignidade. O meu problema, contudo, é que esta justa distância não é fixa. Tenho constatado que, com o passar dos anos, a distância justa é cada vez maior. Não é que os outros me incomodem. Não. Sou eu que sinto estar a mais. O que significa isto? Apenas que qualquer coisa que eu tenha a dizer - e eu tenho cada vez menos coisas a dizer - não os interessa rigorosamente nada. E tudo aquilo que os poderá interessar, devido à minha ignorância, é-me desconhecido. Este legítimo desinteresse dos outros por aquilo que eu possa dizer e esta impotência minha em saber o que interessa aos outros são os motores que fazem crescer a distância. A justa distância protectora dos outros relativamente à minha presença é assim cada vez maior. Penso, por vezes e não erroneamente, que este afastamento, imposto pela justa distância, é um caminhar em direcção à morte. Também em relação a ela há uma justa distância, mas, ao contrário da outra, esta vai diminuindo. Esta diminuição não se deve apenas ao envelhecimento, mas ao facto de entre mim e ela haver cada vez mais assuntos em comum. Chegará a hora em que ela será a única que não se incomodará com aquilo que eu tenha a dizer.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

A noiva jubilosa

Marc Chagall - My Fiancé in Black Gloves (1909)

Retorno às palavras e olho para a língua como um campo a lavrar. Há centenas de anos, agricultores silenciosos trabalham a terra, sulcam-na de lés-a-lés, lançam pequenas sementes de onde novos e novos mundos virão. A cada ano que passa, porém, é necessário retomar a charrua, carregá-la com o corpo e desenhar, mais uma vez, os traços eternos na terra. De longe, quem olha a azáfama percebe, apesar da antiguidade da faina, que os frutos são frescos e, em cada texto nascido, a língua, como as leiras de terra sempre lavradas, enche-se de vida; é sempre a noiva jubilosa que se apresenta no altar. (averomundo, 2008/05/10)

sábado, 13 de fevereiro de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 7. Herança

Peter Lanyon - Earth (1946)

7. Herança

Dou-te em herança esta terra,
os prados de cinza e fogo,
os cavalos inclinados do coração.
Será preciso que aprendas
a incendiar o Inverno,
a repartir a palavra que te deixo,
ao suplicar a dádiva da morte
no último assalto da vida.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Escola a tempo inteiro

Margaret Baird - School Days (1967) (ver aqui)

Projecta-se a extensão da escola a tempo inteiro, já em vigor no 1.º ciclo, até ao 9.º ano de escolaridade. Os alunos dos 2.º e 3.º ciclos terão a possibilidade de permanecer na escola onze horas. Onze horas, já imaginou? Como acontece sempre com este tipo de medidas, são aduzidas razões louváveis para a sua justificação. Necessidade de fornecer um currículo cultural e desportivo mais amplo e responder às necessidades das famílias, cujos horários de trabalho não lhes permitem cuidar dos filhos. Olhemos, contudo, para o facto em si mesmo: as crianças e jovens estarão formalmente institucionalizados durante onze horas por dia.

Que sociedade é esta que quer as novas gerações, tantas horas diárias, sob uma das mais formais institucionalizações? É uma sociedade que deixou de gostar dessas novas gerações, que as vê não como uma promessa de futuro e de renovação, mas como uma ameaça perigosa à ordem (aquela ordem que impõem horários de trabalho cada vez maiores), ameaça essa que tem de ser contida pela institucionalização. A escola a tempo inteiro é - por nobres que sejam as intenções, e eu desconfio dessa nobreza, pois há nela demasiada engenharia social e produção do Homem Novo - uma punição das crianças e dos jovens pelo simples facto de existirem.

Em vez de criar condições para que, crianças e jovens, tenham, ao lado do tempo escolar, um tempo de vida informal e espontâneo, a nossa sociedade pretende replicar em cada escola o tenebroso panóptico de Bentham. Uma hipervigilância daqueles que são vistos como uma ameaça perigosa da nova ordem social. O que essas crianças e esses jovens precisam não é de mais tempo na escola. Precisam de mais tempo com os pais e precisam de mais tempo para elas próprias interagirem de forma não institucional. A escola a tempo inteiro é um sintoma que deve ser lido em correlação com a baixa demografia. É o símbolo do rancor social perante a desordem que um neo-nato introduz na textura do mundo e dos interesses da gerações existentes. A escola a tempo inteiro é o sinal da terrível doença que nos está a atingir.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Sobre o sacrifício

Corrado Giaquinto - O Sacrifício de Ifigénia

Um perigo idêntico, numa leitura acrítica de Maistre, seria acreditar que a irracionalidade social e a violência simbólica, que tanto o interessaram, pertencem ao passado e que podem ser ignoradas com segurança. O seu trabalho ilumina uma classe de factos políticos e sociais geralmente ignorados pela tradição, a que ele se opôs, do pensamento político inspirada pelo Iluminismo. (Owen Bradley)

Joseph de Maistre é um autor, apesar de relativamente desconhecido, muito importante para compreender o mundo em que vivemos. Não por ter sido um reaccionário que, com uma prosa brilhante e anunciadora do Romantismo, se opôs à Revolução Francesa, mas porque pensou naquilo que o Iluminismo, um seu inimigo de estimação, recalcou. Um dos temas que prendeu a atenção reflexiva de Maistre foi o sacrifício. Nele cruzam-se a irracionalidade social e a violência simbólica. Qual a importância de pensar o sacrifício nos dias de hoje? 

Dois motivos nos conduzem para essa necessidade. Em primeiro lugar, a ambivalência do discurso económico e político que, ao mesmo tempo, apela ao consumo e à maximização dos prazeres como motor dos mercados e, por outro lado, impõe políticas de austeridade que exigem práticas sacrificiais que diminuem o consumo e impõem uma minimização do princípio de prazer. A situação cai directamente nas categorias da irracionalidade social (exigências contraditórias) e da violência simbólica (as austeridadess que o corpo deve sofrer para refrear a busca de prazer). 

Em segundo lugar, a reflexão de Maistre sobre o sacrifício pode ajudar-nos a compreender aquilo que para nós, ocidentais, é motivo de preocupação e escândalo. Traduzo um pequeno excerto de uma entrevista de Pierre Hassner, um investigador frnacês de Relações Internacionais, na edição de 2016 do Bilan du Monde, editado pelo Le Monde: Com efeito, tudo o que faz a complexidade e a dificuldade do mundo é que há pessoas que pensam sinceramente ganhar o paraíso e fazer triunfar a «verdadeira religião» sacrificando a sua vida para matar os «infiéis». O terrorismo islâmico trouxe para a primeira linha política a problemática sacrificial. É esta problemática - que o Iluminismo recalcou pensando que a luz da razão dissolvia a irracionalidade sacrificial - que está na base da complexidade da situação geopolítica internacional. 

Tanto a situação económico-financeira internacional como a situação geopolítica são marcadas pela desordem, uma desordem introduzida pela desmedida dos homens. O sacrifício (deixo de lado a teoria da reversibilidade, a qual ajudaria explicar a vitimização dos sacrificados) é uma forma de contrabalançar estar desmedida e este excesso. O que está em jogo não é utilizar Maistre para legitimar os sacrifícios que ocorrem. O que está em questão é pensar, na sua economia profunda, o significado social desses sacrifícios e encontrar novos caminhos, tanto na ordem económico-social como na ordem geopolítica. 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Voltar à menoridade

Milton Avery - Summer Reader (1950)

Os EUA são pródigos em movimentos estranhos. Este é mais um. Jovens universitários estão a pedir que os protejam do conteúdo de certos livros que consideram perigosos. Estes livros, em geral, são as grandes obras de literatura (ler aqui). A tese que é arguida pela psiquiatra Manuela Correia, no artigo do Público, é o da infantilização da sociedade. É verdade, as sociedades ocidentais, com a norte-americana em destaque, estão cada vez mais infantilizadas. 

Há, todavia, neste tipo de movimento, dois sinais muito preocupantes. Em primeiro lugar, o facto da cultura superior - no caso, a grande literatura - se tornar ameaçadora para os universitários. Isto aponta para aquilo que a Universidade se está a tornar - ou pode vir a tornar - sob as exigências dos alunos, hoje, segundo a cartilha económico-política em vigor, vistos como clientes. E os clientes, como se sabe, têm sempre razão.

Em segundo lugar, esta comportamento reflecte o crescimento da intolerância. Esta atitude, embora menos espectacular, não é qualitativamente diferente dos ataques ao património cultural perpetrados pelo dito Estado Islâmico. Também os militantes deste se queriam proteger - a eles e à humanidade - daquilo que consideram um perigo. A ameaça ao Iluminismo - naquilo que ele tem de mais positivo e criador - não vem só de fora do Ocidente. Também aqui as forças obscuras operam para fazer voltar o homem ao estado de menoridade.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 6. Sonho

Edvard Munch - Summer Night´s Dream (The Voice) (1893)

6. Sonho

Uma palavra de enxofre e sal,
o sonho trôpego que caminha
como um animal de olhos
brancos na escuridão da colina.

O horizonte abre-se num lago
de vozes roucas e sulfurosas,
onde uma mulher deslumbrada
sonha a tristeza da partida.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O fim da história

Marcus Stone - The End of the Story (1900)

Um acaso fez-me voltar a este quadro de Marcus Stone. O que me prende nele não é a figura feminina por si mesma, não é a descrição ostensiva de um ambiente social, não é, tão pouco, a silenciosa concentração na leitura de quem anseia por chegar ao fim da história. A tradução portuguesa do título do quadro, The End of the Story, permite uma contaminação entre o fim de um romance e o fim da História. E é esta contaminação que me devolve ao quadro, à mulher que lê e anseia por chegar ao fim da narrativa. Enquanto lê, deixa descair o braço esquerdo e permite que a mão acaricie um gato. É esta displicência que me fascina e me leva a imaginar o outro fim da História. O melhor que pode acontecer, quando a História está a acabar, é estarmos sentados e, despreocupadamente, acariciarmos um gato, até que tudo esteja consumado. Como no fim de um romance, outro poderá ser lido, também outra História virá, mesmo que nela já não tenhamos lugar. E uma coisa parece adquirida. Não faltarão gatos a solicitar a displicência de uma carícia.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

O Carnaval e a razão galhofeira

Francisco Suñer - Carnaval (1982)

Partilho com muitas outras pessoas um sentimento depressivo sempre que se chega ao Carnaval. Tentei várias vezes fazer uma arqueologia pessoal deste sentimento. Sempre me pareceram, essas tentativas, inúteis, pois as respostas obtidas estavam longe de me contentar. A tristeza que me invade - e que parece invadir muitos outros - não tem a ver com experiências singulares. Ela vem de outro lado. Vem daquilo em que se transformou o Carnaval. O Carnaval, originariamente, seria uma festa dionisíaco marcada pelo excesso, pelo desregramento, pela ultrapassagem dos limites que a razão apolínea impõe durante o ano. O Carnaval seria, desse modo, um momento do culto - de um culto místico, diria - de Diónisos. O que acontece, porém, é que o Carnaval foi domesticado e Apolo impôs a sua dura regra. O resultado são os tristes carnavais que vemos por aí, onde, em vez da superação dos limites da razão, se assiste à exibição de uma razão galhofeira e patética, que se manifesta nos desfiles das escolas e nos corsos para turista, e que tem a função de vigiar as populações para que evitem o desmando dionisíaco. O resultado é uma sensação de tristeza sem fim.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Tocata e fuga


Pego num velho livro de David Mourão-Ferreira, Entre a Sombra e o Corpo, composto por 30 pequenos poemas, todos eles constituídos por dois hexassílabos culminados, rematados como diz o próprio poeta, por um trissílabo [por exemplo: «Quantas mãos Quantos dedos / para que em seda cedam / as paredes]. Os poemas são de um erotismo musical quase comovente. Mas, como muitas vezes, há outras coisas que me prendem ao livro. Logo a começar a capa, aquela velha capa da Moraes Editores, a capa da colecção Círculo de Poesia. Depois espreito o ano de edição e descubro que é de 1980, de Novembro de 1980. O meu exemplar é da primeira edição. Vou ver se o livro tem o meu nome como usava fazer até certa altura. Descubro dois nomes, o meu e o de uma mulher, aquela que na altura partilhava a vida comigo. Vejo também a data da compra, 31 de Dezembro de 1980. No último dia do ano de 1980, comprei um livro de poesia. Não consigo já descobrir onde. Isso foi há mais de 35 anos. A Moraes Editores acabou, deixei de partilhar primeiro os livros e depois a vida com a dona daquele nome, o poeta morreu, há muito que deixei de pôr o nome ou o quer que seja nos livros que compro. Resta o essencial, aqueles pequenos poemas, poemas como este: «Bebo mais do que toco / E que insónias afogo / neste copo». Talvez não haja mais nada a não ser isso, as insónias que afogamos nos copos ou nos corpos que bebemos. (averomundo, 2008/12/11, actualizado)

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 5. Procissão na aldeia

Pére Pruna - Procesión

5. Procissão na aldeia

Depois, vinha a procissão:
uns anjos safados e sujos,
o santo preso no andor,
e as virgens quase gastas,
tão presas na brancura,
tão remendadas de escamas,
tão cansadas de esperar
a sombra da madrugada.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A virtude da austeridade

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

Um véu negro, entretecido por uma má fama, caiu sobre a palavra austeridade. No entanto, o actual destino da palavra é injusto. Pelo menos, parcialmente. Na verdade, o vocábulo latino austēru (austero) significa rude, áspero. Num mundo, onde tudo se quer fácil e confortável, rudeza e aspereza não são qualidades suportáveis. Este é o lado mais negro. Austeritāte (austeridade), todavia, significava para os antigos romanos seriedade. A sua ligação à ideia de seriedade mostra já um lado luminoso na austeridade.

Num mundo de grande desperdício, quando a natureza – a qual foi vista após a Revolução Industrial como um stock de matérias primas para consumo humano – dá mostras de exaustão e de impotência para alimentar todos os devaneios que a capacidade técnica dos homens e a voracidade dos interesses próprios são capazes de criar, a ideia de austeridade toma um lugar central na luta pelo equilíbrio do planeta.

A contenção do desejo, o rigor na limitação do desperdício, a disciplina na relação com a natureza, tudo isso só pode ser visto como virtuoso. E sendo virtuoso, como uma norma moral que deveria  regular – com seriedade e severidade – o comportamento de todos os seres humanos. Em primeiro lugar, o daqueles que vivem nas sociedades mais ricas do planeta.

O que promove a má fama da austeridade é a sua contaminação política e a suspeita de que a sua distribuição não é igual para todos. Nas actuais políticas de austeridade, os que são atingidos por elas percebem que os recursos que lhes são retirados não visam uma austeridade virtuosa. Visam antes a transferência para aqueles que são mais poderosos.

O problema da austeridade não está nela mesma, mas no facto da austeridade de muitos servir a exuberância e o excesso de alguns. Em sociedades como a nossa, marcadas pelo cálculo racional e egoísta e alicerçadas na inveja, a virtude da austeridade só seria aceitável se os mais poderosos se entregassem eles próprios, de forma séria e severa, à austeridade. Como se sabe, apesar de eles a recomendarem aos outros, não a vêem como um dever para eles. Pelo contrário.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Europa, Europa

François Boucher - O Rapto de Europa

Talvez a Europa tenha já começado a abandonar os valores que ergueu no pós-guerra. Talvez um deus, em forma de touro (esse símbolo de uma natureza impetuosa), a tenha já tomado e a arraste para perda. Talvez. Seja como for, ainda há motivos para querermos ser europeus e ter nisso orgulho. Por exemplo, é bom na Europa não se executarem pessoas que estão há 36 anos no corredor da morte, como aconteceu agora no estado da Geórgia, nos EUA. Não o fazer é sintoma de ter valores com os quais vale a pena viver. É bom na Europa não se condenar, por delito de pensamento, um poeta à morte, primeiro, e, perante a indignação internacional, a oito anos de cadeia, 800 chicotadas e a renegar o seu próprio pensamento, como aconteceu agora na Arábia Saudita. Não condenar ninguém pelo que pensa é sinal de ter valores com os quais vale a pena viver. Se a Europa soçobrar na tormenta que a atravessa, quem, no nosso pobre planeta, erguerá os valores pelos quais a vida vale a pena ser vivida?

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Uma ameaça

Benjamín Palencia - Figuras (1932)

Quando olhamos para o passado, descobrimos facilmente as diversas figuras que a história foi tomando. A Antiguidade Clássica Grego-Latina, a Idade Média, o Renascimento, as Luzes, etc. Estas figuras são o resultado de processos de desfiguração - nos quais uma figura anterior perde os contornos - e de configuração - pelos quais uma nova figura nasce e amadurece, precisando os seus traços. Isto percebe-se facilmente, pois olhamos para trás, para o que a história perfez e desfez. A grande dificuldade é compreender a figura que tem o tempo que nos foi dado a viver. As forças de desfiguração e as de configuração confundem-se ante o nosso olhar. Pior, o nosso desejo, ao projectar-se sobre o mundo em busca de satisfação, confunde o nosso olhar, pois sob o desejo de satisfação opera o medo de que o trabalho de desfiguração nos roube a nossa fonte de prazeres e o trabalho de configuração traga aquilo que em nós semeará dor. Toda a nova figura é uma ameaça.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 4. O mundo devastado

Frantisek Kupka - Aguatinta (1913)

4. O mundo devastado

Olhava para o mundo devastado
e cantava com voz límpida
a periferia de cardos entre dedos,
o louvor dos dias finais e brancos.
Claros, negros, tanta a sufocação.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]