quinta-feira, 2 de março de 2017

Amor à menoridade

Egon Schiele - Criança dormindo (1910)

Depois do drama dos sms e emails do ministro Centeno, temos agora a tragédia da não divulgação das transferências para paraísos fiscais do ex-secretário Núncio. Não é que estas coisas sejam desprovidas de importância. Não o são e devem ser escrutinadas. O problema é que, neste pobre país, o debate político se centra todo ele neste tipo de casos. Vive-se da excitação dos diversos coros de indignados que pululam por aí em apoio da suas seitas, servidos pelas câmaras de eco que são os órgãos de comunicação e as redes sociais. Não há um debate sério sobre o país e sobre os caminhos que devemos trilhar. E nisto descobre-se um amplo consenso entre o governo e a oposição, entre a esquerda e a direita.

Uma explicação para o fenómeno seria fazer notar a baixa preparação das diversas elites políticas que têm por missão disputar o poder e ganhar o direito a pastorear – extorquindo ali, distribuindo acolá – o rebanho da paróquia. É uma explicação plausível, mas haverá uma outra que, sem anular esta, permite esclarecer mais e melhor o facto. Trata-se pura e simplesmente de não haver nada de verdadeiramente sério para discutir. A liberdade de acção dos agentes políticos portugueses é tão diminuta que, na verdade, quase nada os separa. Resta-lhes os casos e o exercício fútil da indignação perante os pecados do outro lado, como forma de chegar ao poder ou de o manter.

Este tipo de exercício político, contudo, não pode ser interpretado como uma espécie de resignação perante a ausência de liberdade para confrontar propostas diferenciadas sobre o país. Ele é também uma prática deliberada de ocultação da ausência de liberdade e de poder do país. Nem a direita nem a esquerda estão interessadas – verdadeira e efectivamente interessadas – em enfrentar essa ausência de liberdade e o défice de poder, pois nenhuma delas sabe o que fazer para reconquistar essa liberdade e, pior do que isso, não saberia o que fazer se tivesse essa liberdade de traçar autonomamente um caminho para o país.

Aplica-se ao caso aquilo que Kant disse em 1784 dos homens em geral: Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles. Um povo com quase 900 anos de história, tocado pela senilidade e pouco habituado à liberdade e à responsabilidade que lhe é inerente, entregou-se, temendo os perigos da maioridade, à tutela dos poderes europeus, que assim nos administram as contas e superintendem a vida e a morte. O baixo nível do debate político português, o exacerbar dos casos e os uivos de indignação são manobras de diversão para esconder a nossa menoridade, para ocultar o nosso amor a essa menoridade.

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