sábado, 30 de setembro de 2017

Micropoemas - Amor 3

Sam Lévin - Ava Gardner in The Naked Maja, 1958

3. Boca

A boca,
rosa e malva.

Embriagado,
a Estrela d’Alva.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Um teste à esquerda

Oskar Kokoschka - A Tempestade (1913)

Se a esquerda portuguesa julga que está a navegar num mar bonançoso, então o melhor é acordar e tentar perceber a realidade. As eleições alemãs correram-lhe muito mal. A hipotética, e bastante previsível, presença dos liberais no governo alemão pode vir a revelar-se um pesadelo para Portugal e para o governo que por cá esteja instalado no poder, seja ele qual for. Regras orçamentais mais drásticas e menor generosidade do Banco Central Europeu – tudo imposto pela Alemanha – podem dar origem a novas tempestades e tornarem-se uma oportunidade, inesperada, para fazer ruir a concertação à esquerda.

Outro perigo para a esquerda portuguesa vem das eleições autárquicas de domingo. O problema não está no facto de o PS poder conquistar câmaras ao PCP, embora isso não seja saudável para a coligação parlamentar. O que melhor poderia acontecer à esquerda seria uma vitória autárquica do PSD ou, pelo menos, um resultado não humilhante para a direcção de Passos Coelho. Ora, com o que se prevê, Passos Coelho – que se tornou uma espécie de seguro de vida da esquerda – tem os dias contados à frente do partido. Rui Rio, o provável sucessor, apresentar-se-á limpo das tropelias do tempo da troika, sem ressentimento que lhe turve o raciocínio e com uma aura de competente na conquista do poder e na gestão da coisa pública. Se vierem novos e mais tempestuosos ventos da Alemanha, a esquerda, perante um Rui Rio imaculado e uma Assunção Cristas triunfante, terá um enorme problema à sua espera.

Um problema e um teste. O teste passará pela resiliência do BE e, fundamentalmente, do PCP. Perante uma situação que exigirá um grande rigor orçamental, onde pode não haver espaço sequer para as actuais pequenas reposições e outro emblemas da esquerda, como se irão comportar os partidos à esquerda do PS? Falará mais alto o seu ADN ideológico ou terá essa esquerda a capacidade de encarar a realidade do país e de sacrificar as suas posições em nome da comunidade e dos interesses reais, e não ideológicos, dos seus eleitores? Mesmo uma situação negra como a desenhada não implicará, todavia, a saída da esquerda do poder. Essa saída dependerá dela, do talento dos seus dirigentes e, já agora, do grau de responsabilidade perante o destino dos seus eleitores. O retorno da direita ao poder não será uma brincadeira para uma parte significativa das pessoas. Pode estar a chegar o tempo da verdade.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Ensaios sobre a luz (7)

Helmut Newton, Ballerina, not dated

Um lago de luz inclina o corpo e o cisne espera na água da Primavera a chegada do solstício de Verão.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Europa, um novo espectro


De um momento para o outro, em política, tudo muda. O que parecia verdade ontem, deixou de o ser hoje. Isto não se deve a uma hipotética falta de carácter dos políticos. Deve-se à natureza móvel e incerta da realidade em que vivemos. Até há dias tudo apontava para que a ameaça à União Europeia estivesse contida. Ora as eleições alemãs vieram alterar radicalmente o panorama. Não nos enganemos nas causas dessa alteração. O problema não vem da entrada da extrema-direita no parlamento. É uma coisa lamentável, por certo. É um sinal dos tempos, também, mas não é o problema. O problema reside no facto de a senhora Merkel precisar de se aliar aos Liberais, além dos Verdes, para formar governo.

O objectivo dos Liberais - e receberam os votos para isso - é de intensificar uma política punitiva dos países do Sul da Europa, o controlo draconiano das fianças públicas e dos défices. Os países do Sul foram os grandes derrotados das eleições alemãs, como salientava Rui Tavares, no Público, numa eufemística declaração de que as eleições alemãs correram mal à Europa e, em particular, ao sul da Europa. Elas não apenas correram mal, elas podem ser o princípio de um novo martírio. Portugal, por exemplo, contava com a manutenção da situação alemã para que a canga da dívida pudesse ser tratada de uma outra maneira. Isso acabou se os Liberais tomarem conta das Finanças alemãs como pretendem. Por outro lado, os Liberais opõem-se a tudo o que preconiza Macron. A Europa, sem dar por isso, passou de um momento de acalmia para outro em que se desenha uma nova tempestade tropical, ali mesmo onde não há trópicos. A situação é muito mais negra do que parece. Um novo espectro assombra a pobre União.

terça-feira, 26 de setembro de 2017

O que me ocorre dizer


Consta que vai haver eleições autárquicas no próximo domingo. Eu gostava muito de dizer alguma coisa sobre o assunto, mas, confesso, não me ocorre nada de relevante. Eu sei que são importantes, muito importantes. É o poder de proximidade. Eis uma coisa que me aborrece, o poder de proximidade. Quanto mais próximo está o poder menos suportável ele é. Não pense o leitor que eu tenho alguma coisa contra os candidatos. Não, eu conheço muitos, de todas as cores e acho-os, em geral, excelentes pessoas. E a bondade está bem repartida pelas direitas e pelas esquerdas. Portanto, eu não tenho nada contra os candidatos, mas quanto mais longe estiver o poder melhor. Nunca compreendi por que razão os tipos do Porto e de outros lados deste pobre país se queixam do Terreiro do Paço. A princípio pensei que eles achassem que o poder estava muito perto e que o melhor seria mandá-lo para as Selvagens, mas não. Querem o poder ao pé de casa. Pior do que isso só morar em frente da sogra.

Como se viu acima, o espaço do poder aborrece-me. Mas não é só o espaço. Também é o tempo. Por exemplo, a duração de um mandato de um Edil - acho que é assim que se intitulam a si próprios alguns presidentes, mas posso estar enganado - é ao mesmo tempo muito curto e muito grande. Não, não estou dado aos paradoxos. Explico a minha tese. Poderia ser, por exemplo, de seis ou sete anos. Teria uma boa duração. Acabado esse mandato, o Presidente voltava à sua condição de cidadão e nunca mais se poderia candidatar. E isso evitaria mandatos de 12 anos e retorno por uma nova eternidade, depois de um curto interregno. Seria tudo mais saudável, a presidência de uma câmara passaria a ser vista apenas como um momento de sacrifício em favor da comunidade e não como uma carreira ou o que quer que seja. Se a isso juntássemos medidas draconianas de frugalidade, estaríamos perto de um mundo perfeito. Aquele tempo apenas e nada de grandes carros, chefes de gabinete, secretárias, motoristas, etc., etc. Tudo o que fosse necessário sairia do pessoal da autarquia, o qual tem a obrigação de servir  com lealdade aqueles que o povo escolhe, sejam eles quem forem.

É por pensar assim sobre o poder autárquico que não me ocorre nada para dizer sobre estas eleições. Talvez no domingo descubra alguma coisa para dizer.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Micropoemas - Amor 2

Milton Greene - Marilyn Monroe with mandolin. Los Angeles, California, 1953

2. Olhos

Dos olhos,
a luz e o halo.

Das mãos,
o segredo que calo.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

domingo, 24 de setembro de 2017

Ensaios sobre a luz (6)

Heinz Held - Die Tiefe des Lebens, Köln, Germany, Date Unknown

Se o frio cai sobre a cidade, a luz hesita e desce em lentos e leves flocos de neve.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Agências de rating

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Há uma tendência – à esquerda do PS – para censurar continuamente as agências de rating e o papel que elas têm tido na dívida portuguesa. E como consequência dessa censura dizer-se que as avaliações delas não devem ser tidas em conta, o que interessa é a vida dos portugueses e não a opinião de agências de especuladores. Ora é aqui que devemos perceber a distinção entre o que a realidade é e aquilo que deveria ser.

Podemos questionar a moralidade ou não destas agências de rating. Ao olharmos para a sua história e para muitas das suas decisões, ficamos convencidos de que o mundo seria, na verdade, um sítio melhor se elas não existissem. Desconfiamos também que as suas decisões arbitrárias prejudicaram o país e os portugueses. Em resumo, do ponto de vista moral não é errado, antes pelo contrário, censurar as agências de rating e o seu papel.

Se isso não é errado, será correcto dizer que Portugal e os portugueses não devem prestar atenção aos juízos dessas agências? A resposta a esta pergunta é composta por duas outras perguntas. Portugal poderá sobreviver com avaliações muito negativas dessas agências? Os portugueses e as empresas nacionais poderiam viver melhor sem uma avaliação positiva da nossa dívida por parte dessas agências? A resposta a estas duas perguntas é uma só: não. Nem o país, nem os portugueses, nem as empresas portuguesas têm independência suficiente para serem indiferentes ao juízo desses agências.

Do ponto de vista político, a moralidade ou a imoralidade das agências de rating é um problema inútil. Não temos capacidade nem autonomia para viver sem esse juízo. Ele é-nos imposto tal como os fenómenos naturais. Por muito que protestemos, os dias de calor são dias de calor e os dias de frio são dias de frio. Quando se diz que o facto da agência Standard & Poor’s ter tirado a dívida portuguesa da categoria de lixo (uma metáfora que quer dizer mau investimento) não é muito importante e que Portugal não pode depender dessas agências para tomar decisões, está-se a mentir deliberadamente e a vender uma ilusão.

Não temos poder para manipular o clima, para evitar os dias de calor ou os dias de frio, mas podemos protegermo-nos do calor e do frio. Também não temos poder para nos libertar das agências de rating, mas podemos protegermo-nos delas. Como? Controlando o défice público (e o privado), não gastando mais do que é possível, gerindo com rigor a fazenda pública e pagando a dívida para nos irmos libertando dela. Não há outro caminho para nos protegermos da falta de moral das agências de rating. E é isso que todos devemos exigir que aconteça e não semear a ilusão de que não dependemos delas.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Uma comédia de enganos

Georges Malkine - Aniska (1955)

O Observador é um manancial ilimitado de actos falhados ou de dissonâncias cognitivas. Veja-se, por exemplo, o artigo do psiquiatra Pedro Afonso sobre a iniciativa legislativa do Bloco de Esquerda, mas também do governo (este mais moderado), sobre a possibilidade de permitir a mudança de sexo aos 16 anos. Quando se desloca o assunto da área política para a psiquiatria - eventualmente, para a ciência - falha-se de imediato a compreensão do que está em causa. Diz o articulista: Esta teoria (a ideologia de género) assenta na ideia radical de que os sexos masculinos e femininos não passam de uma construção mental, cabendo à pessoa escolher a sua própria identidade de género. 

O que o pensamento conservador não compreende é que este tipo de posição deriva directamente do projecto que marca o Ocidente desde o Renascimento. É um projecto que começa por colocar o Homem no lugar de Deus e que evolui para a consideração desse Homem na sua singularidade e no poder da sua livre iniciativa. Tudo o que era visto como um dado de facto, o resultado da criação divina, passou a ser objecto sistemático de reforma e reconstrução por parte do Homem ou dos homens através da iniciativa dos indivíduos. As relações sociais deixaram de ser percebidas como imutáveis, mas objecto de continua reconstrução humana. A natureza é, desde há muito, uma construção, nem sempre domesticada, segundo projectos humanos. 

É nesta lógica que se inscreve a reconstrução da identidade de género. O problema não tem nada a ver com a psiquiatria mas com o direito absoluto de cada um dispor da sua própria pessoa, desde que isso não interfira com terceiros. A ideologia que sustenta estas pretensões é o liberalismo e não outra. O Bloco de Esquerda, com a sua agenda ligada aos costumes, inscreve-se nessa tradição liberal, tendo sido em Portugal um destacado agente da liberalização da sociedade, de cumprimento do projecto da modernidade e do Iluminismo. A fluidificação da identidade sexual, para usar uma metáfora de Zygmunt Bauman, está de acordo com a natureza fluida do capitalismo actual.  No fundo, o BE não faz mais do que pôr em prática o slogan de Milton Friedman: Liberdade para escolher. O mais curioso de tudo isto é que os nossos hiper-liberais temem os efeitos da autonomia dos indivíduos e os nossos iliberais tornam-se agentes contumazes da liberalização. Uma comédia de enganos.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Alma Pátria - 35: Eduardo Nascimento - O Vento Mudou



Há uma coisa que é verdade na ideologia do Estado Novo, a natureza multirracial do Portugal de então. Uma prova? A vitória, em 1967, de Eduardo Nascimento, angolano, no Festival RTP da canção e, consequentemente, a sua eleição para representar Portugal no Festival da Eurovisão. Uma aproximação cançonetista (seria melhor dizer, uma terminação, como na lotaria) do Eusébio do futebol. A guerra em Angola, que, se exceptuarmos o incidente indiano, deu o tiro de partida para as guerras coloniais dos anos sessenta e setenta do século passado, tinha começado há cerca de seis anos e faltavam ainda sete para terminar. Curiosamente, Eduardo Nascimento é o autor do hino do MPLA. Apesar dos ventos de mudança que a cançoneta apregoa, ainda faltava muito para que o vento mudasse definitivamente. Este vento apenas falava de delíquios do coração. E se havia coisa que o regime puritano e assexuado do professor Salazar gostava era de delíquios de coração. Enquanto o coração treme, rebola e rodopia, a razão descansa.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Micropoemas - Amor 1

Edward Weston - New York Interior, 1941

1. A noite

A noite,
relâmpago breve.

Saber o fruto,
os gestos e o sono leve.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Ensaios sobre a luz (5)

Toni Schneiders - Train in landscape. 1950s

Na clareira aberta pela luz, cai, de súbito, o veloz vapor da escuridão.

domingo, 17 de setembro de 2017

Um instante

Robert Doisneau - Sondersdorf, Alsace, France, 1945

Com a excepção da estrada alcatroada, a denunciar a existência de automóveis, e das três raparigas com equipamento escolar, nada na fotografia de Doisneau nos indica que estejamos no século XX. É verdade que 1945 faz parte de uma época muito conturbada, na qual o engenho dos homens estava mais dirigido para a destruição do que para a comodidade de vida. Não é isso, porém, que chama a atenção do olhar. O que é central é a fusão de épocas num mesmo instante. De costas para nós está o futuro que parece hesitante em pôr-se a caminho. Voltado para o espectador está o passado, tomado pela desolação. Olha em direcção ao futuro, que o vai submergir, mas também para nós, voyeures ocasionais. Talvez espere que, nos nossos corações, habite uma réstia de piedade e que o salvemos. Em vão.

sábado, 16 de setembro de 2017

A dissonância comunista


Apesar de esperada, não deixa de ser curiosa a reacção do PCP à elevação do rating da dívida pública portuguesa pela agência Standard & Poor’s. Segundo o Público, Paulo Sá, dirigente comunista, afirmou que Portugal não pode depender "dos humores ou dos estados de espírito das agências e, muito menos, estar dependente dessas agências e das suas dinâmicas especulativas". Por que razão esta afirmação é curiosa? Porque o PCP é um dos responsáveis – juntamente com o PS e o BE – da actual política que tem recebido um forte apoio e reconhecimento das instâncias políticas e financeiras internacionais. O PCP, se quisesse, poderia deitar tudo a perder. Bastaria mobilizar em força o aparelho da sindical e cortar com os socialistas, afundando o governo. Por que não o faz, já que a política de António Costa depende efectivamente “dos humores ou dos estados de espírito das agências” e “das suas dinâmicas especulativas”? Por que razão não atendeu até aqui à imploração veemente da direita para que o faça?

Não o faz porque o PCP não é nem irresponsável nem aventureiro. Por detrás da sua retórica anticapitalista, os dirigentes do PCP sabem muito bem que o país depende das agências de rating, do FMI, do Banco Europeu, dos humores da União Europeia e do estado de espírito, embora não seja muito dada a isso, da senhora Merkel. Os dirigentes comunistas sabem perfeitamente que se se aplicasse aquilo que eles dizem defender (saída do Euro e da União), o país se afundaria numa triste Venezuela e nem os seus fiéis eleitores lhe perdoariam. Também sabem que fora da economia de mercado – isto é, do capitalismo – não há nada para onde o país possa ser conduzido. Porque sabem tudo isso têm colaborado na adequação do país às exigências do capitalismo, têm contribuído, inclusive, para amenizar essas exigências, tornando-as mais digeríveis pela população.

Por que razão há esta dissonância entre a prática dos comunistas e o seu discurso? A explicação mais plausível é a de que têm medo que o seu eleitorado tradicional se indisponha com o colaboracionismo do partido com o capitalismo e os velhos rivais do PS, sempre apostrofados como aliados da direita e apóstolos das políticas capitalistas. Contudo, isto é ter pouca consideração pelo seu próprio eleitorado. A generalidade dos eleitores comunistas é inteligente e percebe muito bem a situação em que vivemos. Sabe que não existem amanhãs que cantam, nem que sair da União Europeia seja uma coisa boa para o país. Sabem inclusive, embora não gostem (quem gosta?), que dependemos dessas agências e dessas instituições. As pessoas que votam comunista irão continuar a fazê-lo, apesar deste acordo com os socialistas e das políticas reconhecidos pelas instâncias do capitalismo global. Mais, julgo que a maioria dos eleitores comunistas deverá preferir que o seu partido influencie a governação – e, provavelmente, que governe – do que seja uma organização de mero protesto. E preferem isso não para os levar para o socialismo, mas para uma sociedade capitalista, que tenha uma maior justiça e seja socialmente mais equilibrada. Já era tempo do PCP se deixar destas rábulas e assumir o que está a fazer. O país agradecia.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

A revolta

Jing Huang - Pure Sight

O que me prendeu nesta fotografia de Jing Huang não foi a paisagem ou a referência à visão pura, mas a aparência estática dos dois homens que nela aparecem. É um acto de profunda revolta. Revolta contra o movimento, contra o tempo, contra a vida. Uma revolta contra o ser e a ordem da criação. Perante a impossibilidade da vitória sobre a morte, resta a imobilidade de um protesto mudo.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Micropoemas - Pequenas dádivas 9

Salvador Dali - Nacimiento del Nuevo Mundo (1942)

9. Terra e mar

Terra e mar,
o mundo em gestação.

E tudo se perde no incêndio do Verão.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Saber calar

Alejandro Mesonero - Y sin embargo silencio

Uma das competências fundamentais da vida política democrática é a gestão da palavra. A democracia é o regime onde a palavra é livre, onde tudo, ou quase tudo, pode ser dito. Isto, porém, é uma aparência. Os detentores do poder, por exemplo, possuem uma esfera de liberdade de expressão muito menor do que pensam. Passos Coelho sentiu na pele essa limitação. O que dizia, logo se voltava contra ele. Essa limitação da liberdade de expressão não se faz por intermédio da censura, mas através do preço político que aquilo que é dito arrasta consigo. Tudo o que em política se faz ou diz tem um preço político. O escrutínio dos media e das oposições é implacável.

António Costa e a esquerda estão a começar a perceber isso. As palavras de congratulação pela redução do défice, pela saída do país do procedimento por défice excessivo, o anúncio do fim da austeridade - palavras mobilizadas com o entusiasmo de uma vitória - estão agora a cair em cima do governo, como no caso da greve dos enfermeiros e no que se prepara para os próximos tempos. A esquerda está a começar a sofrer na pele aquilo que fez ao anterior governo. Se pensou que ia ser poupada a isso, já é tempo de se desenganar. E nisto há já derrotas claras. Na greve dos enfermeiros não é só o governo que está em perda. O PCP é um dos grandes derrotados, ao ser mostrado ao país que não tem qualquer controlo na classe dos enfermeiros.

Para ganhar eleições basta ser esperto e ter algum traquejo na manobra política. Domesticar a própria palavra, ter a percepção clara do que se pode dizer e daquilo que sendo dito pode vir cair em cima da própria cabeça, isso exige uma sabedoria e uma profundidade de pensamento que nenhum político no activo parece ter. Essa falta de maturidade existencial, digamos assim, torna-os impotentes perante a voracidade da comunicação social. Sem dar por isso, estão metidos num sarilho político motivado pela repercussão do que dizem. Muitas vezes pensam que contratar uma agência de comunicação resolver o problema. Não resolve, pois o problema não está na comunicação mas na necessidade de silêncio, de ter a maturidade suficiente para saber calar-se nos momentos mais eufóricos, para evitar que as palavras atiradas contra os adversários - e em política todas as palavras são atiradas contra os adversários - sofram o efeito de boomerang e atinjam quem as profere.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

O governo que se prepare

Alfonso Parra Domínguez - Realidad Dialéctica (1977)

António Costa está a descobrir os limites da experiência governativa. Se alguma vez pensou que um acordo com o PCP o livrava de problemas na distribuição dos dinheiros do Estado, agora já sabe que isso não é assim. A greve do enfermeiros é apenas um sinal do que pode vir aí. É uma ilusão julgar que o poder sindical está concentrado nas mãos do PCP. O PSD, por exemplo, tem capacidade de mobilizar certos grupos cuja acção é muito mais poderosa e desarticuladora da governação do que o PCP. E o PSD, sempre que esteve na oposição, nunca hesitou em ser mais esquerdista e radical que os esquerdistas e radicais de esquerda. As reivindicações sindicais sobre o Estado, induzidas pela direita, só vão parar quando o governo cair. O Estado vai ser o grande palco de luta pelo poder. O governo que se prepare. 

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

domingo, 10 de setembro de 2017

Um absurdo

Odilon Redon - A loucura (1883)

Hoje é o dia em que pais e alunos festejam a entrada nos cursos do ensino superior. É natural. Contudo, este momento de alegria - e, por vezes, de insuportável exibição por parte de pais pouco dados à contenção - não nos deve ofuscar a loucura que está presente nestas admissões ao ensino superior público, e é só a este que me refiro. A coisa diz-se em poucas palavras. Muitos destes alunos, mesmo que terminem os seus cursos, nunca trabalharão nas áreas que escolheram. Eu conheço o argumentário dos defensores deste devaneio. As pessoas têm o direito de escolher os cursos que bem entenderem, a formação inicial, seja ela qual for, é um bom começo para qualquer que seja a profissão que irá estar disponível. Mas também conheço muitos alunos que entraram nas universidades, fizeram cursos e acabaram em empregos indiferenciados e se arrastam na vida muito longe das áreas para que fizeram formação. Para se ter uma ligeira percepção da dimensão da loucura que tudo isto representa atente-se à tabela abaixo.


Escolhi onze áreas universitárias - poderia ter escolhido muitas mais, algumas tão ou mais problemáticas do que as escolhidas - para dar a ver como tudo isto é absurdo. Vejam-se os alunos colocados na 1.ª fase - destes cursos não há vagas para a 2.ª fase - em áreas como Sociologia, Filosofia, Psicologia, Antropologia, História, História da Arte, Arqueologia, Relações Internacionais, Ciência Política, Ciências da Educação e Ciências da Comunicação. Imaginemos que metade destes alunos conclui os cursos. Multipliquemos isso por 10 anos. Os números de licenciados nessas áreas tornam-se extravagantes. Ninguém me vai convencer que o país precisa de tanta gente com formação nestas áreas e noutras com o mesmo grau de saída. 

O país precisará de abrir 166 vagas para arqueólogos, ou 825 para psicólogos ou 449 para sociólogos? Por muito que se diga o contrário, tudo isto é um crime. Um crime contra os alunos e as famílias que vão ao engano. Um crime contra o erário público. Estamos a investir em formações que não têm saída, nem sequer na emigração. Isto já foi pior, mas o absurdo continua e como a escolha dos alunos não desaparece (o azar de não encontrar colocação pós licenciatura vem longe e só acontece aos outros e aos filhos dos outros), os cursos subsistem. O Estado demitiu-se, há muito, de racionalizar os recursos educativos. Como explicar a existência de 12 cursos públicos de Psicologia, 10 de Sociologia, 7 de História, para além dos 4 de História de Arte e 5 de Arqueologia? Para mim é um enigma a existência de 5 cursos de Filosofia - já foram mais - ou 6 de Ciências da Comunicação. É evidente que as Universidades não têm qualquer interesse nessa racionalização e, em última análise, é-lhes indiferente o destino daqueles que as frequentam. Um absurdo que ajuda a explicar por que razão, mal se olha para o lado, as contas públicas estão fora dos carris.

sábado, 9 de setembro de 2017

Micropoemas - Pequenas dádivas 8

Michel Larionov - El desnudo azul (1903)

8. Corpo

Corpo,
lago imenso e forte.

Da mulher, o incêndio e a morte.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Alma Pátria - 34: Carlos Mendes - Verão



O Festival RTP da canção e o Festival da Eurovisão tinham um peso enorme no panorama da música ligeira, era assim que então se dizia. Eram acontecimentos que mobilizavam em torno dos ecrãs a generalidade das famílias portuguesas, das que tinham televisão (nesses tempos a democratização do acesso à televisão tinha ainda limitações). Verão, de Carlos Mendes, foi a canção vencedora do Festival RTP de 1968, um ano de intensa vida política por essa Europa fora, revoltas estudantis em França (que depois se atearam por Itália, Alemanha, EUA) Primavera de Praga, na antiga Checoslováquia. Por cá o ditador haveria de cair da cadeira. O imaginário português, presente nesta canção, é o do Verão, com as suas aventuras pequeno-burguesas e o tédio que se aproxima pelo fim da estação estival. Havia toda uma mitologia em torno do Verão, uma mitologia própria de um país que ainda não tinha descoberto as praias inundadas de gente e o turismo de massas. É dessa mitologia, que tem no romance Sinais de Fogo, de Jorge Sena, a sua legitimação, que esta cantigueta extrai a sua existência.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

As eleições em Loures

A minha crónica no Jornal Torrejano.

De todas as eleições municipais, a mais importante é a de Loures. Isso deve-se à mobilização por André Ventura (PSD) de temas que têm estado afastados da vida política nacional. As suas declarações sobre os ciganos geraram um enorme burburinho, repúdio por parte da generalidade do mainstream político, mas também apoio em certas franjas da direita que habita nas redes sociais. Passos Coelho, contrariamente a Assunção Cristas, recusou-se a retirar o apoio ao candidato, o que tem um óbvio significado político sobre a procura de uma agenda, por parte do PSD, que permita afirmar-se contra a esquerda. As eleições de Loures, onde a direita, nas últimas autárquicas, teve uma votação marginal, podem dizer-nos muito sobre a evolução do debate político nacional.

André Ventura, de forma estridente, possivelmente racista, ao focar os ciganos, e populista, coloca uma questão fundamental. Como controla o Estado o conjunto de prestações sociais que atribui? O problema da suspeita da existência de subsídios injustamente atribuídos – seja o chamado rendimento mínimo, ou o subsídio de desemprego, ou o de doença, etc. – não se restringe aos ciganos, havendo um rancor social larvar alimentado por uma persistente suspeita de injustiça. A única maneira de conter esse rancor é assegurar que as prestações sociais são justa e adequadamente atribuídas, com um controlo eficaz. Do ponto de vista popular, o ressentimento com estas situações é sentido de forma muito mais aguda do que a corrupção de alto nível e a grande subsidiação às elites. Uma sondagem mostra que 68% dos portugueses – tanto da esquerda como da direita – está de acordo com André Ventura. Isto é um aviso sobre o que pode vir aí, se o Estado e os agentes políticos se demitirem de encarar o problema de frente.

Se André Ventura tiver uma votação modesta, ainda que um pouco superior à obtida pelo PSD, nas últimas autárquicas, a coisa, por enquanto, morre por aí. Se obtiver uma votação espectacular em Loures, temos um problema enorme entre mãos. Num momento em que a esquerda centralizou em si a agenda social-democrata, será uma grande tentação para o PSD – um partido até aqui exemplar neste tipo de questões – deixar o seu discurso resvalar para o que há de pior. A esquerda, nomeadamente o PCP, se não está muito preocupada, deveria estar. Em França foi este tipo de discurso vindo da Frente Nacional que liquidou o PCF. Pior do que isso, Portugal corre o risco de trocar a discussão sobre o seu futuro pela algazarra populista à volta de uma agenda fundada no ressentimento e na inveja. 

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Geringonça, o véu lexical

Iago Pericot - Máquina (1963)

Deve-se a Paulo Portas o baptismo da actual solução governativa como geringonça. Com o verbo fácil que o caracteriza, confiando no brilho da sua inteligência, mas esquecendo que do outro lado não estavam propriamente idiotas, o ex-líder do CDS decidiu fazer uma pilhéria e, entre prognósticos de catástrofes terríveis, desvalorizar a solução dos adversários políticos que lhe tinham tomado o lugar. A graçola deve ter saído espontaneamente da boca, pois ela teve um efeito completamente contrário ao pretendido.

A direita ficou encantada com o achado e repetiu-o, e repete-o, vezes sem conta quando fala da coligação parlamentar que suporta a solução governativa. A esquerda reagiu à pilhéria com boa disposição e, em vez de fazer de virgem ofendida, nessa altura não faltavam no país virgens ofendidas, tomou aos ombros a designação, brincou com ela e fez-se à vida. Aliás, fê-lo de forma bastante inteligente. Teve a intuição de que o valor lexical da palavra e o valor de uso popular não eram os mesmos.

Lexicalmente, geringonça significa algo pouco sólido e que se desfaz facilmente. Era nisto que Paulo Portas pensava. No entanto, quando alguém diz que uma coisa é uma geringonça retira-lhe de imediato uma tonalidade ameaçadora, capaz de destruir este mundo e o outro. No uso popular da expressão, está presente a pouca solidez, mas, fundamentalmente, uma certa leveza e ausência de ameaça. É algo com que se brinca e que não se teme. Ora o grande risco que António Costa correu foi o do temor que poderia haver em levar o BE e o PCP para a área da governação. A esquerda, ao aceitar a pilhéria de Portas, resolveu o problema. A direita ainda tentou fazer uma fronda contra a solução governativa, mas ficou a falar sozinha. Quem podia ter medo de uma geringonça?

É um mistério a direita continuar a usar o termo para designar a actual solução governativa. Primeiro, porque continua a oferecer uma imagem de leveza à esquerda e a retirar-lhe aquilo que supostamente teria de ameaçador. Depois, porque, passados dois anos, toda a gente percebeu que a solução é sólida e construída com engenho pelos diversos protagonistas. Há ali um grande trabalho de engenharia política, que permitiu não só que o PS reocupasse o centro político, como o BE e o PCP entrassem nesse espaço de moderação, expulsando de lá o PSD. Cada vez que Passos Coelho e os actores e comentadores políticos de direita falam em geringonça estão a reforçar aquilo que querem combater. A geringonça funciona para a direita como um véu lexical que não a deixa ver a realidade.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Micropoemas - Pequenas dádivas 7

Mario Avati - Night and Day (1984)

7. Dia

Do dia,
a mais pura aurora.

E na noite, mão desejo fora.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

domingo, 3 de setembro de 2017

Descrições fenomenológicas 29. Algumas mulheres 2

Pierre Bonnard - Standing Nude (c. 1922-30)

Lentamente, fez saltar um a um os botões do roupão e, com um esgar de desprezo, deixou-o cair. Estava completamente nua. Olhou-se ao espelho. O cabelo apanhado fê-la erguer a mão e passar por ele, como se quisesse certificar-se de que estava no seu lugar. Dois dedos desceram as pálpebras inferiores e ela espreitou para dentro dos olhos. Tudo estava em ordem. Confrontou-se, então, com o corpo. Os seios, nem pequenos nem grandes, o ventre liso, as pernas. Não havia emoção na contemplação de si mesma. Ficou assim por algum tempo, talvez dois ou três minutos. Hirta. Na face, não se descortinava desdém ou reprovação. Ela constatava, apenas. Talvez registasse a sua imagem para memória futura. A luz amarelava o quarto, tocava-lhe a pele e ficava suspensa como uma recordação que, prestes a chegar à consciência, insiste em não transpor o limiar, uma promessa que recusa cumprir-se. Virou-se então de lado. À sua frente, abria-se a porta do quarto. Ergueu os braços e depois deixou-os cair ao longo do corpo. Estava em sentido. Olhou para lá da porta e, de imediato, fechou os olhos. Flectiu as pernas e apoiou as mãos no chão. Observou o espaço em frente e experimentou a flexibilidade dos membros, de todos eles. Assim, ensaiou os primeiros passos. Chegada à porta tentou rosnar. Em vão. Fez novas tentativas, até que da sua boca saiu um som que fez lembrar o rosnido de um cão. Sorriu. Há muito que não sorria. Saiu do quarto e caminhou, a quatro, pela casa. Ouviu-se a porta de entrada a abrir e depois a bater. Passados instantes, ecoou, vindo da rua, um uivo prolongado, tão prolongado como se uma dor sem fim se tivesse abatido sobre o mundo.

sábado, 2 de setembro de 2017

O lugar da vingança

A minha crónica em A Barca.

Por influência do Iluminismo e de pensadores como Hegel e Marx – ecoando ainda a perspectiva cristã – a História, nos últimos dois séculos, gozou de uma fama que está longe de ser justificada. Ela seria o caminho que nos conduziria, progressivamente, à boa sociedade, a um mundo de paz perpétua, de entendimento entre os homens e de harmonia com a natureza. Esta consideração optimista sobre o devir da humanidade, porém, está longe de se adequar, por pouco que seja, à realidade. Na verdade, a História é o lugar da violência, mas de uma violência que, contrariamente ao que pensava Marx, não conduz a lado nenhum a não ser a mais violência. E não conduz a lado nenhum porque, no cerne da História, nós encontramos a memória.

Dois exemplos recentes. O atentado de Barcelona. Ele faz parte não apenas de um conflito contemporâneo, mas de uma longa história de violências, de conquistas, de reconquistas, de colonizações e de crueldades. Há, por exemplo, grupos islâmicos a reivindicar a Península Ibérica como território do Islão. A cada instante se acusa o cristianismo pelas Cruzadas, embora se esqueça que o Norte de África cristão foi, muito antes das Cruzadas, convertido ao Islão pelo argumento da violência. Há a tragédia da colonização. Por muito que queiramos rasurar a memória, ela volta. Um segundo exemplo está ligado aos acontecimentos dos EUA, às marchas da extrema-direita e ao derrube de estátuas erguidas pelos confederados derrotados na Guerra Civil americana. Supremacistas brancos e anti-esclavagistas continuam em guerra pelas suas memórias. Nada está esquecido. Por vezes, adormece, mas, logo que há oportunidade, a memória da história americana volta com a sua carga de violência.

Ver na História o caminho para a paz perpétua e para a boa sociedade foi, aliás, uma estranha estratégia da própria memória violenta, para que, em nome da paz, a violência se expandisse. O que é razoável esperar é que, de um momento para o outro, sejamos envolvidos num conflito. O que é razoável desejar é que os períodos pacíficos sejam, tanto quanto possível, longos. Para isso é necessário não ter quaisquer ilusões sobre a bondade da História. A vitória de uns é sempre o ressentimento de outros, numa escalada sem fim. Conflitos que parecem dirimidos e resolvidos podem ser reactivados de um momento para o outro, muitas vezes sem que se perceba bem porquê. A História não é mais do que o balançar entre a glória e o ressentimento. Nela, nessa História tão incensada, nada se esquece, nada se perdoa, tudo espera a hora da vingança.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

O drama da igualdade de género

Pablo Picasso - El diván (1899)

Tinha pensado em não escrever sobre o drama, pois na verdade é um drama assente na dissonância cognitiva, que envolve dois blocos de exercícios da Porto Editora, um dirigido às meninas e outro aos meninos da Educação Pré-escolar. No cerne do drama está uma recomendação da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG). Recomendação essa que induziu a editora a retirar do mercado os dois blocos de exercícios. Isso tem gerado um sem número de protestos, mais ou menos ingénuos, nas redes sociais e artigos – provenientes da ala conservadora da sociedade portuguesa – que denunciam a profunda ditadura e o estado de guerra em que vivemos, ao mesmo tempo que profetizam o fim da civilização (veja-se, a mero título de exemplo, embora não refira directamente o incidente, o texto delirante, mas por isso mesmo representativo, de Maria João Avillez no Observador.)

Vale a pena olhar para a recomendação da CIG (consultar aqui). Desta, convém dar atenção ao seu núcleo de pressupostos, o qual é constituído por três conceitos: conceito de sexo (a dimensão biológica determinada pelos genitais), o conceito de género (a dimensão cultural de construção de significados sociais em função da pertença a um determinado sexo) e o conceito de estereótipos de género. Este, tendo em conta a distinção entre sexo e género, é o elemento central que vai conduzir à célebre recomendação, a qual decorre logicamente desse conceito. Vale a pena transcrever a sua definição:

os estereótipos constituem conjuntos bem organizados de crenças acerca das características das pessoas que pertencem a um grupo particular. Os estereótipos de género (mais do que qualquer outro tipo de estereótipos) apresentam um forte poder normativo, na medida em que (…) consubstanciam uma visão prescritiva, dos comportamentos (papéis de género) que ambos os sexos deverão exibir.

A primeira questão que se coloca é sobre a possibilidade de qualquer sociedade funcionar sem estereótipos. A segunda questão relaciona-se com o conflito em torno dos estereótipos de género e o lugar de onde brota esse conflito.

Os estereótipos, enquanto conjuntos bem organizados de crenças, são centrais para a vida em sociedade. Agilizam as práticas sociais, fluidificam-nas ao fornecer, pronto a usar, um conjunto de significações que as estruturam, evitando a perda de tempo de uma definição contínua dos papéis e das interacções entre estes. Sem eles, incluindo os estereótipos de género, uma sociedade torna-se disfuncional.

É evidente que a partir do Iluminismo o estereótipo adquiriu má fama sob a designação de preconceito. Na verdade, os estereótipos são preconceitos, isto é, crenças que não passaram pelo crivo da razão. E, como dizia o projecto iluminista do XVIII, tudo deve passar pelo crivo da razão. O problema é que nenhuma sociedade sobrevive se submeter a cada instante o conjunto das suas crenças a esse crivo para determinar a sua razoabilidade. Poderíamos dizer que as sociedades, mesmo as modernas, vivem de uma conjugação difusa entre crenças criticadas e crenças estereotipadas ou preconceitos.

Assim, o estereótipo – ou o preconceito – não é apenas a ganga perversa da dominação. É também uma forma económica que as sociedades utilizam para sobreviver e para prosperar. Isto não significa, contudo, que os estereótipos – ou preconceitos – se devam manter intocados. Pelo contrário. Essa intocabilidade é uma ilusão proveniente das sociedades tradicionais, onde a mudança é muito lenta. Nas sociedades modernas, pelo contrário, a crítica e destruição de estereótipos é uma necessidade central da modernização e a modernização nunca está concluída. É sempre um projecto em aberto. Isto significa que há, nas nossas sociedades, uma necessidade contínua, impulsionada pelo mundo da economia de mercado, de criticar e destruir estereótipos. De substituir os desadequados por outros mais funcionais e adaptados às exigências dos mercados.

É no âmbito desta exigência das sociedades liberais que deve ser lida a malfadada recomendação da CIG. Ela não é um devaneio de esquerdistas prontos a destruir a civilização ocidental, mas uma exigência da própria civilização ocidental, desde que fez da modernização contínua da economia e da sociedade o motor da sua existência.

Assim, melhor do que perguntar se os estereótipos de género – agora atacados pela CIG, e os que se revêem na sua recomendação, e defendidos pela ala conservadora da sociedade – são bons ou maus, será tentar perceber por que razão estão a ser desafiados. Podemos, na sequência de posições como as de Maria João Avillez, que tem o mérito da candura inerente à falta de competência teórica, proclamar a existência de uma conspiração para derrubar a nossa civilização. Conspiração de quem? Evidentemente do marxismo cultural, da Escola de Frankfurt, do desconstrutivismo francês, das perversões biopolíticas de Foucault e descendentes, da esquerda radical, no caso português do Bloco de Esquerda, etc. Isto é para os conservadores-liberais muito confortável e poupa-os à dor de reconheceram a dissonância cognitiva em que vivem.

Se os estereótipos tradicionais estão a ser abalados e desafiados, certamente que o motor desse abalo não é, apesar das aparências, nem o mundo universitário nem tão pouco os grupos da chamada esquerda radical, os quais, com uma ou outra excepção, são de pequena dimensão. O grande motor dessas transformações é a economia liberal e as desregulações que ela traz consigo. Estas desregulações introduzidas pelo chamado neoliberalismo não são apenas desregulações do mercado de trabalho. São desregulações sociais globais e que têm impacto inclusive nos papéis que homens e mulheres desempenham na sociedade. Essas desregulações vêm exigir que homens e mulheres assumam papéis diferentes daqueles que a tradição lhes fornecia. Toda a retórica da CIG, com os seus conceitos de sexo, género e estereótipo de género, se inscreve na tradição liberal. A ideologia da recomendação feita pela CIG não é diferente daquela que os liberais usam para as relações económicas. É complementar e serve-lhe de suporte. A flexibilização dos papéis que lhe está inerente é uma exigência da economia liberal e não uma conspiração de mercenários a soldo sabe-se lá de quem.

E o pior da dissonância cognitiva da ala conservadora-liberal não está aqui. Quando vocifera contra certo mundo académico permeado pelo marxismo cultural, pelas teorias da escola de Frankfurt, pelo desconstrutivismo, pelas teorias de género, etc., etc., ou contra a esquerda radical (tipo BE, Podemos ou Syriza), está a negar que todos esses movimentos são emanações do próprio liberalismo e do mundo económico que os produziu com a finalidade de o defender e desenvolver. Muitas vezes – como está a acontecer na Grécia ou em Portugal, mas não só – esses movimentos culturais e políticos ditos radicais representam o mundo da economia liberal com muito mais eficácia do que os políticos conservadores, enrolados em escândalos e presos a fórmulas sociais já desadequadas às exigências desse tipo de economia.

Parece que toda esta gente que à direita vocifera ainda não percebeu uma coisa simples. A Queda do Muro de Berlim significa que deixou de haver dois sistemas alternativos. Apenas existe um sistema e que todas as partes – direita e esquerda – fazem parte dele e, por muito estranho que isso possa parecer, trabalham para o seu desenvolvimento e melhoria. Porquê? Pela simples questão de que não há um fora do sistema para onde conduzir as sociedades. Basta olhar para a conversão do Syriza – mesmo a retórica académica de Varoufakis não pretendia outra coisa que a melhoria do capitalismo – ou para a realidade portuguesa. Há muito que a esquerda dita radical percebeu que não há um fora do sistema. Ela, onde se incluiu o PCP, hoje em dia, faz parte do sistema liberal e opera para a sua melhoria, muitas vezes tendo o papel de destruir estereótipos e preconceitos que são adversos à sociedade liberal.

Se nós olharmos com atenção ao conceito de estereótipo de género, presente na recomendação da CIG, percebemos muito bem o que está em causa. O que ele, na verdade, nos diz é que os estereótipos de género existentes estão desadequados às exigências da economia de mercado e à sociedade liberal em que se pretende viver. Precisam de ser substituídos por outros, por certo mais fluidos, como o é a economia e como os grandes beneficiários do actual sistema económico pretendem que sejam os novos estereótipos.

Todos os inimigos imaginários dos nossos admiradores do liberalismo – do marxismo cultural ao radicalismo de esquerda, passando pelo feminismo e pelas múltiplas idiossincrasias estapafúrdias do mundo académico – são fruto dessa economia desregulada, que esses admiradores tanto cultuam. Gostariam de chuva no nabal e sol na eira para tranquilizar as suas consciências pecadoras. Se querem, porém, uma economia liberal, então têm de levar com toda esta parafernália ideológica que tanto os assusta, mas que está em relação profunda com o desenvolvimento do sistema económico liberalizado, que a exige, a fomenta e a faz florescer.

A flexibilização dos papéis socias de homens e mulheres (que assusta os nosso conservadores) é concomitante à flexibilização do mercado de trabalho (sempre tão desejada e incensada pelos mesmos conservadores) e decorre dela. Maria João Avillez e todos os que se revêem no seu texto, uns com mais fundamento teórico, outros com mais ingenuidade, têm razão. Há uma guerra (embora esta guerra seja já muito antiga e tenha começado pela destruição das aristocracias e das sociedades de castas ou de estamentos, que eram o fundo de onde ainda brotam certas concepções, agora atacadas, dos papéis dos homens e das mulheres), mas quem a está promover essa guerra são aqueles que, socialmente, estão próximos dela e dos liberais-conservadores lacrimejantes ou vociferantes que pululam por aí. O resto é dissonância cognitiva.