terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Carnaval e Quaresma

Pieter Brueghel el Viejo - La riña entre el Carnaval y la Cuaresma (1559)

Brueghel o Velho pintou em 1559, retratando o espírito daquele tempo, uma luta entre o Carnaval e a Quaresma. Nos dias de hoje, a Quaresma perdeu o lugar central que possuiu em tempo na ordenação da vida social do Ocidente. Tornou-se uma reminiscência histórica e cultural que deixou de tocar nas consciências dos indivíduos. Não se pense, todavia, que essa guerra entre o espírito do Carnaval e o espírito da Quaresma foi ganha pelo primeiro. Não foi. Veja-se o Carnaval em Portugal. Por maior publicidade que se faça aos corsos entretanto instituídos, tradições abrasileiradas fabricadas anteontem para alívio de câmaras municipais, o Carnaval português é sempre tão melancólico e tão sombrio que parece que o país já se transferiu, apesar da aparente folia, para o espírito da Sexta-Feira de Paixão. Uma melancolia sem fim.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Descrições fenomenológicas 21. Fumo e humidade

Antonio Tápies - Superposición de materia gris (1961)

Ao longe vêem-se as chaminés das fábricas. Deixam sair um fumo denso e escuro que se mistura com a humidade do dia. A amálgama cai sobre a pequena cidade como escamas que crescem nos olhos para os proteger do excesso de luz. Parou de chover, mas a rua ainda está molhada, deixando reverberar a pouca claridade que toca os paralelepípedos com que a estrada e os passeios são calcetados. Nem um carro se avista. Os prédios são cinzentos e pobres e lembram, no seu desconcerto, pessoas a quem o passar dos anos roubou, na pobreza que é a sua, os dentes. A maioria das casas tem apenas um piso térreo. Aqui e ali, porém, dois andares erguem-se sobre rés-do-chão raquíticos, macerados pela humidade, pela incúria que os tempos difíceis nunca deixam de trazer na sacola com que percorrem a vida dos homens. Na verdade, algumas das casas estão apenas rebocadas a cimento. Outras, nem isso. Mostram, num misto de vergonho e despudor, os tijolos. Em algumas janelas os vidros desapareceram e, no seu lugar, há tábuas já marcadas pela humidade. Vindas do lado norte, uma mãe e a sua filha, de mãos dadas, caminham flectidas, como se necessitassem de um esforço suplementar para vencerem um obstáculo invisível. Aproximam-se sem dizerem palavra, concentradas na luta contra o caminho. Vinda do lado contrário, uma mulher jovem, vestida com uma gabardina verde seco, transporta uma pasta de cabedal. Volta-se para trás e o rosto abre-se num grande sorriso. Não se avista destinatário para o sorriso. Vai no meio da estrada, aproximando-se de um dos prédios mais altos, de portadas de madeira abertas, deixando ver os vidros das janelas, ainda inteiros, e um vulto silencioso e sombrio. Ela não deixa de sorrir e de olhar para trás e quase tropeça no rebordo do passeio. Dá uma gargalhada, compõe a gabardina e entra por uma das portas que, misteriosamente, se abriu. No passeio do outro lado da rua, dois rapazes, talvez com cinco ou seis anos, estão especados a olhar. Singulares rapazes presos às suas boinas negras. Têm os olhos grandes e abertos, tão abertos que parecem querer absorver toda a luz que existe. No da esquerda, a boina descai e tapa a orelha direita, o que realça o rosto, onde a boca semiaberta não esconde a estupefacção. Tem um casaco grosso cinzento com quadrados cor de vinho abotoado até ao pescoço. O outro usa a boina para tapar o cimo da cabeça. Parece mais taciturno e menos dado ao devaneio do que o seu colega. De dentro do casaco nasce um longo cachecol. Está frio e ambos esperam de olhos abertos que alguma coisa chegue ali e os leve daquele mundo cinzento para um outro mais brilhante e luminoso. Por vezes, esboçam um sorriso. Depois, desistem e enfiam as mãos nos bolsos das calças. Por fim, sem dizerem palavra, sem se olhar sequer, desatam a correr rua fora. Desaparecem na esquina tragados pela humidade e pelo fumo que, impenitente e irascível, se solta das chaminés das fábricas hirtas e melancólicas como falos abandonados no desalento da solidão.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

O Rumor das Ruas - 5. No linho do lençol

Jean François Millet - Nu reclinado

5. No linho do lençol

No linho do lençol,
máculas de mágoa.
Estrelas abertas
na erva do corpo,
temor e trégua
onde temida
te ergues e deitas.

(O Rumor das Ruas, 1978)

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Camadas sedimentares

Mateo Vilagrasa - Libro III. Sedimentos (1993)

Ler os jornais, dar uma volta pelas redes sociais, ver e ouvir a informação. Tudo isso nos dá sempre a impressão de que cada coisa que acontece na vida social é de tal maneira importante que se estão a viver momentos que o tempo jamais apagará. Na verdade, tudo isto não resistirá à voragem dos dias. A maior parte dos acontecimentos que excitam as opiniões terão sido tragados dentro de semanas. O resto terá sido esquecido em breves meses. Estes acontecimentos que povoam os sonhos e os pesadelos da esfera pública dão materiais de tão má qualidade que a erosão os dissolverá rapidamente. Haverá, talvez no espaço de uma década, um ou outro evento que, apesar da erosão, restará como sedimento amalgamado numa camada que com o tempo será coberta e recoberta de outras camadas com outros sedimentos. Servirão essas camadas para quê? Servirão como chão que aqueles que virão muito depois de nós pisarão sem terem a menor ideia do que estão a pisar.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Silêncio

João Queiroz - Desenho a carvão

O silêncio é, por norma, compreendido negativamente. Abstenção da fala ou ausência de barulho. Este entendimento do silêncio legitima a obsessão pelo ruído. Toda a sociedade está construída para que os seres humanos não sejam confrontados com o silêncio. Não só os indivíduos não suportam estar perante a ausência de comunicação, de música ou do mero bulício, como a própria sociedade se estrutura para que eles não tenham que ser colocados em tal situação. A modernidade foi não apenas a emancipação do mito, essa explicação infantil do mundo, segundo os modernos. Foi também a emancipação do silêncio. O que haverá neste de tão ameaçador e insuportável?

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Irmãs da Terra


Notícias como esta (a descoberta de sete planetas idênticos à Terra, dos quais seis poderão ter condições para a existência de vida) deixam-me sempre dividido. A aventura da ciência e o engenho humano são sempre surpreendentes. Como surpreendente é este sistema planetário. Com tantas possibilidades de vida, oferece um panorama muito mais interessante do que o nosso. Imaginemos seis - ou mesmo três - planetas próximos uns dos outros, habitados por seres com uma racionalidade idêntica à nossa. A possibilidade de conflitos interplanetários, com interlúdios para campeonatos de futebol também interplanetários, tornaria a existência muito mais excitante. Por outro, pensar que aqui mesmo ao lado (40 anos-luz) poderão existir seis réplicas daquilo que se passa no nosso pobre planeta parece-me, tendo em conta a experiência terrestre, mais motivo para melancolia do que para grandes comemorações. Seis ou sete irmãs da Terra mais do que um sonho é um pesadelo.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Alma Pátria - 17: João Maria Tudella - Kanimambo



Um novo retrato de Portugal dos anos cinquenta e sessenta. João Maria Tudella nasce em Moçambique e é um cantor de síntese entre a cultura social vigente no Portugal metropolitano e a cultura dos portugueses presentes na então colónia portuguesa. Muitas das suas canções têm por tema Moçambique, as suas cidades e regiões. Kanimambo é o primeiro grande êxito do cantor, um êxito de 1959, mas que passou assiduamente na rádio durante muitos e muitos anos. O tempo, naquela época, passava mais lentamente e as coisas tinham a tendência para a demora. Parece que ainda não tinha sido descoberta a urgência. E sem esta, as coisas vinham para ficar. E algumas delas ficaram muito tempo. Seja como for, ouvir João Maria Tudella pode ajudar a compreender esse território estranho que é o passado. Ah, em 1959 ainda não tinham começado as guerras coloniais e tudo, apesar de um ou outro percalço, parecia dormir na paz do Senhor ou do senhor, o de Santa Comba.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O Rumor das Ruas - 4. A música da manhã

Caspar David Friedrich - Easter Mornig (1833)

4. A música da manhã

A música da manhã,
e tudo se abre
no cristal da claridade.
A dor do desejo,
a lava da melancolia,
o murmúrio da morte
inscrito nas folhas
ardentes das aspidistras.

(O Rumor das Ruas, 1978)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O mundo como enigma

Mark Tobey - World (1959)

Veio ter comigo outra ideia: o que é preciso investigar. 
O mundo como grande texto enigmático.
(Herberto Helder, Photomaton & Vox)


A ideia do mundo como um texto enigmático, referida por Herberto Helder, merece que se pense nela. O maior dos equívocos seria supor que um qualquer empreendimento científico nos poderia abrir o caminho para despedirmos o enigma em que o mundo, para nós, se constitui. Por muito que se esforce a ciência para elucidar o funcionamento das coisas, sejam os objectos naturais, as realidade humanas ou as relações sociais, o enigma mantém-se na sua integridade e na sua integralidade. O enigma do mundo não decresce pela descoberta da lei gravidade, das teorias da relatividade, da descodificação do ADN, da explicação das razões do comportamento humano. Um olhar atento pode mesmo afirmar o contrário. Quanto maior a luz que a ciência projecta sobre o mundo, mais enigmático este se torna. Se isto é assim com os textos científicos, ainda o é mais se considerarmos a opinião que se produz sobre os acontecimentos sociais e políticos. Este tipo de discurso - que também eu pratico - é radicalmente incapaz de deitar alguma luz sobre o que quer que seja. Fica pela superfície e nunca consegue sequer aflorar o enigma que se esconde numa acontecimento social ou numa conjuntura política. Nessas textualidades, falam os interesses e as paixões, mesmo que os textos se apresentem racionais. O enigma, porém, escapa-nos. Felizmente, pois devolve-nos à nossa realidade, também ela enigmática, de seres finitos e limitados. Resta a poesia, mas ela tem o condão de falar enigmaticamente sobre enigmas.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Entardecer de domingo

Edvard Munch - Evening on Karl Johan (1892)

Não há nada como o entardecer de domingo para que nasça, dentro de mim, aquilo que pomposamente se poderia chamar angústia metafísica. Os fins-de-semana são uma espécie de ilusão. Deixem, por breves instantes, entrever um possível paraíso na terra. Depois, chega o domingo e a tarde de domingo com a sua grande anunciação: a realidade não se compadece com paraísos na terra. E tudo o que é inútil e insensato estará aí à tua espera, mal toque o despertador.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Graças à geringonça


A minha crónica no Jornal Torrejano.

Os recentes elogios da Comissão Europeia ao desempenho de Portugal representam, por pouco que parte da esquerda goste ou não, uma vitória dessa mesma esquerda. De toda a esquerda portuguesa. Quando António Costa, perante os resultados eleitorais, decidiu formar governo com apoio parlamentar do BE, do PCP e do PEV toda a gente ainda está lembrada da tentativa de fronda lançada pela direita, fronda essa que estaria legitimada num conjunto de profecias que anunciavam que o novo governo não duraria seis meses, que o défice iria disparar e que o país estaria à beira do apocalipse. Apesar da situação continuar muito difícil – devido aos problemas da banca e da dívida – a verdade é que o país ganhou bastante com a actual solução política.

E ganhou – fundamentalmente, mas não só – no domínio político. Para perceber o que ganhámos é necessário pensar o que teria sido a outra solução possível. O que poderia acontecer se PSD e CDS tivessem formado governo com a cumplicidade – através da abstenção – do PS? Duas coisas seriam bastante verosímeis. Em primeiro lugar, uma muito maior instabilidade política derivada à falta de apoio da direita no parlamento, o que traria enormes problemas ao nível económico e financeiro. Em segundo lugar, cada vez que o PS se abstivesse para segurar o governo de direita, o BE e PCP – fundamentalmente, o BE – iriam buscar-lhe uma fatia do eleitorado. Os socialistas estavam em vias de serem trucidados, tal como aconteceu na Grécia e em Espanha. A solução de António Costa não lhe salvou apenas a ele a carreira política. Salvou o próprio PS e segurou a democracia portuguesa dentro da moderação e do equilíbrio.

Ganhou-se ainda mais. Os portugueses perceberam que tanto o BE como o PCP+PEV são parte da solução para o país e não representam qualquer ameaça para as instituições. Não existe esquerda radical no parlamento. Esta solução, cujo mérito deve ser distribuído por todos, tornou a democracia portuguesa mais sólida, porque lhe dá mais alternativas viáveis. Por outro lado, Portugal foi poupado a devaneios como os do Syriza na Grécia e impasses como os provocados pelo Podemos em Espanha. Poder-se-á dizer que tivemos sorte, pois as esquerdas tiveram o ensinamento prévio dos acontecimentos da Grécia e de Espanha. É verdade, mas as esquerdas também souberam ler esses acontecimentos e aprender com eles. Hoje somos um país mais moderado, mais sensato e equilibrado do que éramos no tempo do anterior governo e do que seríamos com um governo minoritário de direita. Graças à geringonça. Não é pouco.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Antropometrias

Yves Klein - Antropometrías (1960)

O princípio da gritaria: o homem é a medida de todas as coisas (Protágoras). Como cada um usa a medida que lhe interessa, o mundo é uma imensa cacofonia. É o problema das antropometrias.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O Rumor das Ruas - 3. Um fruto de sombra

Julia Hidalgo Quejo - Conversación galante (1999)

3. Um fruto de sombra

Um fruto de sombra
solta-se
e anoitece
se cai da tua
na minha boca.

(O Rumor das Ruas, 1978)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Centeno e a política


A situação de Mário Centeno - os ataques que a oposição lhe dirige devido à questão da alegada promessa feita aos ex-gestores da CGD sobre a isenção de entrega da declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional - torna evidente o que está em jogo na política. Se olharmos o desempenho do ministro parece claro que foi um óptimo desempenho, um dos melhores desempenhos no cargo desde há muito. Em política, porém, não é a qualidade do desempenho ou o interesse colectivo que está em jogo, mas pura e simplesmente o poder. O resto é instrumental, serve apenas para conquistar ou manter o poder,

Do ponto de vista das finanças, os últimos dias são um grande triunfo para Mário Centeno e, no entanto, ele encontra-se completamente fragilizado. A oposição, perante a completa derrota das suas previsões catastrofistas, pegou no que tinha à mão, o obscuro assunto da contratação de António Domingues e da sua equipa para a CGD, e, como é natural, não vai largar o assunto enquanto imaginar que isso desgasta o governo. Em tudo o que estamos a assistir só uma coisa está em jogo: a manutenção ou a conquista do poder. E sejamos claros: se fosse ao contrário, a esquerda faria exactamente a mesma coisa.

Para nós cidadãos, este tipo de atitude das oposições é mau? Não. É o papel da oposição e este papel é, na ânsia de chegar ao poder, o de limitar o poder de quem governa. Este papel lembra, a cada momento, que a governação deve obedecer à lei e que todos os seus actos estão sob escrutínio público. Por outro lado, este caso mostra que a política não é para ingénuos. Por norma, são trucidados por desconhecimento real das regras explícitas e, ainda mais importantes, das regras implícitas do jogo. É possível que Mário Centeno seja imolado no processo. Caso isso aconteça, o governo e o país perderão um bom ministro? Claro que sim. Para a oposição o facto de Mário Centeno ser um excelente ministro é uma razão para que ele seja derrubado. Parece imoral? Parece, mas o problema não está aí. A política não trata da moral, mas do poder. São essas as regras do jogo e o jogo não admite condescendências. 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Alma Pátria - 16: José Viana - Fado do Cacilheiro



José Viana não era propriamente falando um fadista. Foi um homem de teatro, de um teatro que terminou pouco depois de o regime salazarista se ter finado, o teatro de revista. Este fado é uma das imagens de marca desse teatro e o principal título de glória do artista. O teatro de revista, uma manifestação eminentemente lisboeta, era uma espécie de oposição tolerada ao regime, apesar da censura feroz que se abatia sobre os gracejos mais ou menos brejeiros que os números de revista continham. As piadas políticas, não passavam disso, eram indirectas, leves alusões que o público compreendia e das quais ria. Mas só rimos daquilo que toleramos e o regime sabia disso. Se permitia algumas gargalhadas sobre a sua idiossincrasia, era porque isso não o punha em causa, pelo contrário. Servia como escape das tensões ocultas que atravessavam a sociedade. Por muito que isto possa chocar as leituras do teatro de revista como forma de oposição ao salazarismo, a verdade é que ele se inseria no Zeitgeist e o reforçava. Apesar de múltiplas tentativas de reanimação, não resistiu à democracia e à modernização do país trazida pelo espírito europeu e pelo cosmopolitismo.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Adão e Eva

Yasuo Kuniyoshi - Adam and Eve (1922)

A invenção de um Adão e de uma Eva paradisíacos não serviu apenas para explicar e justificar a lastimável vida que cabe aos homens viver. Deu-nos também a ocasião para a má consciência, a imagem do que deveríamos ser e, por culpa própria, nunca somos.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Descrições fenomenológicas 20. Noite de luar

Leopoldo Novoa - Brun a deux reliefs (1970)

Uma sombra projecta-se na casa, talvez uma velha cabana de floresta, numa parede de madeira castanha, onde desponta uma janela de caixilhos brancos, de duas folhas, compostas por três rectângulos de vidro, que permitem, devido à ausência de cortinas ou de portadas, se alguém tiver curiosidade para tal, ver o interior. Presa ao tecto por um fio esbranquiçado e sujo, uma lâmpada, recoberta com um globo, solta uma luminosidade amarelada e triste, tingida de pétalas secas e saudades apaziguadas. Ilumina os vultos que, por vezes, se cruzam com ostensiva lentidão, sem se olharem ou trocarem palavra, para desaparecerem e deixarem ver a parede da casa. Na rua, o vento recrudesce instante a instante, dobra as flores escassas do jardim, e parece querer empurrar a casa para longe, como se, exaltado e impaciente, a não pudesse suportar, obstáculo à sua fúria de pássaro nocturno, à grande cavalgada a que se entrega, sob o império enluarado da noite, desde as grandes montanhas do norte até às águas frias do oceano. Vestida de preto, da cabeça aos pés, uma mulher está perfilada mesmo em frente ao portão de madeira, que dá acesso ao jardim. O luar oferece ao espectador acidental o rosto da mulher, um rosto branco, de lábios rosados, enrugados pelo frio. Nele não há medo nem expectativa. Pressente-se, pelo piscar de olhos, o incómodo trazido pelo vento, mas apenas isso. Inexpressivo, parece desafiar a lua, para se deixar envolver na sua luz, enquanto o corpo, protegido pela roupa, se mantém hirto, instigando, com ousadia, o vendaval. Uma madeixa de cabelos desprende-se do lenço e esvoaça caprichosa. A mulher, de mãos nos bolsos do grande casaco, olha o astro iluminado e, para além dele, o vento e a noite de onde este se desprende e lhe rouba a sombra para a projectar, não sem violência e mistério, na parede da casa que ela recusa olhar. Uma nuvem esconde agora a luz e a noite cresce em negrume, enquanto a sombra na parede empalidece e se esvai. Por instantes. A lua logo volta exuberante, ajudada pelo cântico do vento, iluminando aquele rosto branco e hirto, para devolver à parede a sombra negra que se projecta daquela mulher petrificada neste lugar cujo nome já ninguém recorda.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

O Rumor das Ruas - 2. Setembro sucumbe

Aubrey Phillips - September Landscape. Cotswolds

2. Setembro sucumbe

Setembro sucumbe
às primeiras águas.

Rios, lagos, lagoas,
os dias vindimados
na fúria do vento.

Uma folha cai.
Cântico de Outono.

(O Rumor das Ruas, 1978)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Meras coisas

Apav.pt

A violência doméstica não se resume às patifarias que se fazem às mulheres. Os filhos, por exemplo, são vítimas contumazes. No entanto, em torno dos maus tratos infligidos às mulheres joga-se qualquer coisa de essencial à vida civilizada. A situação deplorável da mulher no Islão - ou em parte apreciável da cultura islâmica - era já um sinal muito preocupante da resistência que os homens opõem à consideração da mulher como um igual. Agora foi a Rússia (onde 36 mil mulheres são agredidas diariamente, ler aqui) a dar mais um golpe na ideia de igualdade de género, ao descriminalizar a violência doméstica, exercida fundamentalmente sobre as mulheres. E se isto é mau, pode não ser o pior. No próprio Ocidente, esse lugar onde os direitos das mulheres e a ideia de igualdade de géneros foi mais longe, sob a capa de se ser politicamente incorrecto, manifestam-se já atitudes e opiniões que mostram bem a ânsia de reverter a situação. O que está em jogo não é pouca coisa. Não é apenas o sofrimento físico e moral das vítimas. É a ideia de que a mulher não é uma coisa da qual se disponha a belo prazer. Quando se permite que alguém possa violentar fisicamente outra pessoa, a vítima perde a condição de pessoa e passa a ter o estatuto de coisa. E as coisas não têm vontade própria, nem liberdade. As coisas são mera propriedade. E parece que é para aqui que se caminha, mesmo em lugares insuspeitos, ainda que isso não seja visível aos olhos da maioria. Uma ameaça à vida civilizada.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Histriões e farsantes

Salvador Dali - Condottiero (1943)

Quando histriões e farsantes são tomados por condottieri percebemos que o rebanho anda tresloucado.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Indisciplina e aulas expositivas


Neste trabalho do Público (ler aqui e aqui) sobre a indisciplina na escola portuguesa é dito por Filinto Lima que as aulas expositivas, ainda muito correntes em Portugal, potenciam a indisciplina. Em tese, e tendo em conta a realidade dos alunos, estou de acordo. Contudo, as aulas expositivas são apenas a face visível de um problema muito mais profundo. Acusar as aulas expositivas parece-me ser análogo a culpar as dores de matarem uma pessoa atingida por cancro. As aulas expositivas - ou o debitar da matéria como é dito - são o resultado e a exigência do próprio sistema educativo. Elas não são apenas o fruto do conservadorismo docente ou o resultado de um amor excessivo do professor por se ouvir.

Tudo no sistema educativo conflui para as práticas docentes baseadas na exposição. Observem-se as salas de aula. Estão organizadas, genericamente, para aulas expositivas. Toda a estrutura da sala de aula implica um actor que fala para uma plateia, a qual está racionalmente organizada para tornar mais eficaz esse exercício de prelecção. As salas de aula, na sua configuração, não mudaram desde o tempo longínquo, tão longínquo que nem já se tem memória, em que os alunos, uma pequeníssima elite, estavam dispostos a escutar respeitosamente o discurso magistral. Foram e estão a ser feitas escolas novas, mas o modelo da sala de aula mantém-se inalterado. As novas salas de aula, que têm custados muitos milhões de euros ao erário público, estão organizadas para aulas expositivas.

As salas de aula são apenas o aspecto mais visível do problema. Os programas, apesar da retórica pedagógica com que são infestados, impõem, devido à sua estrutura e dimensão (muitos programas são uma espécie de curso universitário em abregé), práticas lectivas duramente expositivas. Organizar o trabalho lectivo de uma forma onde os alunos fossem mais autónomos e desenvolvessem competências cognitivas e práticas estruturantes implica tempo. Como os programas - tomados como listas de conteúdos a transmitir - têm de ser cumpridos e as suas dimensão são tresloucadas, a aula expositiva não é apenas o recurso do conservadorismo docente. É uma exigência do próprio ministério.

O terceiro factor ligado à aula expositiva está nos exames. Não neles em si mesmos, mas na amplitude do currículo que pretendem avaliar. Os exames reforçam a necessidade de cumprir a grande velocidade os programas. O tempo necessário para outro tipo de aulas, para experiências inovadoras e consolidação de conhecimentos e de competências cognitivas é inexistente. Resta o recurso à explicação das matérias. Reforço que um exame, uma prova de avaliação externa, não tem de ser obrigatoriamente um indutor de práticas escolares expositivas, mas tal como estão estruturados e organizados em torno dos programas, eles não apenas reforçam essas práticas como acabam por exigi-las.

Poder-se-ia ainda falar na formação docente e no número de alunos por turma, um factor importante na possibilidade de controlar a indisciplina e de encontrar espaço para práticas educativas não expositivas. Estes factores são tão importantes quanto os referidos anteriormente. A educação há muitos anos sofre de uma espécie de esquizofrenia. Esta deve-se à cisão entre a ideologia que dá forma à modelação que a tutela faz do que devem ser as práticas lectivas e as condições materiais que ela própria cria. Elas são incompatíveis, como a generalidade dos professores sabe por experiência própria. E como é que a tutela espera resolver o assunto? Esperando que as escolas e os professores resolvam uma situação que eles não criaram e para cujo resolução não têm quaisquer poderes. Não, as aulas expositivas não são o problema. Elas são apenas o sintoma da doença mental que acomete a política educativa do país há décadas.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Alma Pátria - 15: Hermínia Silva - Fado da Sina



Este Fado da Sina pertence, segundo julgo, à banda sonora do filme Um Homem do Ribatejo, de Henrique Campos (1946). Interpretado por um dos nomes grandes do fado e da rádio portuguesa, Hermínia Silva, é também ele um repositório do topos ideológico que percorria Portugal nos anos quarenta. Uma fatalidade que justifica uma vida infeliz. Nem iniciativa nem opressão, apenas o destino explica a realidade. É evidente que esse topos não tem a sua origem nessa época. É provável que possa ter surgido nas correntes políticas e sociais derrotadas pelo liberalismo e que tiveram em D. Miguel o seu representante. A sua permanência num Portugal rural só desapareceu com o fim desse mundo, nos anos noventa do século passado e a europeização da vida social portuguesa.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

O Rumor das Ruas - 1. Vem navio da noite

Frits Thaulow - Noite

1. Vem navio da noite

Vem navio da noite.
Vem no rumor das ruas.
Traz sombras de luz
e memórias de água.
Traz falésias de sílabas
e rasto de luas.
Traz frutos de sal
e poeira dos mares.

(O Rumor das Ruas, 1978)

sábado, 4 de fevereiro de 2017

A rosa do perfeito silêncio

Piet Mondrian - White Rose in Glass (1921)

Num texto de Michel Leiris sobre o envelhecimento e a morte descobri que o seu avô, um alto funcionário da terceira república, tinha sido discípulo de Augusto Comte, o filósofo do positivismo, e venerável da loja maçónica A Rosa do Perfeito Silêncio. Fiquei fascinado. Não com o avô de Leiris ou com o positivismo de Comte, muito menos com a maçonaria. O que me fascinou foi a denominação da loja. Não conheço – nem me interessam – as motivações maçónicas que conduziram a tal nomenclatura, mas ela poderia ser a evocação de um verso. Um verso que, inopinadamente, desse a ver que o fruto do perfeito silêncio seria a rosa. É da meditação desta ligação que me senti empurrado já não para o fascínio mas para a perplexidade. Esta traduz-se numa questão: e se a rosa, a verdadeira rosa, apenas nascesse desse silêncio perfeito?

Num mundo onde o silêncio é ruído, ainda que por vezes um ruído surdo, um rumor, as rosas, quaisquer rosas, são apenas simulacros de rosas. Todas as que desfilam perante os nossos olhos são o fruto do tumulto que enche a vida e por isso são rosas que o não são. Talvez sejam projectos de rosa, expressões de algum desejo, artifícios de um qualquer imperativo, mas não são rosas. E será que posso falar no plural? Será que poderão existir verdadeiras rosas? Ou não será a verdadeira rosa única? O nome da loja maçónica – ou esse verso que foi tomado por designação – talvez indicie essa singularidade. E aqui a perplexidade transforma-se em assombro: como é fácil platonizar. A verdadeira rosa não é nenhum dos simulacros com que lidamos no dia-a-dia. Ela é aquela que se revela quando em nós se fizer silêncio. Não o grande silêncio mas o perfeito silêncio. Talvez por isso Platão dizia que filosofar é aprender a morrer e a estar morto.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Joseph de Maistre

Karl Vogel von Vogelstein - Joseph de Maistre (1810)

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Agora que uma certa direita política está a chegar ao poder é altura de olhar para o seu longínquo fundamento. Joseph de Maistre (1753-1821) – juntamente com Louis de Bonnald, Edmund Burke e Giambattista Vico – está na sua origem. É o mais brilhante inimigo da Revolução Francesa, à qual dedica uma parte considerável da sua reflexão política e filosófica. Súbdito do rei da Sardenha, de Maistre, um saboiano, declarou-se, desde o início, um irredutível adversário tanto das práticas revolucionárias como da ideologia iluminista que lhes dava forma. Via na Revolução Francesa um grande acontecimento de ordem metafísica, uma espécie de punição divina à elite aristocrática francesa por ter alimentado ela própria aquilo – o Iluminismo – que a haveria de liquidar.

Entre as suas posições mais marcantes está a supremacia do corpo político – a sociedade e a autoridade – relativamente ao indivíduo. Politicamente, é antiliberal. A autoridade do Estado, fundada na violência, de que o carrasco é o símbolo e o executor, é central no seu pensamento. Defende o Antigo Regime, a monarquia absoluta, a Igreja Católica e o papado. Argumenta a favor da não separação entre a Igreja e o Estado e da teocracia. É um adversário do contratualismo – a ideia de que a comunidade política é o resultado de um contrato social – e elabora uma crítica feroz às constituições escritas provenientes da Revolução Francesa. A ordem política e as leis constitucionais não são o resultado da vontade dos homens, mas o fruto da acção da Providência na História.

O curioso é que este reaccionário empedernido, este defensor da Inquisição espanhola, era um homem pacífico, afável, cordato, com grande poder de sedução, tendo feito, enquanto embaixador do Rei da Sardenha na corte do Czar, uma série de conversões ao catolicismo, entre as damas da aristocracia russa. Escreve um francês de grande elaboração estética. É famosa, pela qualidade literária, a sua descrição da figura do carrasco em Les Soirées de Saint-Pétersbourg. Embora não tenha sido romancista nem poeta, Joseph de Maistre é um dos pais do romantismo francês. Isaiah Berlin viu-o como o predecessor do fascismo. Baudelaire considerava-o um mestre e Cioran é um seu leitor atento. A obra de Maistre encontra-se em fase de reavaliação crítica, pois algumas das suas posições são hoje partilhadas por um espectro político que não se concentra apenas na direita. Uma leitura indispensável, por muito que se discorde com o que é dito, tanto pelo prazer estético que proporciona como para compreender a origem e o fundamento do pensamento político da direita, dessa que está a chegar.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

O sono da razão

Francisco de Goya - O sono da razão produz monstros (1797)

A razão tem limites? Tem. E esses limites devem ser reconhecidos e respeitados. São perigosos os devaneios da razão, nos quais ela ultrapassa os rigorosos limites que são os seus. O nosso tempo, contudo, não é um tempo de devaneios da razão. Em nome dela, já ninguém vende - ou sequer oferece - mundos novos e amanhãs cantantes. O pior é o sono em que a razão parece ter caído. E quando a razão adormece o que se manifesta são os monstros mais terríveis que habitam no fundo negro que há no homem. A vida segundo a razão não é particularmente exaltante. Cultiva-se a justa medida, procura-se o equilíbrio, olha-se com terrível desconfiança tudo o que é excessivo. Olhamos para o mundo que nos rodeia e o que descobrimos é o acordar dos monstros da desmedida e do excesso. O que vemos é o desconcerto em que bufões histriónicos se tomam como chefes de rebanhos embasbacados com as luzes da ribalta. A razão ocidental, vergada a algum potente soporífero, corre o risco de apenas acordar quando tudo estiver já em chamas.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O ano de 2017

A minha crónica em A Barca.

O ano político começou com a tomada de possa de Donald Trump como 45º presidente dos Estados Unidos da América. Em 2017, haverá eleições na Holanda, em França, na Alemanha e, talvez, em Itália. É possível que este ano seja o do esboroar do projecto europeu, em crise há muito, provavelmente desde a introdução do Euro ou como resultado dos múltiplos alargamentos e o retorno, em força, dos nacionalismos num conjunto alargado de países membros. A questão fulcral do nacionalismo, porém, não é apenas europeia. Pelo contrário. O mundo globalizado vive, paradoxalmente, um fervor nacionalista. Os EUA foi o última a juntar-se ao clube onde têm lugar privilegiado a Rússia, a China, a Índia, mas também a Turquia, o Irão, o Paquistão e, com o brexit, a Inglaterra.

Um dos equívocos que tomou conta de parte da elite universitária, económica e política europeia foi a convicção de que o Estado-Nação tinha os dias contados. Muito se escreveu, tanto no âmbito académico como político, sobre a morte do Estado-Nação e o advento de uma nova era, atendendo ao processo de globalização em curso, onde os conflitos políticos seriam dirimidos fora do Estado-Nação. Esta crença derivava mais do desejo e da utopia do que da observação da realidade. Na verdade, fora da União Europeia, os Estados-Nação continuavam a fortalecer-se e a forte pressão que, no interior da União se exerceu e exerce sobre eles para lhes retirar poderes, está a gerar, um pouco por todo o lado, o crescimento de forças nacionalistas. Diria que o nacionalismo crescente é o resultado do vanguardismo e voluntarismo dos que pretendem destruir os velhos Estados-Nação europeus, retirando-lhes soberania e submetendo as populações aos poderes nebulosos que regem a União Europeia.


O projecto inicial que levou à União Europeia não tinha a veleidade de pôr fim ao Estado-Nação. Queria ser apenas um espaço onde eles encontrassem um interesse comum e partilhassem forças e fraquezas, mas sem qualquer utopia supra-estatal. Durante muito tempo, a política europeia obedeceu a um imperativo de equilíbrio, de justa medida e de sensatez. Quando, sub-repticiamente, a utopia supra-estatal se tornou dominante, tudo começou a desequilibrar-se e os desequilíbrios começaram a tomar forma no crescimentos dos partidos e movimentos nacionalistas, os quais tiveram ainda a ajuda do radicalismo islâmico. 2017 pode ser o ano em que o mundo em que vivemos desde a nossa adesão à CEE acabe, devorado pela reacção à aventura utópica de uma União Europeia que transformou os Estado-Nação em marionetas de uma confusa e sombria organização de poder supranacional.