quinta-feira, 21 de junho de 2018

Dias difíceis


A minha crónica no Jornal Torrejano.

A situação política está mais confusa do que parece. Só há um dado claro e inequívoco. Exceptuando os socialistas, todos os actores agem com o objectivo de evitar que o PS obtenha maioria absoluta nas próximas legislativas. CDS e PSD pretendem recuperar terreno e penetrar no centro político. BE e PCP sabem que uma maioria absoluta dos socialistas será obtida à custa dos votos da esquerda. Ainda menos interessado numa maioria de António Costa está Marcelo Rebelo de Sousa. Isso libertaria o governo da actual submissão ao Presidente da República e tiraria a este qualquer possibilidade de influenciar decisivamente a governação do país, como tem feito desde os incêndios do ano passado.

Numa sondagem da Aximage, as intenções de voto no PS caem pelo quarto mês consecutivo. Este declínio – aliado aos conflitos laborais, ao preço dos combustíveis e à memória da tragédia dos incêndios – torna imprevisíveis as negociações do próximo orçamento de Estado. Até há pouco toda a gente estava convicta de que se o BE e o PCP derrubassem o governo socialista teriam pesadas perdas eleitorais. Esta percepção, porém, pode estar a mudar. Neste momento, não é claro que, em eleições antecipadas, os socialistas consigam ir buscar votos à sua esquerda. Devido, principalmente, à acção do Partido Comunista, instala-se a convicção, em parte do eleitorado de esquerda, de que um voto no PS é um voto inútil, caso esse PS não esteja dependente dos partidos à sua esquerda.

Os socialistas pensaram que iriam capitalizar o sucesso político da solução governativa e ficaram presos nesse sucesso. A retórica da saída da austeridade abriu a porta para que no Estado as reivindicações dos vários corpos existentes se tornassem cada vez mais impiedosas. A narrativa do fim da austeridade desfaz-se perante essas exigências e, também, o cansaço da sociedade civil com a carga fiscal. Por outro lado, uma certa arrogância típica dos socialistas está a escavar-lhe as bases de apoio. António Costa, que parecia ter uma vida fácil, tem, a cada dia que passa, a vida mais complicada. Nem os seus adversários políticos, nem os aliados actuais, nem o Presidente da República, nem a população parecem dispostos a estender-lhe um dedo. Pelo contrário. Desde há uns tempos que olho para António Costa e me lembro de Agamémnon, o rei grego que encontrou a morte – isto é, a derrota – no regresso vitorioso de Tróia. Dias difíceis para o PS.

quinta-feira, 7 de junho de 2018

O governo e os professores

A minha crónica no Jornal Torrejano.

O que terá levado o ministro da Educação a afirmar que, perante a posição dos sindicatos, o governo, que tinha prometido recuperar quase três anos do tempo em que as carreiras dos professores estiveram congeladas, não contará qualquer tempo para a progressão docente? O ministro pode achar que é uma estratégia brilhante para enfrentar os sindicatos, mas não percebeu como ela é humilhante para os professores, que se sentem tratados como crianças que são castigadas por um ministro a quem, na verdade, não reconhecem qualquer autoridade política ou educativa. Como professor, não vou aqui advogar em causa própria. O assunto é complexo e ambas as partes possuem razões que devem ser ponderadas com sensatez e serenidade. O que me interessa é o aspecto político.

O governo, ao optar pela intransigência, acordou de imediato na memória de muitos professores os tempos de Sócrates e de Lurdes Rodrigues. Isto é o pior que pode acontecer para qualquer governo. A maioria absoluta de Sócrates desfez-se com as peripécias de Lurdes Rodrigues. Quando Passos Coelho chegou ao governo, a sua maioria foi conquistada com um apoio inesperado e inusitado dos professores. As pessoas não se lembram já, mas o fim dessa maioria começou num duro conflito entre o ministro Crato e os professores. Estes que tinham dado o seu apoio ao PSD numas eleições retiraram-no nas seguintes. Assim como Sócrates e Lurdes Rodrigues, também Crato e Passos Coelho desapareceram do panorama político. Esse desaparecimento não se deve aos conflitos com os professores, mas foi neles que as maiorias políticas se começaram a desagregar. O conflito com os professores funciona como uma espécie de profecia do fim.

Não compreendo como António Costa não percebe no que se está a meter com este tipo de provocação. Se ele pensa que se vai poder gloriar como uma certa ministra que proclamava que tinha perdido os professores mas ganho a população, então não percebeu nada da realidade. Apesar da redução drástica do número de docentes, o professorado é um corpo profissional enorme e com uma presença capilar na sociedade portuguesa. Um corpo cansado de ser vexado desde 2005, um corpo profissional que, a continuar a ser tratado como o foi pelo actual ministro, não hesitará em contribuir para enviar António Costa para o limbo político onde residem os seus antecessores. Repito, há razões dos dois lados que merecem ser ponderadas, mas tratar os professores como o fez Brandão Rodrigues pode ter um preço político incalculável para António Costa.

sábado, 2 de junho de 2018

Um desafio ao Estado

A minha crónica em A Barca.

Volto ao futebol. Em A Barca de Agosto do ano passado, escrevi sobre o tribalismo que se apossou desse jogo e como a vida tribalizada é necessária para os negócios, a começar pelos da comunicação social. Os acontecimentos nas instalações de um dos maiores clubes portugueses, com a sua invasão por um exército de adeptos e o espancamento subsequente de jogadores e treinadores, manifestam a escalada desse tribalismo para níveis inusitados. O que se passou na Academia sportinguista de Alcochete não foi um mero acto arruaceiro ou uma simples acção criminosa. Há algo muito mais grave do que as cenas de espancamento.

Para perceber a gravidade da situação é necessário tentar olhar para o que desencadeou os acontecimentos. Na origem do ocorrido está, na verdade, um conflito laboral. Uma parte – mesmo que ínfima – dos adeptos, isto é, de alguém que se sente como fazendo parte da entidade patronal, não está contente com o desempenho profissional dos empregados do clube e toma a decisão de agir. O que significa isto? Significa que uma função essencial do Estado – a da justiça – foi tomada de assalto não se sabe bem por quem. Secretamente, um conjunto de indivíduos instituiu um processo informal a esses funcionários, julgou-os, proferiu uma sentença e executou-a ou fê-la executar.

A acusação de terrorismo imputada aos adeptos presos parece deslocada, mas a usurpação de funções soberanas do Estado é clara. Assistimos a uma das tribos do futebol a constituir-se efectivamente como um Estado dentro do Estado, a agir segundo uma lei privada e dentro de instituições alternativas ao Estado. O que se viu não foi um mero exercício de violência mas a manifestação indisfarçável da fragilidade das nossas instituições políticas. Não foi o Sporting que saiu mal na fotografia, não foi o futebol nacional que foi vilipendiado. Tudo isso é irrelevante.

Relevante é o facto do país ter sido humilhado ao tornar-se patente que as suas instituições são desafiadas por instituições secretas de natureza tribal, com os seus códigos do trabalho e penal, cerimónias processuais e procedimentos de execução de penas. Um Estado dentro do Estado. O mais preocupante é a complacência instalada. Instalada na comunicação social. Instalada nas elites políticas. Estas assobiam para o lado como se o que aconteceu tivesse sido uma escaramuça entre adeptos exaltados. Não foi. Foi um desafio deliberado à soberania nacional e ao ordenamento jurídico que determina que o Estado possui os monopólios da justiça e da violência legítima.