sexta-feira, 30 de novembro de 2018

A. da Silva Gaio, Mário


Publicado em 1868, Mário – Episódios das Lutas Civis Portuguesas é o único romance do médico e professor de Higiene, na Universidade de Coimbra, António de Oliveira da Silva Gaio. João Gaspar Simões integrou-o, nos anos setenta do século XX, numa colecção denominada Grandes Esquecidos da Editora Arcádia. Se é verdade que A. da Silva Gaio é um autor esquecido – quem lerá hoje o seu romance? –, talvez seja um exagero considerá-lo um dos grandes da nossa literatura. Uma literatura nacional, contudo, não se faz apenas dos grandes nomes, daqueles que os críticos e os programas escolares canonizam. Outros autores existem que, apesar de não serem – e para falar só do século XIX – um Eça, um Garrett, um Camilo ou um Herculano, merecem ser lidos e merecem ser disponibilizados senão em livro de papel pelo menos em livro digital. Silva Gaio seria um desses autores.

Mário, como alguns estudiosos assinalam, está a meio caminho entre o romance histórico e o romance de actualidade. Os factos históricos que representam o cenário onde se desenrola a acção romanesca medeiam entre 1828 e 1834, e dizem respeito à guerra civil que foi desencadeada após as Cortes de 1828 terem aclamado D. Miguel como rei de Portugal. Portanto, a publicação do romance é feita 40 anos após o começo do conflito, o que significa que os factos, as lutas entre liberais e absolutistas, ainda estariam presentes na memória e na vida de muita gente à data da escrita e publicação do romance. É neste horizonte que Silva Gaio cruza uma história de amor e um conflito político, cujas intrigas, tecidas de múltiplas peripécias, se misturam e encontram desenlaces intimamente ligados. A difícil vitória da liberdade foi também a difícil vitória do amor ou vice-versa.

Um dos aspectos centrais é o carácter eminentemente político e partidário do narrador. Este não é um observador neutro que conta uma história cujo destino lhe é indiferente. Pelo contrário, o narrador toma partido pelos defensores do liberalismo, não lhe sendo indiferente o desfecho da guerra civil. Há um claro e procurado subjectivismo na apresentação dos factos narrados. Mais do que a apologia de um espírito liberal, tal como ele é entendido hoje em dia, encontramos a defesa da liberdade e a execração dos despotismo absolutista. Para tal, as personagens centrais são marcadas com vincos fortes e claros, na verdade efectivas idealizações do mal e do bem. O freire da ordem de Malta, Jorge Pinto, é um absolutista empedernido, um cacique beirão, corajoso, mulherengo, autoritário e despótico, com uma capacidade manipulatória servida por uma inteligência aguda. As personagens do lado liberal também são nítidas, sem claros-escuros. O padre Maurício é um santo homem, Teresa é bela, inocente, culta e virtuosa, e Mário é um homem de carácter, corajoso e fiel à liberdade. Durante o tempo da narrativa, nenhuma das personagens atraiçoa, por um instante que seja, a figura ideal que representa.

O romance apesar de ser construído a partir da apreciação subjectiva dos factos pelo narrador, não nos dá uma visão funda da subjectividade das personagens, dos seus dramas internos, das suas incertezas e dúvidas. Elas são, na realidade ideias que se confrontam e combatem, tal como no terreno os exércitos liberais e miguelistas se combatiam. Por outro lado, a obra de Silva Gaio consegue dar a ver ao leitor um momento da nossa história, das visões políticas em confronto, bem como das estruturas sociais que dão forma ao Portugal da época. Existe mesmo uma longa digressão sobre essa história. Talvez o mais surpreendente – mas é possível que o não seja para os historiadores – resida na figura do padre Maurício. Normalmente, tem-se a impressão de que o clero e a Igreja estavam claramente conluiados com os absolutistas, e tinham uma acção deletéria das aspirações à liberdade. Silva Gaio dá-nos a ver um outro clero, não apenas bondoso mas amigo da liberdade e aberto aos novos ideais. De certa maneira, esta visão da Igreja Católica perante os acontecimentos de 1828-1834 não deixa de ter notáveis semelhanças com a visão que se tem da mesma Igreja durante o Estado Novo de Oliveira Salazar. Se a inocência do amor entre Teresa e Mário nos faz sorrir hoje em dia, a ambiência política descrita pelo romance não só ajuda a compreender aquela época histórica, como nos permite perceber alguma coisa da nossa história mais recente, tornando patentes certas linhas de continuidade.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.