quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Descrições fenomenológicas 35. Cães na rua

Franz Ehrlich, Azul y amarillo con un extremo blanco, 1930

No parapeito de uma janela baixa, um cão branco olha para o fundo da rua, uma pobre viela, as orelhas dobradas para trás, numa pose de expectativa, como se não tivesse a certeza de que aquilo que espera vá acontecer. É um cão de olhar inquisitivo, tocado por um brilho que, por instantes, parece desvanecer-se e logo volta intenso e esperançoso. O sol bate nas paredes e ilumina o trabalho dos anos, as rugas nas casas velhas, o esventramento dos muros, a humidade do empedrado que cobre, incerto e cansado, a terra do chão, maculada pela água que a chuva da noite ali depositou, como nos homens os acontecimentos depositam resíduos fluidos na memória. Numa das paredes, um grafiti descreve, a negro, uma qualquer dor de alguém que por ali passou. Numa das janelas, um vulto perscruta a rua, encosta a testa ao vidro e deixa que a respiração o embacie. Depois, afasta a cabeça e com o dedo desenha no vidro turvado um hieróglifo, e afasta-se para dentro de casa. O cão branco continua alerta, enquanto outro, escuro e pequeno, vem sorrateiro, pára e fica, sob a luz que lhe faz cintilar o pêlo, a olhar para o seu companheiro. Este nem repara. Uma sombra desenha-se ao fundo. Então o cão branco arrebita as orelhas, ladra, salta para a rua e corre em direcção a alguém que o chama, enquanto o sol se reflecte no vidro dos candeeiros públicos e o cão preto prossegue em silêncio o seu caminho.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.