quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Natal e sociedade


Entre a religião e a sociedade há uma dinâmica que, nos dias de hoje marcados pela indiferença religiosa, parece já não ser compreendida pela maioria das pessoas. Esta incompreensão deve-se à religião ter sido relegada para o foro da subjectividade. As pessoas podem dizer-se católicas, frequentarem a Missa, mas na vida social comportarem-se objectivamente como alguém despido de qualquer crença religiosa. Isto afecta, de forma muito evidente, o sentido social da Festa da Natividade do Senhor, a qual se degradou numa espécie de orgia de consumo.

O Natal tem um significado religioso, de natureza espiritual, e tem um sentido social. Não foi apenas a sua dimensão espiritual que foi rasurada, mas também o significado profundo da sua natureza mais exterior e comunitária. No nascimento do Menino, as nossas sociedades sacralizavam e divinizavam a emergência de uma nova vida. O Menino Jesus é o arquétipo de todas as crianças que vêm à vida. Isto significava que a banalidade do nascimento humano tornava-se num acontecimento excepcional. Por mais crianças que nascessem, por mais vulgar que fosse a mecânica que conduz da fecundação ao nascimento, todo o recém-nascido era um excepção, um acontecimento extraordinário e singular. Uma manifestação divina.

No Natal, as sociedades celebravam o poder da vida, a sua regeneração e a sua eterna novidade. Celebravam também outra coisa, celebravam a sua própria continuidade. Esta simbolização, pelo Natal, da continuidade da vida e da comunidade parece, nos dias de hoje, completamente perdida, ocultada pela festividade profana que, dinamizada pela indústria e pelo comércio, se ergueu nas cidades e nos lares. Em vez da vida, desde há muito que o Natal celebra o poder de compra. Deixou de ser uma questão vital para se tornar num dado nas estatísticas económicas dos países e uma dor de cabeça para aqueles que, crentes ou não, terão de participar nas festividades, arrastados pela enorme máquina publicitária.

Que o Natal tenha perdido a sua dimensão espiritual, isso diz respeito aos crentes. Que ao Natal se tenha retirado o poder para simbolizar o triunfo da vida e a continuação da comunidade, deveria preocupar crentes e descrentes. Sem a simbólica do Natal, a vida e a continuidade de uma comunidade perdem a sua natureza sagrada e são arrastadas para o domínio do que é vulgar e banal. Se o Natal passou a ser uma prova do poder de comprar, a vida – essa que se renova em cada recém-nascido – tornou-se um exercício dependente de um cálculo económico, e a continuidade da comunidade ficou sujeita à aritmética dos prazeres e dos desprazeres que a nova criança poderá trazer.

[A minha crónica em A Barca]

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