quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Carmen Laforet, Nada


Carmen Laforet tinha 23 anos quando publicou Nada, o seu mais importante e decisivo romance. Foi no ano de 1944, apenas cinco anos após o fim da guerra civil, e obteve, nesse mesmo ano, o Prémio Nadal. Segundo a crítica, a obra integra-se na corrente existencialista e representa um momento de ruptura artística na Espanha de então, exaurida pela guerra e submetida à ditadura do generalíssimo Franco. O espaço narrativo é Barcelona, onde a própria autora viveu, o que não deixa de ser um lugar significativo no espaço e tempo da Espanha de então.

Andrea, narradora e principal protagonista, é uma jovem órfã de 18 anos, que vivia num convento. Recebe uma bolsa do Estado espanhol e vai para Barcelona com o objectivo de ingressar na Universidade. O romance começa com a narração da sua chegada à rua de Arribau onde vive a avó. Toda a obra se funda na tensão entre dois modos de existência em dois mundos particularmente diferenciados.  Se se utilizarmos a nomenclatura platónica, estamos perante o mundo sensível e o mundo ideal. É a difícil gestão desta interacção, com contaminações inesperadas, por parte de Andrea que constitui o núcleo forte da narrativa.

A casa da avó, da qual a protagonista tinha vagas reminiscências de infância, pode ser vista como uma metáfora de Espanha da altura. O que a marca é a pobreza e a dissensão. A avó não vive só. Andrea encontra lá a tia Angustias, solteira, autoritária, beata e com um caso extra-conjugal com o patrão, o tio Román, um solteirão de alma artística, mas metido no contrabando e, acima de tudo, um sedutor e manipulador da família. Vive lá também o tio Juan, carácter fraco, casado com Gloria, que antes e depois de se casar com ele foi amante de Román. Há ainda Antonia, uma criada arrogante, apaixonada pelo irmão solteiro, e um bebé, filho do casal, para além de um cão, de um gato e de um papagaio. O centro da tensão reside na relação entre os dois irmãos. Román manipula Juan. Este espanca Gloria, como passatempo O ambiente é completamente disfórico, como se a autora quisesse contrapor à imagem de Espanha em via vias de beatificação, veiculada pelo franquismo, uma distopia, onde a vida estivesse a cada momento à beira de um apocalipse. A miséria, o desleixo, a fome e as tensas e conflituais relações intrafamiliares são uma analogia da própria Espanha. Uma imagem do mundo sensível da filosofia platónica. Este é o mundo do conflito, da mudança contínua, do não-ser e da aniquilação. Enfim, do nada.

O mundo ideal não é, claro, o mundo congelado das ideias platónicas, mas o da vida universitária, onde Andrea faz amigos cuja existência está bem longe da realidade em que ela habita. Nesse mundo, o dinheiro flui com facilidade, e a fluência da moeda leva à amabilidade das palavras e ao comedimento dos gestos. É a fluidez financeira que permite aos jovens acalentarem sonhos e projectos artísticos, terem vivências alternativas à vida burocrática do mundo dos negócios, cultivar a imaginação no lugar da sensata razão. Contraposto ao seu mundo real, à tensão que a dura necessidade sempre impõe, o mundo da universidade, daqueles que a frequentam com ela, parece um mundo de liberdade e de infinitas possibilidades. E é aqui que Andrea estabelece com Ena, uma outra estudante, uma grande amizade, determinante no desenrolar do enredo.

Ena, porém, tem desde o início da amizade, e assim que sabe quem Andreia é, um estranho interesse pelo tio Román. Esse interesse progride e leva Ena a pôr fim ao seu namoro e a suspender os contactos com Andreia. Frequentava a casa desta, mas não para a ver. No entanto, aquilo que movia Ena não era o amor a Román ou o sentir-se seduzida por ele, mas a vingança motivada pelo comportamento, há muito tempo atrás, ainda antes de Ena nascer, de Román para com a mãe dela. Como na Espanha da altura, o passado é gerador de ressentimentos e estes exigem o ajuste de contas. Consumado este, a vida volta à normalidade.

Sem que haja qualquer referência explícita à situação política, o romance de Carmen Laforet não deixa de ser um retrato de um tempo político forte, marcado pela guerra civil, pela ditadura e pelo ajuste de contas. Isso é feito, porém, pela narrativa da adaptação da ingénua protagonista ao duplo mundo em que lhe cabe viver, o da casa, com a perversidade exacerbada das relações familiares, e o da universidade, onde encontra a experiência de um outro mundo possível. Essa tensão acaba por encontrar uma inesperada resolução, que lhe permitiu sair de Barcelona e da velha casa da rua de Arribau, como se saísse do inferno.

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