domingo, 20 de janeiro de 2019

Descrições fenomenológicas 37. O homem perdido

David Lynch, A Bug Dreams of Heaven, 1992

Seria um náufrago perdido em terra ou um centurião antigo extraviado no tempo? Seria um pastor abandonado nos córregos da serra ou um anjo desvairado nos sulcos de um hossana? O céu encrepusculara-se e o dia inclinava a cerviz para a noite com passos titubeantes. As nuvens coavam a luz, que tocava ao de leve os juncos trémulos a verdejarem em tons de sépia, mergulhados na intimidade das águas. Um renque de ciprestes elevava-se da terra e enegrecia ao sabor do nascimento das trevas. A figura, quem quer seja, parou e olhou longamente o cruzeiro, tão esquálido, feito de pedra escorregadia e húmida, branca como a cal que escora as paredes das casas pobres do sul. O homem, assim parecia, hesitava. Talvez não conhecesse o símbolo ou vacilasse na fé que o haveria de mover. Inclinou a cabeça, enquanto a noite ilegível continuava a sua caminhada, tornando a luz exígua e a alma temerosa. As sílabas desprenderam-se então da boca e caíam sobre a terra em borbotões, formando palavras, frases, uma oração nascida nas cordas tensas do coração. Ajoelhou-se, inclinou a cabeça sobre o peito. Era apenas um esboço de sombra na paisagem que se vestia com o veludo vagaroso da escuridão, e cobria com a carícia do silêncio o fervor que se soltara sobre as espáduas da terra.

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