sábado, 12 de janeiro de 2019

Irvin D. Yalom, O Problema Espinosa


O romance O Problema Espinosa (2012), do psicanalista norte-americano Irvin D. Yalom, propõe uma estranha aproximação entre o filósofo holandês Baruch Espinosa (1632-1677) e o ideólogo nazi Alfred Rosenberg (1893-1946), autor de O Mito do Século XX, uma pretensa teoria das raças, de orientação nitidamente anti-semita, na continuação dos trabalhos de Houston Stewart Chamberlain. A aproximação romanesca destes dois homens que tudo separava foi desencadeada pela descoberta pelo jovem Rosenberg da profunda admiração que o Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) – o maior génio alemão, segundo Rosenberg – nutria pela filosofia do judeu Baruch Espinosa. Como seria possível um ariano ajoelhar-se perante o pensamento de um homem de raça inferior?

O autor – ele mesmo judeu – partiu de um facto real, o saque da biblioteca do museu Espinosa em Rijnsburg, na Holanda, um saque sem sentido tendo em conta a pouca valia daquilo que foi roubado, para construir a trama narrativa. Esta permite-lhe fazer uma caracterização da filosofia de Espinosa, pintar as relações intelectuais e religiosas dos judeus holandeses, judeus fugidos da Península Ibérica, e também construir uma leitura, a partir de uma abordagem psicanalítica, da personalidade do ideólogo nazi. A obra, para além de fornecer aspectos didácticos para aqueles que querem tornar-se psicanalistas (Yalom inventou umas sessões de terapia para Rosenberg), tematiza dois problemas fundamentais. O da identidade de si e o da relação entre razão e fé.

Espinosa era um jovem e brilhante aluno da comunidade judaica de Amesterdão. No entanto, o questionamento racional que ele opõe aos ensinamentos religiosos, o sublinhar das incongruências da tradição e insubmissão geral do espírito levam a que seja proferida contra ele uma sentença de excomunhão, sendo proibidos, a todos os membros da comunidade judaica, quaisquer contactos com o proscrito. Espinosa é despido da sua identidade de judeu e vai ter de reconstruir uma nova identidade fundada agora apenas nos preceitos da razão. Estamos perante a afirmação de uma singularidade radical, assente no corte com a cultura de origem. Em contraponto, Alfred Rosenberg era um jovem solitário e inseguro, vítima dos seus colegas de liceu. A construção da identidade de Rosenberg faz-se a partir da sua solidão, do seu anti-semitismo e no mergulho no que poderia chamar-se espírito do povo. É a crença na superioridade da raça ariana – e a crença de que ele pertença a essa raça – que lhe permite a construção da sua própria identidade. Espinosa constrói a identidade pela singularização produzida pela rejeição da comunidade. Rosenberg fá-lo pelo afastamento da sua singularidade forçada, e sentida como problemática, e pelo mergulho no magma comunitário. Yalom estabelece uma relação entre o nascimento do indivíduo, com a figura luminosa de Espinosa, e o seu desaparecimento com a figura tenebrosa de Rosenberg.

A questão da identidade, contudo, terá de ser percebida num âmbito mais amplo. Trata-se da questão das Luzes. Espinosa é um dos pai do Iluminismo, da afirmação da Razão sobre a fé, as tradições e os preconceitos. O filósofo é apresentado como uma figura da libertação em relação ao pensamento dogmático. Rosenberg, pelo contrário, é a figura da regressão. Ele representa aqueles que trocam o uso da razão pela afirmação de um fanatismo, de uma fé radicalizada em preconceitos raciais e na mitificação do povo alemão. Com Espinosa, o autor traça o caminho que conduz do mito à razão. Com Rosenberg, traça a via contrária, aquela que leva da razão ao pensamento mítico. Não por acaso, o livro do ideólogo nazi chama-se O Mito do Século XX.

A oposição entre razão e mito ou entre razão e fé, tomada esta na sua dimensão de fanatismo, serve para sublinhar os fundamentas da intolerância entre os homens. Esta nasce de crenças que não suportam o exame da razão, nasce em pessoas que sofrem de uma patologia que a psicanálise deveria tratar. O fanatismo resultará menos do exercício do livre-arbítrio, de uma decisão livre, e mais de uma patologia que condiciona as crenças e os comportamentos dos indivíduos, incluindo os comportamentos perante as suas próprias crenças, evitando submetê-las ao exame da razão. A patologia em que todo o fanatismo assenta está ligada a uma ausência de comunicação ou a uma incapacidade de comunicar. O fanatismo judaico impõe o corte comunicacional com o herege Espinosa. O fanatismo nazi é alimentado por homens como Rosenberg, cuja capacidade de comunicar com os outros é notória. Só uma terapia através do diálogo teria, então, o poder de restabelecer a comunicação e evitar o fanatismo. Uma apologia do papel da psicanálise na sociedade.

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