sábado, 5 de janeiro de 2019

Joris-Karl Huysmans, Além


Além (no original francês, Là-bas) é um romance do francês Joris-Karl Huysmans publicado em 1891 e consolida o corte com o naturalismo estético iniciado em 1884 com o romance À rebours. Huysmans, nos seus primeiros romances, cultivou um naturalismo estrito, de grandes preocupações sociais. O início de Além é marcado por uma discussão entre o principal protagonista, Dutral, um escritor que troca o romance pela narrativa histórica, e um seu amigo, o médico des Hermies, sobre a falência filosófica do naturalismo, pelo encerramento deste nas questões sociais, na sua falta de impulso para uma realidade sobrenatural. Este romance é o primeiro de uma tetralogia que, de certa forma, acompanha, na personagem de Dutral, a conversão do autor ao catolicismo romano.

Esta abertura para o sobrenatural começa, porém, pelo negativo, pelo mal e o satanismo, numa espécie de retrato de Paris da época. A questão que se coloca é a seguinte: como é que Dutral, e também ele teria sido um escritor naturalista, transita das preocupações sociais para a preocupação metafísica? A obra dá duas pistas. Por um lado, o abandono do romance e a sua substituição pela narrativa histórica, uma biografia de uma figura dos finais da Idade Média, Gilles de Rais, um dos grandes de França no XV, que foi acusado de satanismo por ter torturado, estuprado e assassinado um grande número de crianças. A história permite a Dutral dar o salto para um mundo, o mundo medieval, que já há muito desaparecera. Por outro lado, o cansaço com a vida social que conduz a uma certa busca de refúgio, a uma desilusão com o mundo da literatura e com a própria sexualidade e os jogos a que ela submete os indivíduos.

A reconstrução da vida de Gilles de Rais, toda ela marcada pelo sobrenatural, tanto visto pelo lado da fé em Deus como da busca de um pacto com o diabo, leva Dutral a interessar-se pelo tema do satanismo. Descobre que este continua activo em Paris e que um certo cónego Docre, excomungado, celebra missas negras. Deseja assistir a uma dessas celebrações. Consegue-o através de uma admiradora que, a princípio, se mantém secreta, mas que acaba por se envolver sexualmente com ele. Ela própria é uma admiradora de Docre e uma participante nesse tipo de missas. A abjecção e a irracionalidade do evento, porém, levaram-no a uma rejeição total do satanismo, deram-lhe ocasião para romper com a amante e conduziram-no a uma certa libertação desse mundo de súcubos e íncubos.

Na obra, esta relação com a dimensão negra é contrabalançada pelos encontros que ele e o seu amigo médico têm com um tocador de sinos, na casa deste, um homem de fé profunda que, a partir da sua profissão, elabora uma espécie de metafísica que permite integrar o conjunto da vida sob o ritmo do toque dos sinos segundo o ritual da Igreja Católica Romana. O tocar dos sinos é a voz que, mesmo numa sociedade já claramente não cristã, permite ainda dar-lhe um sentido marcado pelo cristianismo. Estes encontros, apesar da presença de um astrólogo e do cepticismo de des Hermies e do próprio Dutral, são aberturas pelas quais o catolicismo se vai insinuando, mas não mais do que isso, em Dutral.

Pode-se assim perceber que o romance de Huysmans se inscreve num debate sobre a modernidade, essa modernidade que tem os seus fundamentos no Renascimento e na ruptura com a Idade Média. Dutral, contudo, não deixa de ser um moderno, pois procura no abrigo da quase solidão salvaguardar a sua individualidade perante a ameaça do social, todo ele marcado pelos negócios, pela política e, como sempre, pelo jogo sexual que absorve uma parte do tempo, dos pensamentos e da energia dos homens. Perante o peso do mundo com as suas exigências, os seus jogos e a sua alienação, Dutral busca refúgio. Refugiou-se em casa e na solidão, refugiou-se na Idade Média, ou no momento da sua decomposição. Refugiou-se numa busca do além perante o desgosto que o aqui e agora arrastam, com as suas misérias e o trágico da existência, para cima dos indivíduos, que agora, desligados das antigas castas sociais que lhes davam um lugar inquestionável e um sentido existencial, estão perdidos num mundo de indivíduos. Estes, curiosamente, como se percebe no final do romance, pelo vitoriar pela plebe de um político vencedor, o mais que podem desejar é fundir-se ululantes na massa. E é disso também que Dutral e os seus amigos fogem.

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