quarta-feira, 10 de abril de 2019

Descrições fenomenológicas 40. Cortejo

Mark Tobey, À Cheval la Nuit, 1958

Ao longe, distingue-se o ondulado azul-cinza das montanhas, fronteira de pedra e arvoredo a apartar dois mundos cuja inimizade cintilasse num desejo de eterna separação, na rememoração de ofensas incompreensíveis e inaceitáveis, num ódio sempre fresco, que nem o passar dos séculos nem os imperativos do afastamento minimizam. Sobre o dorso montanhoso, ergue-se, com fulgurações de ouro e ocre, um sol que se intromete entre as nuvens, para reinar sobre a terra e, dadivoso, deixar os raios tocar as ervas e a neblina, criando, nos olhos do espectador, reinos ilusórios e desejos nunca saciados de descobrir os mundos que se escondem por detrás daquele em que vivemos. Subitamente, irrompe no planalto uma carroça de duas rodas puxada por dois cavalos, logo seguida de outra e mais outra, e ainda outras, num estranho cortejo, a que a luz solar empresta tonalidades fantasmagóricas, como se aquela procissão tivesse emergido do magma do passado, fugido de um campo de batalha, e seguisse um destino não esperado por aqueles que, dentro dos veículos, são assim arrastados para fora do seu mundo. A poeira cobre-lhes rosto e roupas. Quem os observe nunca terá a certeza se são homens ou epifanias de deuses que a história declarara mortos. O trote dos cavalos depressa fez desaparecer os viajantes numa curva apertada do caminho. O ruído das rodas e o vozear incompreensível atenua-se até se apagar. Quando o silêncio cai sobre a terra, nuvens negras cobrem o sol. Ouve-se o regougar longínquo de uma raposa e um par de corvos voa de uma para outra árvore. A noite, tensa e ameaçadora, cai. É meio-dia.

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