sexta-feira, 14 de junho de 2019

Crónicas Normandas III - No cemitério americano

JCM, Cemitério americano na Normandia, 2007

Li algures que todas as campas deste cemitério estão voltadas para a América. Como se um dia fosse possível estes homens abandonarem o reino dos mortos, caminhar sobre as águas tenebrosas do Atlântico, chegar à terra prometida, onde abraçariam pais e filhos, as mulheres, as jovens namoradas que por lá deixaram. Nesta simbologia patriótica há um trágico desígnio. Voltados para ocidente, para as terras americanas, não é para a luz que eles olham, mas para o crepúsculo do poente. É nesse continente longínquo que, para quem vive na Europa, está o lugar onde a luz do dia vai morrer. Ironia funesta, o sítio de luz e redenção afinal não é mais do que um espaço de trevas e morte. Os mortos para a morte estão voltados.

São pomares de cruzes brancas, aqui e ali salpicados por estrelas de David, pomares cujo fruto foi colhido e não mais retornará. Percorrem-se as áleas, pisa-se a relva, olham-se os nomes no mármore frio de amargura, tocam-se as flores que por lá foram deixadas. A brisa marítima fustiga as faces. Há gente, muita gente, por todo o cemitério, estamos no lugar dos vencedores, mas aqueles que estão debaixo da terra, esses há muito que perderam, por mais que digamos a heroicidade dos seus gestos, a dádiva da vida para nos livrar do horror, eles perderam, transviaram-se do caminho da vida, encontraram a fria glória e o aconchego na terra húmida de um país estrangeiro. Penélope não os acolherá.

Há famílias que procuram, ainda hoje, a campa dos seus, recolhem-se perante a voraz pedra da morte, rezam uma oração, deixam flores, enquanto o vento continua a soprar gélido e cortante. Às vezes, chuvisca; outras, porém, o Sol rompe e ilumina por instantes as gotas de água que crescem nas folhas verdes da relva. Ainda há gente que chora, mas há muitos que apenas excursionam por ali, gente inoportuna, gente a coleccionar locais, paisagens, igrejas, cemitérios, recordações turísticas de quem perdeu a alma ou a vendeu num saldo de fim de estação. Aqueles mortos não são os seus, mesmo se a liberdade que ora usufruem foi comprada com a vida dos que dormem sob o peso da pedra.

Aqui e ali surgem velhos soldados fardados, trazem no peito o peso das condecorações tidas e, na memória, o horror da metralha incandescente, o sorriso de não saberem como não são eles a quem se visita, o esgar perplexo de terem escapado daqueles campos e de retornarem, como Ulisses, à pátria e aos níveos braços de Penélope, que no tear teceu os dias, os longos dias, que haveriam de trazer o bem amado daquela Tróia ignota. Agora, antes que a luz da vida se apague, vêm visitar o campo sagrado da morte; é um campo de glória para os que morreram e uma bênção para os vivos, vivos que caminham entre as sombras dos que, no fundo da terra, chamam por eles. (07/10/2007)

[Agora que fez 75 anos o desembarque aliado na Normandia, republico a série de seis crónicas normandas escritas em 2007 e publicadas num outro blogue.]

2 comentários:

  1. O culto dos soldados mortos sempre me fez muita confusão sejam eles conhecidos ou desconhecidos.
    Excelente crónica.

    Um abraço

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