terça-feira, 11 de junho de 2019

Curzio Malaparte, O Sol é cego


Ao acabar de ler o romance O Sol é cego fiquei a olhar para a capa da edição portuguesa e para o título, tradução literal do original italiano Il Sole è cieco (1947). Depois pensei que aquele título serviria muito bem para fazer uma introdução a um curso de tropologia, tal a densidade expressiva desviante do sentido literal que ali se encontra. Atribuir a cegueira ao Sol é de imediato, se não uma personificação, um animismo. No entanto, enunciado o Sol é cego interpretada a partir da experiência de leitura do romance mostra-se como uma expressão metafórica, onde a cegueira é o indício da indiferença com que o Sol presenceia a desgraça humana da guerra. Por outro lado, o Sol é uma sinédoque, através da qual o todo da natureza é dita por uma das suas partes. É a natureza que é cega perante as idiossincrasias da humanidade, é ela que fecha os olhos e, assim, permite que os homens se batam e se matem. Esta natureza, todavia, não será mais que uma máscara dessa figura trágica que é o destino Por que razão o autor condensará no título um tão grande arsenal retórico?

Falar da guerra – ainda por cima de uma guerra considerada inútil – talvez só seja possível pelo abandono da literalidade da língua, pelo recurso a uma hipertrofia expressiva que transforma o prosaico em poético e, desse modo, sublinha o patético do enfrentamento entre os homens. A guerra não é a norma da experiência quotidiana da humanidade. Ela é um estado de excepção que exige uma linguagem que vá para além da literalidade prosaica. O título é um indício da linguagem que o leitor vai encontrar. O romance é criado a partir da experiência de Malaparte como correspondente de guerra, na Batalha dos Alpes, em Junho de 1940. O autor não é propriamente um pacifista. Aos 16 anos foge do colégio onde estudava em Itália e vai oferecer-se ao exército francês para combater na primeira guerra mundial. No entanto, o combate que agora acompanha está marcado por dois pecados que ele não perdoa. Em primeiro lugar, o facto de a Itália ter declarado guerra a França, estando esta já enfraquecida pelo ataque alemão. Depois, porque o batalha alpina vai pôr frente a frente italianos e franceses, habitantes dos Alpes, que sempre mantiveram relações de amizade. A declaração de guerra italiana ultrapassa os limites da honradez que, uma antiga tradição guerreira, colocava entre beligerantes.

A irracionalidade da guerra e daquela guerra em particular ganha corpo na desrazão que atinge a personagem central, um capitão italiano que tem por missão estabelecer ligações entre diferentes grupos do exército italiano, percorrendo assim os Alpes, entabulando conversa aqui e ali, descrevendo os homens confrontados com o terror e o temor. Essas descrições são entrecortadas por outras, as que fazem ressaltar a beleza da paisagem que, indiferente, assiste aos combates e à agonia dos homens e dos animais, que a guerra também mobiliza. A perda de razão do capitão está ligada ao destino de um soldado, Calusia, um pobre e inocente camponês alpino, um homem simples que ama as vacas e que se passeia com um chocalho ao pescoço. Calusia está naquele limiar entre o animal e o homem, sendo, na verdade, mais animal que homem. Essa condição torna manifesto o que há de criminoso naquela guerra, onde, como referido acima, a gente simples dos Alpes, que sempre tiveram laços de proximidade, se vai agora matar.

A morte de Calusia atinge em pleno o capitão. A sua loucura é o resultado da responsabilidade que sente perante o destino daquele ser tão próximo de uma inocência primitiva. Esta insânia resgata a humanidade que as máquinas de guerra tendem a destruir. Exércitos são dispositivos onde se cumprem ordens, mas nos quais há uma irresponsabilidade pelo desencadear da guerra e pelo destino dos que nela morrem devido ao acaso dos combates. Ao perder a razão, ao sentir-se culpado daquilo que parece estar fora da sua alçada, o capitão sublinha um princípio de solidariedade que vai muito para além daquilo que formalmente é o seu dever. A natureza é indiferente aos combates, o sol é cego perante a vilania, o destino parece inexorável, mas um homem pode ainda enlouquecer porque se sente responsável pelo destino de outro. Há, na desrazão que acometeu o capitão, um princípio de esperança que poderá resgatar a humanidade afundada na loucura.

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